quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Leonardo e Luisinha (Manuel Antonio de Almeida)

Leonardo e Luisinha

Manuel Antonio de Almeida

Extraido de “Memórias de um sargento de milícias”

Nota do blogger : após algum tempo, Leonardo, já engajado no serviço militar, vai a um velório; e ali reencontra Luisinha, sua antiga paixão platônica.

O Leonardo começou a procurar com os olhos alguma coisa ou alguém que tinha curiosidade de ver; deu com o que procurava: era Luizinha. Há muito que os dois se não viam; não puderam pois ocultar o embaraço de que se acharam tomados. E foi tanto maior essa emoção, que ambos ficaram surpreendidos um do outro. Luizinha achou Leonardo um guapo rapagão de bigodes e suíça; elegante até onde pode sê-lo, um soldado de granadeiros, com o seu uniforme de sargento bem assente. Leonardo achou Luizinha uma moça espigada, airosa mesmo, olhos e cabelos pretos, tendo perdido todo aquele acanhamento físico de outrora. Além disso seus olhos, avermelhados pelas lágrimas, seu rosto empalidecido, se não verdadeiramente pelos desgostos daquele dia, seguramente pelos antecedentes, tinham nessa ocasião um toque de beleza melancólica, que em regra geral não devia prender muito a atenção de um sargento de granadeiros, mas que enterneceu ao sargento Leonardo, que, apesar de tudo, não era um sargento como qualquer. E tanto assim, que durante a cena muda que se passou, quando os dois deram com os olhos um no outro, passaram rapidamente pelo pensamento do Leonardo os lances de sua vida de outrora, e, remontando de fato em fato, chegou àquela ridícula mas ingênua cena da sua declaração de amor a Luizinha. Pareceu-lhe que tinha então escolhido mal a ocasião, e que agora isso teria um lugar muito mais acertado.

A comadre, que dava uma perspicaz atenção a tudo o que se passava, como que leu na alma do afilhado aqueles pensamentos todos; fez um gesto quase imperceptível de alegria: raiava-lhe na mente alguma idéia luminosa. Começou então a retraçar um antigo plano em cuja execução por muito tempo trabalhava, e cujas probabilidades de êxito lhe haviam reaparecido no que se acabava de passar.

Passada a primeira emoção, Luizinha ergueu-se e fez ao Leonardo um acanhado cumprimento: este correspondeu-lhe com alguma coisa entre cumprimento paisano e continência militar. A comadre rompeu depois disto a conversa, procurando entreter D. Maria, e deixar os dois entregues a si.

— Diga-me, disse ela dirigindo-se a D. Maria, e aquela sua demanda com o defunto?
— A morte foi desta vez juiz. Ele não tem herdeiros; era só no mundo... Eu não levei a minha avante, é verdade, porque enfim não posso dizer que venci; mas também não perdi. Agora sim, tenho muito gosto de entregar tudo à menina, mas não queria que me levassem as coisas se, não por minha muito livre vontade.

— Está bem; o passado já lá vai: Deus é assim, escreve direito por linhas tortas.

E por aí adiante empenharam-se na sua conversa.

Os dois, depois de algum tempo de silêncio, como já se tinham retirado todas as visitas, foram pouco e pouco, de palavra em palavra, travando diálogo, e conversavam no fim de algum tempo tão empenhadamente como a comadre e D. Maria, com a diferença que a conversa daquelas duas era alta, desembaraçada; a deles baixa e reservada.

Não há nada que, interrompida, mais depressa se reate do que seja a familiaridade em que o coração é interessado. Não se estranhe pois que Luizinha e Leonardo a ela se entregassem.

E querem ver uma singularidade que às vezes se repete? Depois que se fizera moça, e que tomara estado, nunca Luizinha tinha tido momentos de tão verdadeiro prazer como os que ali estava gozando naquela conversa, num dia de luto, quando acabava de sair o caixão que levara à sepultura aquele que devia ter feito a sua felicidade. O Leonardo também por sua vez, nunca, no meio de todas as vicissitudes de sua vida extravagante, tinha tido instantes que tão rápidos lhe corressem do que aqueles em que via o objeto de seus primeiros amores sob o peso do infortúnio em um dia de pranto.

Pois parece que estas mesmas circunstâncias reavivaram o passado: a comadre folgava lá no seu lugar com tudo aquilo, e, parecendo prestar toda a atenção a D. Maria, não perdia uma só circunstância.

Finalmente chegou a hora da retirada, não da comadre, que se ofereceu para fazer companhia à viúva, porém de Leonardo, a quem esperava o major, porque era dia de serviço, e apenas tinha ele obtido licença para cumprir o duplo dever de dar os pêsames a D. Maria, e agradecer o interesse que por ele havia tomado, fazendo por intermédio de Maria-Regalada que o major não só lhe alcançasse perdão do castigo que lhe era destinado, como também o acesso de posto que repentinamente tivera.

Luizinha involuntariamente estendeu à despedida a mão ao Leonardo, que lha apertou com força.

Ora, isto naquele tempo era bastante para dar que falar ao mundo inteiro.

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