Deolinda
(de “Pequenas memórias”, José Saramago)
Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei
uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que
morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam
para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava
namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar
("A menina quer namorar comigo?", "Pois sim, se são boas as suas
intenções"), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais,
conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das
cordas da roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido,
acanhado, corno me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia,
creio recordar, com uns avós), mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que
calhasse. Um tudo que daria em nada. Elaa era muito bonita, de rostinho
redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais,
deveria pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos.
Divertia-se um pouco à falta de
pretendente idóneo, mas, ou muito enganado adno desde então, tinha a pena de que a diferença
de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o
apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das
palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de
Deolinda Bacalhau Saramago.