A primeira missa no Brasil
João de Barros
Formação do tipo rural
Oliveira Viana
(extraído de “Populações meridionais do Brasil”, 1920)
Nota do blogger :este texto descreve a elite brasileira do século XVI e XVII, rica e apreciadora da boa vida.
Nada mais surpreendente do que o estudo da vida e dos costumes da aristocracia rural do Sul e do Norte, durante os primeiros séculos coloniais, principalmente nos seus dois centros mais vivazes: Pernambuco e São Paulo. Dir-se-ia um recanto de corte europeia transplantada para o meio da selvageria americana. Tamanhas as galas e as louçanias da sociedade, o seu maravilhoso luxo, o seu fausto espantoso, as graças e os requintes do bom tom e da elegância.
Da nobreza de Pernambuco, nos começos do II século, diz o autor do” Valeroso Lucideno”(9), que por miserável é tido entre ela quem não tem um serviço (1) de prata, e que as damas são tão ricas nas vestes e nos adereços, com que se adornam, que parecem “chovidas em suas cabeças e gargantas as pérolas, rubis, esmeraldas e diamantes”: – “As mulheres andavam tão louçãs (2) e custosas que não se contentavam com os tafetás, os chamalotes (3), os veludos e outras sedas, se não que arrojavam as finas telas e os ricos brocados; e eram tantas as joias com que se adornavam que pareciam chovidas nas suas cabeças e gargantas as pérolas, rubis, esmeraldas e diamantes. Os homens não haviam adereços custosos de espadas e adagas, nem vestidos de novas invenções com que se não ornassem.
Os banquetes cotidianos, as escaramuças e os jogos de canas em cada festa se ordenavam. Tudo eram delícias, e não parecia esta terra senão um retrato de terreal paraíso.”
Entre os senhores de engenho é, ao que parece, por esse tempo, a vida uma perpétua festa, uma ininterrupta troca de folganças e prazeres.
– “Há homens muito grossos (4) de 40, 50 e 80 mil cruzados de seu – diz o probidoso Fernão Cardim, descrevendo a nobreza pernambucana dos fins do I século. – Vestem-se, e as mulheres e filhos, de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas; e nisso têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras e não muito devotas. Os homens são tão briosos, que compram ginetes (5) de 200 e 300 mil cruzados, e alguns têm três e quatro cavalos de preço. São sobretudo muito dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores juntos e, revezando-se desta maneira, gastam quanto têm, e bebem cada ano dez mil cruzados de vinho de Portugal, e alguns anos houve que beberam oitenta mil cruzados dados em rol.”
Nas fazendas do interior pernambucano, “maiores e mais ricas do que as da Bahia”, encontra Cardim igual opulência e iguais larguezas. Os senhores delas lhe fazem grandes honras e agasalhados, mas, com tão grandes gastos, que ele confessa não poder descrever. Dão-lhe “banquetes de extraordinárias iguarias” e o agasalham em “leito de demasco cramezin, franjado de ouro, e ricas colchas da Índia”. Esses aristocratas de Pernambuco guardam ainda as tradições hípicas do tempo de D. Duarte, o rei cavaleiro, que havia composto o Livro de ensinança do bem cavalgar toda sela. É de vê-los então no seu amor pelas touradas, pelas corridas, pelas cavalhadas. Cavaleiros exímios, cheios de donaire e arrojo, primam na elegância e gentileza da montaria, na riqueza dos jaezes (7), todos cobertos de prata, na destreza com que toureiam, no garbo com que praticam os jogos da argolinha, das alcancias (8), das canas.
Quando, em 1641, Nassau, em comemoração à aclamação de D. João IV, dá, em Olinda, uma grande festa, o luxo dos cavaleiros mostra-se deslumbrante: – “Como todos iam à gineta – diz Frei Manoel Calado –, corriam tão fechados nas selas, e tão compostos, e tão airosos, que levavam após si os olhos de todos, e principalmente os olhos das damas.”
Não ostenta a aristocracia colonial do sul menor suntuosidade de viver. Os homens, que a formam, vêm da mesma estirpe étnica e trazem a mesma civilização social e moral.
Como os de Pernambuco, os representantes da nobreza paulista são altamente instruídos e cultos. Nas suas relações sociais e domésticas, o tratamento que mantêm é perfeitamente fidalgo. Há entre eles um, que pode ser citado como o tipo verdadeiramente modelar de todos eles, pela grandeza, pelo luxo, pela liberalidade. É Dr. Guilherme Pompeu, da família ilustre dos Lemes. Graduado em cânones, espírito cultíssimo, é a sua casa o centro de reunião de todo o escol (10) de São Paulo; nos dias de festa é toda ela como “uma populosa vila ou corte”, tamanha a assistência e o concurso dos hóspedes. É numerosa a sua biblioteca; “ricos e de primor” são todos os seus móveis. Como das muitas arrobas de prata, que herdara dos seus pais, mandara em Lisboa pôr em obra mais polida, pode, destarte, ostentar “a copa mais primorosa que nenhum outro seu nacional”. Para maior agrado dos seus hóspedes, cultiva ele grandes vinhedos – “O vinho era primoroso, de uma grande vinha que com acerto cultivava”, diz Pedro Taques; “e, suposto, o consumo era sem miséria, sempre o vinho sobrava de ano a ano”. No preparo das iguarias e na sua profusão, tudo é igualmente primor e prodigalidade. – “Foi tão profusa a mesa do Dr. Guilherme Pompeu, que nela as iguarias de várias viandas (11) se praticavam com tal advertência que se, acabada a mesa, depois dela, passadas algumas horas, chegassem hóspedes, não houvesse para banqueteá-los a menor falta. Por esta razão estava a ucharia sempre pronta.”
Para bem avaliar-se a grandeza do tratamento com que Guilherme Pompeu honra os seus hóspedes, basta dizer que, para acolhê-los, ele tem, ricamente paramentadas, cem camas, cada uma com um cortinado próprio, lençóis finos de Bretanha (12), guarnecidos de rendas, e “uma bacia de prata debaixo de cada uma delas”, segundo o expressivo
detalhe de Taques. – “Entrava o hóspede, ou fosse um, ou muitos em número, e nunca mais, nos dias que se demoravam, ainda que fossem de uma semana ou de um mês, não tinha nenhum dos hóspedes notícia alguma dos seus escravos, cavalos e trastes. Quando, porém, qualquer dos hóspedes se despedia, ou fosse um ou quinze ou muitos ao mesmo tempo, chegando ao portão, cada um achava o seu cavalo, com os mesmos jaezes em que tinha vindo montado, as mesmas esporas e os seus trastes todos, sem que a multidão de gente produzisse a menor confusão na advertência daqueles criados, que para isto estavam destinados. Esta advertência era uma das ações de que os hóspedes se aturdiam por observarem que nunca jamais entre a multidão de várias pessoas, que diariamente concorriam a visitar e a obsequiar dias e dias ao Dr. Guilherme Pompeu de Almeida, se experimentara uma só falta, nem uma só troca de trastes a trastes”.
Como se vê, Guilherme Pompeu recebe na sua casa à maneira dos “ricos homens” peninsulares. E, como ele, toda a fidalguia paulista do tempo. Nenhum dentre estes aristocratas há que não possua de cavalos os mais finos e árdegos exemplares. De José de Góis Morais, diz, por exemplo, o mesmo Taques, que “não teve no seu tempo quem o igualasse no tratamento, porque de cavalos da melhor fama e bondade tinha muitos e todos bons em atual cavalariça, e tão briosos, que nem para beber água saíam para fora sem antolhos, nem cabeções”.
Como em Pernambuco, o cavalgar com arte, donaire (13) e luzimento se faz também aqui distintivo e pundonor (14) de nobreza.
Tal como nas cortes de amor da idade média, o coração das damas está com os que com mais gentileza e brio meneiam o ginete, farpeiam o touro ou manejam a lança nos jogos da cavalhada. É Pedro Lara, da família dos Lara, quem tem, ao que parece, no seu tempo, o primado nesses exercícios de arte da picaria. Dele nos fala Taques, como sendo, pelas suas habilidades de cavaleiro, o mais gabado dos mancebos entre as damas e o mais invejado deles entre os homens.
Pela elevação dos sentimentos, pela hombridade, pela altivez, pela dignidade, mesmo pelo fausto e fortuna que ostentam, esses aristocratas, paulistas ou pernambucanos mostram-se muito superiores à nobreza da própria metrópole. Não são eles somente homens de cabedais (15), com hábitos de sociabilidade e de luxo; são também espíritos do melhor quilate intelectual e da melhor cultura. Ninguém os excede nos primores do bem falar e do bem escrever. Sente-se na sua linguagem ainda aquele raro sabor de vernaculidade (16), que na Península parecia já haver-se perdido. Pois é aqui, na colônia, segundo Bento Teixeira Pinto, que os filhos de Lisboa vêm aprender aqueles bons termos, que já lhes faltavam, e com os quais se fazem, no trato social, polidos e distintos.
(1) Serviço : Jogo de baixelas ou outros utensílios de mesa, necessários para um determinado uso: Serviço de chá.
(2) Louçã : feminino de loução, adjetivo : elegante, garbosa, vistosa
(3) Chamalote : tecido de pelo de camelo
(4) Grosso : importante
(5) Ginete : cavalo de raça
(7) Jaez : arreios
(8) Alcancia, alcanzia : espécie de jogo hípico, em que se usa bolas de barro
(9) “O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade na Restauração de Pernambuco” é uma obra de Frei Manuel Calado, publicada em 1648
(10) Escol : a elite, a nata
(11) Vianda : comida, quitute
(12) Bretanha, bertanha : tecido muito fino, de linho ou algodão
(13) Donaire : graça no manejo do corpo, no andar etc.; distinção, galhardia, garbo.
(14) Pundonor : sentimento da própria honra, do próprio valor; amor-próprio, brio, altivez
(15) Cabedal, cabedais : posses materiais ou recursos financeiros; bens, riquezas, haveres
(16) Vernaculidade : atributos de pureza, correção, casticidade das palavras e construções de uma língua.