domingo, 29 de novembro de 2015

Minha estação de mar-Domingos Pellegrini Jr.


Minha estação de mar - Domingos Pellegrini



Quando eu tinha 10 anos, o ano tinha mais de quatro estações, e todas elas ficavam nas minhas mãos. A estação dos piões deixava um anel caloso no fura-bolo, onde a fieira apertava, e um furo na unha do dedão, onde o prego do pião girava até esquentar. A estação das búricas marcava o nó do dedão, com um calo grosso, rachado igual terra seca. Logo começava a estação das rolimãs, e as rachaduras desse calo enchiam de graxa, ficavam ali entupidas até a estação das mangas. Então crescia na mão o limo das mangueiras, uma placa visguenta. Depois, a mão fedia: na estação dos papagaios eu vivia com alho no bolso; era só esfregar no dedo e segurar linha de papagaio alheio, dali a pouco despencava com a linha roída. Na estação do "bafo" a mão criava calos nas bordas, e acabava com cheiro de pena queimada, de tanta cuspida pra grudar as figurinhas. Depois a estação do "bete", a das tampinhas, a dos saquinhos de areia, todas lavrando cortes, calos e cheiros nas mãos, além do calo que uma caneta deixa no pai-de-todos quando tem que copiar, na escola, duzentas vezes uma frase.

Naquele tempo a escola era a única prisão que eu conhecia. Mas o pai comprou um carro e,

depois do passeio inaugural com minha mão avisando de todas as placas e esquinas, ele anunciou na janta:

— Este ano vamos tirar um mês na praia.

Eu conhecia o mar como uma lagoa grande, distante e sem graça nas figurinhas, onde aparecia às vezes verde e às vezes azul. Agora íamos conhecer o mar em pessoa, ia começar uma nova estação onde entravam todos — o pai, a mãe,Alice, eu e a Linalva, nossa empregada que já vira o mar de passagem quando viera do Norte. A estação do mar me encheu a cabeça. O pai começou a falar de ondas que rebentavam e a gente mergulhava dentro. Eu não conseguia imaginar mas comecei a achar ótimo. A mãe ia tirando a mesa e, a cada vez que vinha da cozinha, lembrava os perigos do mar e dava conselhos. Sim, o mar devia ser uma coisa ótima. E o pai avisou, bicando a xícara quente de café: partida dali a três dias, todo mundo que se preparasse.

Não me preparei, mas me acordaram no dia marcado, às cinco da madrugada, com tudo preparado para mim. Nem tive tempo de perguntar por que levantar tão cedo se íamos passear; a mãe e o pai distribuíam ordens. Eu devia levantar logo e me lavar, escovar os dentes e trazer a escova. Devia comer pão com manteiga, café com leite, um ovo cozido e uma banana, mesmo que não tivesse fome. Ninguém ia ficar parando na estrada pra eu comer. E ninguém ia ficar parando antes de Ibiporã pra eu urinar, então fui urinar e quase durmo de novo na privada. Mas ninguém ia ficar esperando a vida inteira, bateram na porta, batiam portas de armários, fechavam malas, enchiam sacolas. Coma logo isso que seu pai já levou as malas. Cadê a bolsa, alguém viu a bolsa? Você tem certeza de que esse carro agüenta? Desliga esse rádio, moleque, rádio de carro só com o motor funcionando. Enfia esta blusa que ainda é madrugada; não quero saber, enfia logo. Não vamos esquecer de desligar a luz.Não seria melhor fechar também o registro da água? Vai pro teu lugar, moleque, lá atrás, sim senhor.Tira o pé do banco, não abre o vidro que dá dor de ouvido.

E assim partimos para o mar.

Dormi e acordei com o sol, as pernas querendo esticar e uma zoeira no ouvido. Alice acordou logo e brigamos nem lembro por quê, então ela passou para o banco da frente, junto da mãe, e eu fiquei sem ter o que fazer. Passavam os mais compridos canaviais e cafezais do mundo, comecei a empurrar os bancos da frente com os pés, mas não podia. Comecei a tirar fiapos do cochinil, mas não podia. Examinei o cinzeiro por dentro e por fora várias vezes, comi ovos cozidos e chupei laranjas, descascadas pela Linalva porque eu podia me cortar com a faca. Quando lembrei do rádio, a mãe falou logo que não suportava rádio em viagem, e o pai avisou que não ia parar pra erguer a antena, de modo que chupei mais umas laranjas e descobri que o tapete de borracha podia virar um megafone, mas não podia; de modo que descasquei mais um ovo com todo cuidado pra não triscar a clara e comi só a gema. Descobri tudo que não se pode fazer num carro. Ler chapas, por exemplo.

Quando li a chapa do primeiro carro na frente, a mãe aproveitou pra testar minha visão em comparação com a da Alice. Depois de umas duas ou três chapas, achou que eu e a Alice

enxergávamos a mesma coisa na mesma distância, e que devíamos ter puxado os olhos do pai dela, que já estava caduco sem nunca usar óculos. Continuei a ler as placas em voz alta, repetindo a mesma placa enquanto o pai não podava o carro da frente, até que falou que aquilo já tinha enchido e sugeriu que eu lesse uma vez cada placa, e só. Não passou muito tempo e aquilo também encheu todo mundo, mas a Linalva sugeriu que eu podia ler as placas mentalmente quantas vezes quisesse. Mas isso logo me encheu.

Quando descobri que só podia ficar ali sentado, também descobri que estava na segunda prisão da vida, com a mãe no lugar da professora apontando as paisagens e outras coisas bonitas que o mundo tem mas ninguém para pra ver direito. O pai só foi parar quando a Alice realmente se irmanou comigo pela primeira vez na vida. Ficamos os dois com uma coceira que a mãe logo identificou como formiga na bunda ou foguinho no rabo.

Esticamos as pernas, urinamos e tomamos guaraná num bar de posto de gasolina, o pai botou gasolina e voltamos à prisão. Demônios devem rondar os postos de gasolina, porque naquela viagem a mãe garantia que eu sempre ficava com o demônio no corpo depois que parávamos num posto.

Quando a situação ficou infernal dentro do carro tive que reconhecer: realmente o pai pararia para dar um jeito em mim se eu continuasse encapetado. De maneira que resolvi comer mais um ovo, mas não podia porque estava chegando a hora do almoço. Laranjas ainda podia, até que o pai ficou cheio de abrir o vidro pra eu jogar fora os bagaços e as sementes, e a mãe falou que eu não tinha tampa, parecia um buraco sem fundo e acabaram-se as laranjas. Quando comecei a estalar a boca, o pai falou que a mãe devia fazer alguma coisa porque aquilo era a coisa mais irritante do mundo, e ela falou que estalando a boca pelo menos eu ficava quieto com o rosto, aí ele falou, que ela sempre estava de acordo com qualquer coisa quando era pra contrariar uma opinião dele, aí ela falou, ele falou, de repente estavam discutindo os hábitos e defeitos um do outro, e depois não falaram mais até a hora de escolher onde almoçar. A mãe achava que devíamos entrar numa cidade, mas o pai achava que um restaurante de beira de estrada seria ótimo. Ela falou em higiene, perigo de uma intoxicação e talheres sujos, e ele falou de preço e distância, gasolina e tempo perdido, e ela mandou que ele parasse onde quisesse e fizesse o que quisesse porque ela já tinha mesmo perdido o gosto de viajar e — aliás — nem sabia mesmo porque tinha vindo naquela viagem e — quer saber duma coisa? — por ela, podiam voltar dali mesmo. Aí o pai também falou — quer saber duma coisa você também? — e fez meia volta. Eu senti que nunca ia ver o mar.

O motor foi rodando enfezado naquele silêncio, cada vez mais enfezado, até que o pai teve que brecar numa curva e o carro dançou pra lá e pra cá. A mãe não abriu a boca mas todo mundo ficou ouvindo o silêncio dela, tão pesado que o carro começou a andar devagar, tão devagar que dava agonia. Até que o pai parou num posto de gasolina com churrascaria. Como o posto era do outro lado da estrada, ele teve que fazer outra meia-volta, de jeito que ficamos de novo na direção do mar. O pai freou o carro e falou: essa mulher não vê que onde tem muito carro parado é porque a comida é boa, mas eu sei o que ela está querendo. Mas na verdade só tinha o nosso carro parado ali, fora uns trinta caminhões, e a mãe falou com uma cara que o pai chama de cara de mártir: descem vocês, meus filhos, vai com eles, Linalva, hoje vocês vão comer comida de motorista de caminhão. Aí o pai falou: isso, meus filhos, vamos que decerto o pai de vocês vai envenenar vocês. A Linalva saiu com a gente e a mãe falou: cuidado, Linalva, olha bem essas carnes e não deixa eles nem chegarem perto de maionese, fruta só lavada e água só mineral.

Comi carne com maionese com o pai olhando agradecido, mas quando pedi um gole de cerveja ele não deixou. A Linalva, depois que encheu o prato de ossos, começou a apertar as mãos e suspirar de agonia, até que o pai falou pra ela levar uma coxa de frango, um pão e um copo de leite pra mãe lá no carro. E completou que não existia comida que a mãe mais gostava do que coxa com pão e leite. Falei que nunca tinha visto a mãe comer coxa com pão e leite, e ele respondeu que foi antes deles casarem, e que ela ia lembrar. Realmente a mãe lembrou, porque o copo voltou vazio e, quando voltamos pro carro, ela não estava mais com uma cara tão perto da morte. E, como o carro já estava na direção do mar, o pai tocou em frente e passamos pela mesma paisagem até o ponto de onde tínhamos voltado.

A mãe perguntou ao pai se ele tinha bebido, ele disse que só uma cervejinha, aí começaram a falar de novo das paisagens, o pai perguntou se o frango estava bom, a mãe disse que sim e eu aproveitei pra elogiar a maionese. Aí a mãe azedou, virou a cabeça e ficou olhando a paisagem, passamos um túnel e ela continuou olhando a paisagem dentro do túnel. Depois avisou que não ia mexer uma palha se a gente ficasse com o intestino solto, e que eu podia cagar até as tripas que ela não ia nem se incomodar.

O pai lembrou que eu tinha misturado laranja e ovo na barriga a manhã inteira, comparou que maionese é mistura de ovos com limão e portanto quase a mesma coisa, portanto eu já estava cheio de maionese antes mesmo de almoçar.Mas a mãe não falou mais nada até que começou a chover.

O diabo, como disse a Linalva, é que a maionese começou a fazer efeito justamente quando o pai mandou fechar todos os vidros por causa da chuva. A primeira vez em que o cheiro ficou preso junto com a gente no carro, o pai perguntou quem foi, a mãe perguntou pra Alice se tinha sido ela, depois pra mim, e concluiu logo que tinha sido eu, embora eu lembrasse que a Linalva também tinha misturado ovos com laranja. De modo que ficou sendo eu mesmo e no começo foi até engraçado, o pai disse que eu parecia usina de cana, que mastiga o doce mas deixa o ar azedo, e a Linalva completou que lá no Norte uma comida que empesteia muito os intestinos é mistura de carne de bode com uma frutinha que ela não lembrava o nome.

Na segunda vez o pai falou que a usina estava a todo vapor, a Alice riu e ficou olhando mecanismos e mistérios na minha barriga, e a mãe falou pro pai que, do jeito que ele falava, eu podia até acabar achando que aquilo era uma coisa muito bonita. Na terceira vez o pai não fez mais graça nenhuma e deu a caixa de fósforos pra mãe acender um. Na quarta vez o pai falou que agora já chegava e que eu parasse de gracinha porque não tinha graça nenhuma, mas aí a mãe falou que aquilo era uma coisa natural e ele não podia forçar o menino a segurar. Discutiram um pouco os intestinos e a natureza, a minha sem-vergonhice ou o mal que faz a maionese de restaurante. O pai começou a falar que a maionese de restaurante ainda nem me tinha chegado no intestino, mas teve que pedir pra mãe acender outro fósforo. Depois falou que tanto fósforo e tudo mais estava esquentando o ar e embaçando os vidros demais, abriu um pouco a janela mas a mãe lembrou que estava chovendo e era melhor sufocar do que arriscar um resfriado. Quando acabou a caixa de fósforo o pai falou que, por ele, eu podia até pegar pneumonia, abriu o vidro um minuto e fechou porque molhava até o ombro dele mesmo, e continuamos assim, a mãe dizendo que aquele cheiro dava vontade de vomitar o almoço e o pai abrindo e fechando o vidro de vez em quando.

Em São Paulo a maionese parou de fazer efeito, estava anoitecendo e a Alice resmungava o tempo todo no colo da mãe, até que ela passou a ser uma menina cheia de nove-horas e eu menino quieto que devia ser imitado. Acontece que eu estava com sono ou qualquer coisa desse tipo, já nem tinha mais vontade de que o pai parasse ou de que os postos de gasolina tivessem confeitaria. Não sentia fome nem sede, tinha vontade de afundar mas, quando afundava a cabeça no colo da Linalva, dava vontade de levantar — até que acabei ficando de novo um moleque encapetado, a mãe falando que aquele carro estava um inferno e que ela não ia aguentar mais meia hora.

Quando apareceram as luzes o pai falou — Eh São Paulo que não pára de crescer!… — e a mãe perguntou se ele ia saber dirigir na cidade. Ele falou que não precisava andar muito pra achar um hotelzinho mais ou menos, e conhecia a entrada como a palma da mão. A mãe lembrou que ele não ia a São Paulo desde solteiro, e que ninguém ia dormir em nenhum muquifo… Aí o pai falou bem compreensivo e devagar que a gente não precisava gastar um dinheirão pagando hotel de primeira pra dormir uma noite só, e a mãe falou que ninguém dorme mais de uma noite cada vez. Aí ele falou que numa noite de hotel em São Paulo a gente ia gastar mais que uma semana de aluguel de uma casa na praia. A Linalva começou a falar — vocês podem me deixar numa pensão mais barata e amanhã… — mas a mãe mandou calar a boca que de hotel quem entendia ela. O pai quis perder a paciência mas já estava numa rua com mais carro do que eu tinha visto na vida inteira. Começaram a buzinar e a mãe falou que estavam buzinando pra nós, a Alice perguntou como é que sabiam que a gente ia chegar e o pai mandou todo mundo calar a boca porque tinha que se concentrar. A primeira placa de hotel que apareceu fui eu quem leu primeiro e dizia Hotel Paraíso, mas a mãe achou que não enganava ninguém só pelo jeito do prédio. Buzinaram pra nós e o pai continuou, mas aí já não sabia se contornava um tal de viaduto ou se ia em frente, de maneira que acabou virando antes do tal viaduto e acabamos numas ruas escuras onde disseram que hotel, do jeito que a mãe queria, o mais perto era do lado do tal viaduto. Quando o pai conseguiu achar de novo uma rua movimentada, buzinaram pra nós e ele perguntou se aqueles filhos da puta não podiam parar um minuto.A mãe falou que ele é que devia parar duma vez e perguntar pra um guarda. Discutir m isso uma meia hora com o carro andando mas, quando o pai parou e ela abriu a janela e botou a cara pra fora, o guarda apitou e mandou tocar em frente, tocar em frente, passamos de novo em frente o Hotel Paraíso e o pai xingou a mãe, São Paulo, os ônibus e o lazarento do espelho retrovisor que entortava toda hora.

Quando passamos pela terceira vez pelo Hotel Paraíso o pai falou — quer saber duma coisa? — e enfiou o carro no estacionamento. Depois, na portaria, o homem falou que dois quartos, do jeito que minha mãe queria, não tinha, mas desocupavam no outro dia de manhã. Ela perguntou mas que hotel é este que não tem nem pia nos quartos, mas meu pai falou que servia sem pia mesmo e o homem disse que pra qualquer coisa o banheiro era no fim do corredor e muito asseado. O homem subiu com a gente e a mãe reclamando da escada e dizendo que já estava sentindo o cheiro nojento do banheiro. Aí o homem abriu uma porta e ela falou que o cheiro de mofo do quarto só faltava derrubar a gente, meu pai falou para o homem desculpar que ela era assim mesmo. Aí ela empurrou a gente pra dentro e fechou a porta, dali a pouco o pai e a Linalva entraram com as malas, o pai abriu a janela e ficou olhando pra fora e ouvindo as buzinas e a mãe, abrindo as malas e reclamando que ela não era vaca pra ser "assim mesmo".

O pai saiu e trouxe pastéis, empadinhas com azeitonas dentro, quibe e um leite que vinha em saquinhos de papel. A mãe falou que pelo menos uma coisa ele tinha acertado porque assim não precisava usar nenhum copo imundo de hotel, lavou um saquinho na pia, enxugou com uma das toalhas que a gente tinha levado, rasgou a ponta do saquinho e me deu, e aquilo foi a grande coisa que conheci naquele dia de viagem.

Depois de vazios eu e a Alice quisemos guardar nossos saquinhos,mas a mãe falou que só serviam pra chamar baratas de noite. Quando o pai sentou na cama com um jornal que falava do Palmeiras, a mãe falou que ele tinha que mandar o homem trazer logo o tal berço pra Alice, e tinha que buscar um travesseiro pra mim no quarto da Linalva. O pai saiu parecendo que ia explodir ou então murchar até virar um rato no chão, e a mãe ficou reclamando da falta de cabides.

Quando o berço já estava no nosso quarto e a Linalva no quarto dela, eu e a Alice de pijama já deitando, a mãe falou pro pai fechar a janela que ia entrar pernilongo. Ele disse que se ela quisesse morrer abafada ele ia dormir em outro quarto, mas acabou fechando a janela e dizendo que ia sair. Ela falou que ele podia voltar bem tarde e ele falou que ia era pra um lugar onde mulher sabe tratar um homem, ela disse que ele podia ficar lá pra sempre e ele saiu batendo a porta.

Ela acendeu um abajur no criado-mudo e falou que aquilo parecia quarto não sei do quê, tinha até abajur cor-de-rosa. Eu perguntei quarto do quê, ela disse que eu devia era ficar quieto e dormir que a Alice já estava no segundo sono.

No dia seguinte buzinaram não sei pra quem e eu acordei. A mãe estava sentada na cama de casal com um mata-mosquito na mão, tão igual ao de casa que fui ver e era ele mesmo com as marcas que eu tinha feito pra cada mosquito que matei numa tarde de castigo na despensa.

Quando entramos no carro o pai e a mãe ainda discutiam a questão dos pernilongos, ele dizendo

que de luz acesa não dormia e ela que não dormia com pernilongo no ouvido. Ele dizendo que, agora, se você pensa que vamos encontrar casa pra alugar com ar-condicionado, pode tirar o cavalo da chuva. E ela respondendo que é só você não ficar abrindo janela que não entra pernilongo. E ele dizendo que esse negócio de pernilongo você pegou de uns tempos pra cá, porque na viagem de casamento, por exemplo, sempre dormi de janela aberta e nunca ouvi reclamação. E ela respondendo que acontece que naquele tempo era besta feito Jó, teve dia de amanhecer com o corpo empipocado de coceira, o braço em carne viva de tanto coçar. E ele dizendo que, se fosse assim, esse povo da roça já tinha morrido de pernilongo, borrachudo, mutuca, muriçoca. E ela respondendo que, bom, eu nunca vivi na roça nem tenho o couro grosso da sua família.

De modo que começaram a discutir os hábitos e os defeitos das famílias de cada um, as sogras e os cunhados e cunhadas, e aproveitei pra tirar fiapos do cochinil até abrir uma clareira do tamanho de um palmo. A Alice também começou a esfiapar lá na frente e a mãe disse que não podia, mas a Alice disse que podia porque eu também estava esfiapando atrás. Aí o pai e a mãe pararam de discutir pra examinar os estragos e concordaram que eu era mesmo um capeta e que, no fim de contas, era eu que infernizava a vida de todo mundo. Falei que não infernizava a vida de ninguém, que eu só queria viajar na frente e não deixavam, e que a Alice ia sempre no melhor lugar, e acabei convencendo todo mundo que aquele era meu dia de ir na frente.

Quando a Alice parou de chorar no banco de trás, fui descobrindo que ali na frente havia tanta coisa a fazer como lá atrás, e que todos os botões do painel eram perigosos, não podiam ser puxados nem apertados nem tocados e eu devia esquecer aqueles botões para o resto da vida, de modo que abri o porta-luvas e a mãe quase se enfiou lá dentro como se o carro tivesse brecado de repente, tirou de lá um revólver e começou a abrir depressa a janela, o pai foi brecando e encostou o carro, ela jogou o revólver na ribanceira e falou que ele não abrisse a boca, que ele nem pensasse em abrir a boca, e eu aproveitei pra enfiar a mão no porta-luvas antes que ela pegasse a chave e fechasse.

O pai abriu a boca quando o carro já estava rodando de novo: o revólver tinha custado não sei quantos cruzeiros não sei quantos anos atrás, e agora ele queria ver se aparecesse um ladrão na casa da praia. A mãe falou que era preferível entregar tudo pra um ladrão do que arriscar uma criança dessas com uma arma na mão, e começou a contar pra Linalva como tinha morrido um menino perto da casa dela quando era solteira, com um tiro na boca brincando com um revólver. Depois que ela acabou de contar o caso, perguntou o que eu tinha na boca e falei que era uma bala. A Alice falou que também queria bala e o pai garantiu que não tinha comprado bala pra ninguém no bar onde a gente tinha tomado café. Aí a mãe me abriu a boca na marra e tirou a bala, e foram discutindo se uma bala tem ou não tem perigo de explodir na boca de uma criança, e eu comecei a dizer que era muito bonito viajar no banco da frente porque assim a Alice não ia perceber como era muito melhor no banco de trás.

Entramos em Aparecida e o pai rodou até a mãe escolher um restaurante de cara boa. Mas acabou não servindo porque os copos estavam manchados e um guardanapo tinha uma mancha amarela que a mãe logo desconfiou. Voltamos para o carro e aproveitei pra passar pro banco de trás, a Alice sentou na frente e ficou procurando as vantagens que eu tinha falado. O pai deu a partida, tocou o carro mas a mãe achou que o restaurante do lado, ali mesmo, servia bem pra nós, então o pai tornou a estacionar no mesmo lugar, descemos e comemos uma comida intragável conforme o pai, muito limpinha e é isso que interessa conforme a mãe. Alice e eu aproveitamos pra descobrir que num restaurante a gente podia ler o cardápio e pedir o que quisesse, desde que fosse a mesma coisa que o pai e a mãe iam pedir depois. Descobri que camarão devia ser comida mais perigosa que maionese, e no entanto vinha do mar para onde a gente ia, e o mar me parecia uma coisa cada vez mais ótima.

Quando o pai pediu café, eu e a Alice pedimos pra ir numa praça que tinha em frente, Linalva ficou sem café pra ir cuidar da gente e, quando eu descobri dois moleques com um jogo de palitos que eu nunca tinha visto, o pai já entrou de novo no carro e começou a buzinar. Fomos entrando no carro e encostou um homem vendendo lembranças de Aparecida, tinha chaveiro de montes, binóculos de fotografia, santinho, crucifixo, terço, tudo pendurado num cabo de vassoura e a Alice escolheu um espelhinho que era santinho do outro lado. O pai falou que aquilo era bobagem mas a mãe falou que não ia contrariar um gosto sagrado da menina, eu falei que já tinha visto um daqueles espelhinhos mas com mulher pelada do outro lado. A mãe virou pro pai e perguntou o que ele preferia, uma filha iludida com bobagem de religião ou um filho depravado desde cedo. O pai falou que preferia um filho depravado e ficou rindo, aí a mãe falou que eu também devia escolher uma lembrança de Aparecida, e fui apontando e o homem desamarrando do pau e dizendo o preço, até que escolhi o mais caro, uma estátua de Nossa Senhora em porcelana opaca conforme o homem, de gesso vagabundo conforme o pai. Aí o homem falou que o que valia era a devoção, o pai respondeu que então não valia nada mesmo. A Alice falou que a avó tinha falado que o pai ia morrer sofrendo porque não tinha religião. O pai perguntou que vó, mãe dele ou da mãe, e virou pra mãe dizendo que só podia sair da mãe dela uma besteira daquelas.

E foi assim que voltamos pra estrada discutindo religião, até o pai falar que nunca mais deu peixe no rio onde pescaram a santa, aí a Linalva falou Deus me livre, credo em cruz, e o pai falou que a comida tinha dado azia nele e a Linalva garantiu que era castigo de Deus. A mãe não deixou o pai falar mais nada porque se falasse também tratasse de arranjar outra empregada, e continuamos estrada afora.

Alice teve enjôo e vomitou no colo da mãe, o pai teve que parar numa paisagem muito bonita de umas montanhas com um rio lá embaixo se entortando feito uma cobra.Tinha uma mina de água que saía das pedras e a mãe falou que ali, na natureza sem ninguém cuidar, nascia avenca e samambaia mais bonita que em estufa de rico. O pai falou que preferia ser rico e não ter avencas nem samambaias, mas um carro que nem um que passou e ia chegar muito antes da gente conforme o pai, ia acabar se matando numa curva conforme a mãe.

Alice melhorou tão depressa fora do carro, que quase despenca na ribanceira uma hora que a mãe descuidou, queria ver o que tinha lá embaixo. Aí o pai falou pra ela que lá embaixo tinha o mar, vamos lá ver o mar — e já foi entrando de novo no carro e continuamos estrada afora na direção do mar lá embaixo torto feito uma cobra.

O pai saía duma curva e entrava em outra naquelas montanhas,Alice vomitou no colo da Linalva e a mãe falou — agora vai assim mesmo —, e fomos com o vestido grudando na coxa da Linalva e um cheirinho azedo que o vento não carregava. Quando as montanhas acabaram, veio de novo a estrada de sempre, tão igual que até a mãe perguntou se a gente não estava voltando. O pai riu e falou que, se a gente não parasse mais nem uma vez, tal hora essas crianças vão conhecer o mar. Aí eu perguntei se ele tinha algum compromisso no mar, porque ele sempre falava em tal hora, hora tal sem falta, quando tinha algum compromisso com alguém. Ele falou que eu não entendia essas coisas, que em viagem a gente tem que fazer o tempo render, porque a menos de 80 por hora gasta muita gasolina, e eu empurrei o banco dele com o pé e fui descobrindo de novo tudo que não podia fazer dentro de um carro. Mas já não tinha graça e acabei dormindo com o diabo no corpo, conforme a mãe, e com os ossos meio doendo conforme eu mesmo.

Quando acordei o pai tinha acabado de parar o carro e estava conversando com um homem na frente duma casa, numa rua de areia com muitas latas vazias. A mãe olhou pra mim e falou: esse moleque está com alguma coisa. Me botou a mão na testa, me avisou que ficasse quieto que estava queimando de febre, ficou ensinando a Linalva a fazer chá de alho contra resfriado. A Linalva perguntou se eu não ia ver médico, a mãe falou que era um resfriado à toa, culpou o pai porque apanhei chuva da janela, disse que era só eu guardar em casa o dia seguinte e pronto. Perguntei se a gente não ia no mar, o pai veio vindo e enfiou a cabeça na janela, disse todo alegrão que o aluguel da casa era um absurdo mas a mãe achou que pelo menos tinha tela na janela contra pernilongos. De modo que a Linalva começou a descarregar as malas com o pai, a mãe foi botar roupa numa cama pra eu dormir e ninguém me dizia onde estava o mar. A mãe me enfiou um comprimido na boca, o pai disse que a mãe ainda ia viciar esse moleque com esses calmantes, dormi e acordei no outro dia com cheiro de café.

A Linalva estava na cozinha fazendo café igual em casa, até o bule era o mesmo e a garrafa térmica. Eu e a Alice passamos o dia no jardim e na rua, com a mãe ou a Linalva olhando da janela todo minuto. O pai montava e desmontava cama, arrumava descarga de privada, consertava tela de janela, a mãe arrumava as roupas no guarda-roupa, a Linalva emprestou uma vassoura da casa vizinha e um rodinho com pano de chão, e o pai desentupia pia, a mãe fez lista de compras e ele saiu pra comprar, mas foi sozinho porque disse que senão nem comprava as coisas nem cuidava de mim no supermercado, e a Linalva passou pano dentro dos armários e guarda-roupas, amontoou as baratas mortas num canto, e a mãe desinfetava tudo e reclamava como é que puderam deixar uma casa naquele estado, e só sei que no fim do dia a mãe falou que tinha trabalhado mais que numa mudança, e o pai falou que nem sabia porque tinha inventado aqueles dias na praia.

Alice e eu conhecemos todos os formigueiros da redondeza e perdemos muito tempo esperando sair da toca um bichinho, siri conforme a mãe, caranguejo conforme a Linalva e pituí conforme o pai. O bicho botava duas anteninhas pra fora do buraco, pareciam olhos saindo fora do corpo, via se eu e a Alice estávamos bem escondidos e então saía. A gente ia chegando perto, ele parava na areia, mexia as anteninhas e voltava pro buraco, sem pedra que conseguisse acertar o desgraçado no caminho.

Não vimos crianças, só umas de outra casa, que chegaram pro almoço e saíram depois, todo mundo de maiô, os homens com as costas vermelhas e as mulheres com o corpo inteiro melecado de creme, as crianças com bóias e pés-de-pato e máscaras.

No outro dia o pai pegou a gente logo cedo, viramos a esquina e lá na frente, no fim da rua, apareceu uma coisa azul. Fomos andando e a coisa foi mexendo e às vezes embranquecia, o pai falou olha as ondas. Quando a rua acabou e aquilo já era a maior água que eu já tinha visto, entramos numa areia onde era preciso cuidado pra não pisar nos anteninhas, todos andando fora dos buracos, tão grandes que a Alice achou que eles podiam perfeitamente ficar dentro dos buracos em vez de ficar saindo.

E de repente erguemos a cabeça na frente do mar, Alice desandou num choro que só parou no colo do pai. O coração batia junto com as ondas, não sei quanto tempo ficamos ali, o mundo estrondando, até que Alice foi acalmando e continuamos ali, o coração batendo junto com as ondas e um vento que parecia subir da água, molhado e cheiroso.

A mãe chegou e estendeu uma toalha na areia, começou a tirar coisas da sacola e encheu a toalha. A Linalva ficou esquisita de vestido e calça comprida por baixo, foi molhar os pés e eu fui junto, mas a mãe foi me buscar pra passar creme, o pai começou a me avisar dos perigos do mar, a mãe concordando e dizendo escuta teu pai, escuta bem o que o teu pai está dizendo.

Quatro dias depois eu tinha conhecido o mar. Tinha horário de entrar e de sair da água, horário de sol e horário de sombra, hora de passar creme e hora de tomar água, a fundura onde eu podia ir com a Linalva e a fundura até onde podia ir com o pai. A Alice descobriu um arroio cheio de conchinhas, mas a mãe desconfiou de onde devia vir aquela água e a Alice teve que acabar se conformando com as conchas quebradas da praia. Em casa não podia ficar tela aberta, de janela ou de porta, e à noite as casas afundavam na escuridão, a rua não tinha lâmpadas e a criançada não podia brincar fora de casa.

Um velho me mostrou como se pesca com linha, garrafa e anzol, mas levei um dia sem pegar nada, só um beliscão forte no fim da tarde. O velho falou que no dia seguinte eu decerto ia tirar peixe, mas de noite o pai falou:

— Uma semana de praia enjoa qualquer um.

A mãe deu a idéia de visitar uns parentes numa cidade perto, assim a viagem de volta não vai cansar tanto essas crianças, a gente sai cedo pra pegar o almoço e… O pai se entusiasmou e deu a idéia de passarmos também não sei onde, e começaram os dois a riscar a mesa com uma faca: a gente pára aqui, dorme aqui, almoça aqui, dorme mais um dia aqui e visita fulano, depois para uns três dias na casa da tia fulana; e um ficava tirando a faca do outro pra riscar a mesa enquanto falavam, até que deixaram na madeira um mapa, parecia uma espinha de peixe. A mãe levantou e começou a dar ordens. Linalva pega aquilo, arruma isso, cadê a mala menor, e o pai saiu pra trocar o óleo do carro.

Na varanda a gente ouvia, no vento, os anteninhas roendo as costelas do mar, ondas estrondando no lombo de mar, espuma em cima e todos os peixes e mistérios lá embaixo. O vento continuava com um cheiro molhado e quente, tão forte que parecia que o mar rebentava logo depois da varanda, e meu peito foi inchando cheio de sal, siris e conchas, bóias de cortiça, areia, até que desatei a chorar e o peito tornou a ficar pequeno depois.

No dia seguinte, às cinco horas da manhã, alguém começou a me sacudir. A mãe andava pela casa perguntando se ninguém estava esquecendo alguma coisa, e o pai já estava lá fora, esquentando o motor.

E a estação de mar acabou sendo a única que, nas mãos, não me deixou marca.

 
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Domingos Pellegrini Jr.
























Antologia lingua portuguesa Domingos Pelegrini Jr Minha estação de mar

domingo, 15 de novembro de 2015

Lygia Fagundes Telles - O moço do saxofone

O moço do saxofone - Lygia Fagundes Telles




(De “Antes do Baile Verde”, 1970)






 
Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca (1). Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

    Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?

— É o moço do saxofone.
    Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.

— E o quarto dele fica aqui em cima?
    James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.

— Aqui em cima.

    Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.

— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar…

    Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.

— Chifre dói.

    Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.

—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

    Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas…

    Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

    Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?

    Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.

— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!

    Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

    Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

    Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

    Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

    A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho(2) de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.
    James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo…

    Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar…

    Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?


— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.
   
— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.
    O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

    Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.
— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

    Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

    Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
    Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco. 

Vocabulario

1.        Frege-mosca – (pop.) restaurante ruim. Do verbo frigir (fritar).
2.        Aninho – bem estar, aconchego


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Machado de Assis - O caso da vara




O caso da Vara - Machado de Assis, 1891



Notas do bloguista : Damião fica entre a cruz e a espada : penalizado pela escrava Lucrecia; entretanto,  implorando por favores de Sinha Rita, vê-se numa situação de conflito de consciência : deverá ao final escolher entre socorrer Lucrécia ou ajudar Sinhá Rita.
O conto era se passa na época pós-escravagista. Era comum as famílias abastadas terem escravos domésticos. Mesmo após a abolição em 1888, a maioria deles continuou em condição de submissão, de dependência, por falta de outra opção melhor. Na menor falta, desobediência, podiam ser castigados a vara ou com a palmatória. Imperava na época fortíssimo preconceito racial.
Neste conto, Sinhá Rita ensinava ex-escravas (que Machado de Assis as chama de “crias”) a fazer rendas, ou obrigavam as a produzir rendas.
Também era comum na época do conto as famílias mandarem pelo menos um de seus rebentos para o seminário. Ter um padre na família era motivo de orgulho. Era também uma maneira da família contribuir para a pregação da fé cristã, e assim cair nas graças de Deus. Escolhia-se um dos meninos, e mandava-o ao seminário, mesmo contra sua vontade. O pobre coitado tinha que suportar o seminário, para honrar a família. Não foi o caso de Damião, que preferiu fugir. 

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
- Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
- Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
- Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
- Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui!
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
- Descanse; e explique-se.
- Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias (1), de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
- Como assim? Não posso nada.
- Pode, querendo.
- Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
- Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia...
- Não nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte.
Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
- Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
- Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
- Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
- Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca (2), amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia (3), obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
- Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste (4).
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.
- Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
- Não afianço nada, não creio que seja possível...
- Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
- Mas, minha senhora...
- Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer coisa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução - cruel, é certo, mas definitiva.
- Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apopléctica (5).
- Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
- Ande jantar, deixe-se de melancolias.
- A senhora crê que ele alcance alguma coisa?
- Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
- Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
- Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre (6), e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
- Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga (7). João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia (8), e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.
- Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
- Ah! malandra!
- Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
- Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.
- Anda cá!
- Minha senhora, me perdoe!
- Não perdôo, não.
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
- Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa (9), do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.
- Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
- Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
- Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

(1) Cria – escrava, numa época em que não existia o conceito de discriminação, de preconceito, era muito normal chamar escravos de “cria”

(2) Patusca – divertida, brincalhona
(3) Estúrdia - Vida ou comportamento irresponsável
(4) Chiste – humor, graça
(5) Apopléctica – irritada, furiosa
(6) Pedestre – antigamente pedestre poderia se referir a policial ambulante, que trabalhava a pé.
(7) Presiganga – navio-prisão
(8) Obreia – cola feita com farinha de trigo e água
(9) Marquesa – sofá largo, com assento de palhinha


Castigo com palmatória (desenho de Debret) 

Rendeiras. A da esquerda usa bilros, tal qual Lucrecia. Gravura de Rugendas.


Castigo com palmatória (detalhe - desenho de Rugendas)









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