O caso da Vara - Machado de Assis, 1891
Notas do bloguista : Damião fica entre a
cruz e a espada : penalizado pela escrava Lucrecia; entretanto, implorando por favores de Sinha Rita, vê-se
numa situação de conflito de consciência : deverá ao final escolher entre socorrer
Lucrécia ou ajudar Sinhá Rita.
O conto era se passa na
época pós-escravagista. Era comum as famílias abastadas terem escravos domésticos. Mesmo após a abolição em 1888, a maioria deles continuou em condição de submissão, de dependência, por falta de outra opção melhor. Na
menor falta, desobediência, podiam ser castigados a vara ou com a palmatória. Imperava na época fortíssimo preconceito racial.
Neste
conto, Sinhá Rita ensinava ex-escravas (que Machado de Assis as chama de “crias”)
a fazer rendas, ou obrigavam as a produzir rendas.
Também era comum na
época do conto as famílias mandarem pelo menos um de seus rebentos para o
seminário. Ter um padre na família era motivo de orgulho. Era também uma maneira
da família contribuir para a pregação da fé cristã, e assim cair nas graças de Deus. Escolhia-se
um dos meninos, e mandava-o ao seminário, mesmo contra sua vontade. O pobre
coitado tinha que suportar o seminário, para honrar a família. Não foi o caso de
Damião, que preferiu fugir.
Damião fugiu do seminário às onze
horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de
1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que
produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso,
fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde
iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de
um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava
determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde
iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem
vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e
o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que há
de ser, disse ele ao reitor.
- Venha, acudiu este, venha o
grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é
chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo
depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado,
incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de
parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
- Vou pegar-me com Sinhá Rita!
Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário...
Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida
de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a
aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é
que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
- Santo nome de Jesus! Que é
isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar
espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um
empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.
Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia
andando.
- Mas que é isto, Sr. Damião?
bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui!
Damião, trêmulo, mal podendo
falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
- Descanse; e explique-se.
- Já lhe digo; não pratiquei
nenhum crime, isso juro, mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele
espantada, e todas as crias (1), de casa, e de fora, que estavam sentadas em
volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os
bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda,
crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que
trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o
seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão,
pediu-lhe que o salvasse.
- Como assim? Não posso nada.
- Pode, querendo.
- Não, replicou ela abanando a
cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu
pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido.
Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
- Pode muito, Sinhá Rita;
peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma
de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela
casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as
súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era
santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as
repugnâncias e um dia...
- Não nada, nunca! redargüia
Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua
morte.
Sinhá Rita hesitou ainda muito
tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
- Meu padrinho? Esse é ainda pior
que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
- Não atende? interrompeu Sinhá
Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe
que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em
casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que
precisava muito de lhe falar imediatamente.
- Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste.
Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço
que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para
ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe
o nariz, rindo:
- Ande lá, seu padreco, descanse
que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na
certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca (2),
amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e,
apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela
contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça.
Uma destas, estúrdia (3), obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de
Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita
pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
- Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça,
aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a
tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião
olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com
uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos.
Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não
interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se
não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira
por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste (4).
Nisto, chegou João Carneiro.
Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou
tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que
ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que
um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João
Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos;
afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar
"pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.
- Qual castigar, qual nada!
interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
- Não afianço nada, não creio que
seja possível...
- Há de ser possível, afianço eu.
Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de
arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu
afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
- Mas, minha senhora...
- Vá, vá.
João Carneiro não se animava a
sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe
importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra
qualquer coisa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente
com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se
este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era
ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um
escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o
peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados
de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por que lhe não
ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo
persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era
capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente,
apoplético, morto! Era uma solução - cruel, é certo, mas definitiva.
- Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que
esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do
papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria
acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes.
Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de
Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado
continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apopléctica (5).
- Vá, vá, disse Sinhá Rita
dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro
meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou;
exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado.
Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
- Ande jantar, deixe-se de
melancolias.
- A senhora crê que ele alcance
alguma coisa?
- Há de alcançar tudo, redargüiu
Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de
Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao
jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho.
Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa,
ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
- Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala.
As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita,
e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar
delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse
mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram
ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir
por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte
das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma
modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando
depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota
que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
- Ande, senhor Damião, não se
faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão
obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e
o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não
esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça
metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro,
como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde
caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite . Que
estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava
cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo
calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre (6), e aí
vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se
a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia
saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou
se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior
era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca
velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou
esquecimento de João Carneiro.
- Tenho um rodaque do meu
defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de
arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu
um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não
estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não,
senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube
ou na presiganga (7). João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre
não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente
dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou
assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá
iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a
casa dele.
Damião acabou de ler a carta e
olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá
Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta
escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais
nos vemos". Fechou a carta com obreia (8), e deu-a ao escravo, para que a
levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no
capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele
negócio era agora dela.
- Hão de ver para quanto presto!
Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos.
Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só
Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita
chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e
agarrou-a por uma orelha.
- Ah! malandra!
- Nhanhã, nhanhã! pelo amor de
Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
- Malandra! Nossa Senhora não
protege vadias!
Lucrécia fez um esforço,
soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e
agarrou-a.
- Anda cá!
- Minha senhora, me perdoe!
- Não perdôo, não.
E tornaram ambas à sala, uma
presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não,
que a havia de castigar.
- Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da
marquesa (9), do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena,
bradou ao seminarista.
- Sr. Damião, dê-me aquela vara,
faz favor?
Damião ficou frio... Cruel
instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a
pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
- Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na
direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais
sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
- Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e
os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de
um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair
do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.
(1)
Cria
– escrava, numa época em que não existia o conceito de discriminação, de preconceito, era muito
normal chamar escravos de “cria”
(2)
Patusca
– divertida, brincalhona
(3)
Estúrdia
- Vida ou comportamento irresponsável
(4)
Chiste
– humor, graça
(5)
Apopléctica
– irritada, furiosa
(6)
Pedestre
– antigamente pedestre poderia se referir a policial ambulante, que trabalhava
a pé.
(7)
Presiganga
– navio-prisão
(8)
Obreia
– cola feita com farinha de trigo e água
(9)
Marquesa
– sofá largo, com assento de palhinha
Castigo com palmatória (desenho de Debret) |
Castigo com palmatória (detalhe - desenho de Rugendas) |
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