segunda-feira, 16 de março de 2020

Casa dos Senhores Formigais - José Saramago





Casa dos Senhores Formigais – José SaramagoExtraido de “Pequenas Memórias”


Nota do bloguista : esta pequena memória data do final dos anos 20. Descreve o rigorosíssimo respeito, quase idolatria, que os empregados tinham por seus patrões. Saramago conta como, criança ainda, foi paparicado pela família dos Formigais, patrões de sua tia. 


Em casa dos Senhores Formigais (quando se falava deles empregava-se sempre o plural) é que estava a servir como criada de dentro a minha tia Maria Natália (havia também a criada de fora, que era a que saía à rua para fazer compras ou por outros deveres no exterior). Lembro-me de estar uma manhã (teria ido recolher a tia para o passeio dominical, semana sim, semana não?) na cozinha da casa (porque nunca tinha visto nada igual fascinavam-me o fogão negro, as portinholas de diferentes tamanhos com as suas molduras de reluzente cobre, a caldeira onde sempre havia água quente) e aparecer ali o velho Senhor Formigal, acompanhado pela esposa, a Dona Albertina, igualmente avançada nos anos, mas muito bem parecida. A cozinheira e as duas criadas, a de dentro e a de fora, fizeram a vénia e alinharam-se a um lado, à espera de ordens, mas o Senhor Formigal, que usava pêra e bigode, branquíssimos como o cabelo, viera só para observar (por gentileza, não que ele fosse médico ou enfermeiro) o joelho que eu havia escalavrado na Avenida Casal Ribeiro.
Olhou--me com ar condescendente, protector, e perguntou: "Então, feriste a rótula?" Nunca mais me esqueci da frase. O que eu tinha realmente ferido não era a rótula, mas o joelho, porém, ele devia ter pensado que esta palavra era demasiado vulgar, indigna da sua pessoa. Baixei os olhos para o maltratado engonço, e só fui capaz de dizer: "Sim senhor." Fez-me uma festa na cara e foi-se embora, levando atrás de si a Dona Albertina. A tia Maria Natália impava de orgulho, a cozinheira e a criada de fora olhavam-me como se uma auréola celestial rodeasse a minha cabeça, como se no insignificante sobrinho da criada de dentro tivessem desabrochado de repente méritos e valores até aí desconhecidos, mas que a cuidada e branca mão do Senhor Formigal, ao roçar-me de leve a face e o cabelo cortado curto, obrigara finalmente a florescer.

Os Senhores Formigais iam sair, provavelmente para a missa, mas a Dona Albertina ainda voltou à cozinha. Trazia um cartuchinho de pastilhas de chocolate: "Toma, são para ti, que te façam bem ao joelho", disse, e foi-se embora, deixando um rasto de cheiro a pó-de-arroz e a rótula no seu lugar. Não sei se foi desta vez que a minha tia me levou a ver o quarto dos senhores, o que não. Era pomposo, solene, quase eclesiástico, todo adornado de panejamentos vermelhos, o dossel do leito, a colcha, os almofadões, os cortinados, as tapeçarias das cadeiras: "É tudo damasco do melhor, do mais rico", informou a tia, e quando eu lhe perguntei por que tinha aquele sofá aos pés da cama a forma de um S, respondeu: "Aquilo é uma conversadeira, o senhor senta-se num lado, a senhora senta-se no outro, e assim podem conversar sem terem de virar a cabeça para se olharem, é muito prático." Estando nós ali, teria gostado de experimentar, mas a tia Maria Natália nem sequer me deixou passar do limiar da porta. Pior sorte tivemos depois, eu e as pastilhas de chocolate. Antes de sair da casa dos Senhores Formigais mastiguei umas poucas que me deixaram na boca um sabor antecipado de paraíso, porém a tia Maria Natália foi clara e terminante: "Não comas mais, que te podem fazer mal", e eu, bom menino como sempre, obedeci. Como não tenho lembrança de andar a passear pelo Parque Eduardo VII com um cartucho de pastilhas de chocolate na mão e ainda por cima proibido de lhes meter o dente, devemos ter ido directamente dali para a Rua Ferrão Lopes, onde a minha tia me deixou depois de ter narrado, posso imaginar com que luxo de pormenores, o episódio da cozinha, os mimos feitos ao sobrinho, o afago do Senhor Formigal, e estas pastilhas de chocolate deu-lhas a senhora, que boa é a senhora. A noite chegou, e, como nesse tempo, sem rádio para ouvir as cantigas das revistas, ainda nos deitávamos com as galinhas, não tardou muito que minha mãe me mandasse para a cama. Meus pais e eu dormíamos no mesmo quarto, eles na sua cama de casal, eu num pequeno divã, a bem dizer um catre, por baixo da parte esconsa da água-furtada. No outro lado, em cima de uma cadeira encostada à parede, tinha ficado o desejado cartucho com as pastilhas de chocolate. Quando minha mãe e meu pai se vieram deitar, primeiro ele, como sucedia sempre, depois ela, que ainda ficava a lavar a louça ou a passajar alguma peúga, eu tinha os olhos fechados, fingindo que dormia. Apagou-se a luz, adormeceram eles, mas eu consegui não render-me ao sono. Noite dentro, no quarto às escuras, levantei-me devagarinho, pé ante pé fui buscar o cartucho e, em três passos furtivos, voltei para a cama e entre os lençóis me enfiei, feliz, a mastigar as dulcíssimas pastilhas, até que deslizei para a inconsciência. Quando abri os olhos, de manhã, encontrei, esborrachado debaixo de mim, o que restava do ágape nocturno, uma pasta castanha de chocolate, pegajosa e mole, a coisa mais suja e repugnante que os meus olhos alguma vez tinham visto. Chorei muito, de desgosto, mas também de vergonha e frustração, e foi talvez por isso que os meus pais não me castigaram nem repreenderam. Em verdade, para infelicidade já tinha a minha conta. Havia cedido à tentação da gula e a gula me castigava sem pau nem pedra.
Saramago





sexta-feira, 6 de março de 2020

antologia lingua portuguesa anuncio abuso contra escravo



Anuncio em jornal, em 16 de setembro de 1857, de abuso contra escravo


Nota do bloguista : este é um anuncio em jornal, de 1857, dando uma idéia de que era a escravatura no Brasil na época. O denunciante não se identifica, e deve ter feito uma investigação para chegar aos nomes dos envolvidos. Observe o linguajar da época, e a elegância que as pessoas tinham no uso da língua portuguesa. 

Sr. Redator – Rogo-lhe a publicação de um fato criminoso que se passou na estrada do Campo Novo, distante da cidade de Bragança uma légua, quando estes dias por ali passei de viagem.
Em uma casinha na estrada onde mora João de Souza Dias Guimarães castigava a mulher deste a (sic) uma escrava, e este estava na cidade de onde chegou espirituoso (1), e informado do caso passou a dar pancadas na dita escrava com um pau que trazia, e dizem que ela estava amarrada em um banco pelo que quebraram-se-lhe alguns ossos e caiu-lhe a madre (2), e como no regresso a minha cidade de Bragança, soube que a escrava ainda estava mal, e estava-se tratando na descida do Lavapés em casa de um irmão do mesmo Souza, e que deste fato não se tinha feito corpo de delito por não ter chegado ao conhecimento das autoridades policiais este crime de natureza brutal que ligeiramente fica narrado.
O Viajante.

(1)  Espirituoso – embriagado
(2)  Caiu-lhe a madre – expressão idiomática antiga ?? “Madre”, na época era “útero”.