sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Luiza (Graciliano Ramos)

Luiza
(Graciliano Ramos)

Extratido de “Caetés”, 1933

Nota do blogger : João Valério, secretamente apaixonado por Luiza, tasca-lhe dois beijos inesperados na nuca da amada. Esta, indignada, reprova o atrevimento. João Valério sai remoendo as consequencias deste ato impensado. Mas, se impensado, também inevitável, instintivo. João Valério pensa nas fofocas, no marido da Luiza, na reprovação dos amigos, no seu afastamento do meio social que ele tanto aprecia.

Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeça. Fui colocar a xícara na bandeja. E dispunha-me a sair, porque sentia acanhamento e não encontrava assunto para conversar.

Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada:

— O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu...

Não pôde continuar. Dos olhos, que deitavam faíscas, saltaram lágrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo:

— Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice.

— É bom que se vá embora, gemeu Luísa com o lenço no rosto.

— Foi uma tentação, balbuciei sufocado, agarrando o chapéu. Se a senhora soubesse... Três anos nisto! O que tenho sofrido por sua causa... Não volto aqui. Adeus.

Retirei-me aniquilado. Na rua considerei com assombro a grandeza do meu atrevimento. Como fiz aquilo? Deus do céu! Lançar em tamanha perturbação uma criaturinha delicada e sensível! Tive raiva de mim. Animal estúpido e lúbrico.

E que escândalo! Naturalmente ela avisaria o marido. Adrião Teixeira com certeza ia dizer-me: “Você, meu filho, não presta.” E mandaria balancear a casa Teixeira & Irmão, onde eu era guarda-livros e interessado, para afastar-me da sociedade. O inventário é rápido num estabelecimento que só vende aguardente, álcool e açúcar. Vitorino Teixeira, acavalando os óculos de ouro no grosso nariz vermelho, abriria o cofre, contaria o meu saldo com lentidão e, pondo o dinheiro sobre a carteira, deixaria cair, naquela voz morosa e nasal, que dá arrepios, este epílogo arrasador: “Tome lá, João Valério, veja se confere. Nós julgávamos que o Valério fosse homem direito. Enganamo-nos: é um traste.” E eu sairia escorraçado, morto de vergonha.

Segredo que quatro pessoas sabem transpira: alguma coisa havia de propalar-se na cidade. D. Engrácia teceria mexericos; o Neves forjaria uma calúnia; Nicolau Varejão narraria mentiras espantosas. Assim pensando, eu experimentava grande mal-estar, menos pelos dissabores que as chocalhices me trariam que por antever misturado a elas o nome de Luísa.

Eu amava aquela mulher. Nunca lhe havia dito nada, porque sou tímido, mas à noite fazia-lhe sozinho confidências apaixonadas e passava uma hora, antes de adormecer, a acariciá-la mentalmente. Até certo ponto isto bastava à minha natureza preguiçosa.

Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo estirado cavaqueando — e era para mim verdadeiro prazer tomar parte em duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com enormes bocejos, lá se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de comércio; o resto era filosofia.

Quando vinha o advogado Barroca, sério, cortês, bem aprumado, a sala se animava. Também aparecia com frequência o tabelião Miranda, Miranda Nazaré, jogador de xadrez, com a filha, a Clementina. E o vigário, o dr. Liberato, Isidoro Pinheiro, jornalista, pequeno proprietário, coletor federal, tipo excelente. Luísa, ao piano, divagava por trechos de operetas; Evaristo Barroca, com os olhos no livro de músicas, tocava flauta.

Uma estranha doçura me invadia, dissipava os aborrecimentos que fervilham nesta vida pacata, vagarosamente arrastada entre o escritório e a folha hebdomadária de padre Atanásio. Os velhos móveis, as paredes altas e escuras, quadros que não se distinguiam na claridade vaga das lâmpadas de abat-jour espesso, que uma rendilha pardacenta reveste, tudo me dava sossego. Fugiam-me os pensamentos e os desejos. A religiosidade de que a minha alma é capaz ali se concentrava, diante de Luísa, enquanto, entranhados nas combinações de partidas rancorosas, Adrião grunhia impertinente e Nazaré piscava os olhinhos de pálpebras engelhadas, coçava os quatro pelos brancos que lhe ornam o queixo agudo. Vitorino dormia. E Clementina, de cabeça à banda, procurava os cantos e esfregava-se nas ombreiras das portas.

Coitada. Nunca achou quem a quisesse. Tenho pena dela. Não a tornaria a ver encolhida à sombra do piano, fascinada pelos bigodes de Evaristo, negros e densos. Nem veria as cortinas pesadas, os montes de revistas, a mesa do xadrez. Tudo perdido.

Percorri à toa as ruas desertas, envoltas num luar baço, tentando achar tranquilidade no pó e no calor de janeiro. Mais tarde, na hospedaria de d. Maria José, curti uma insônia atroz, rolei horas no colchão duro, ouvindo os roncos dos companheiros de casa e conjecturando o que me iriam dizer no dia seguinte os irmãos Teixeira.

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Mensagem (Aldo Cabral e Cicero Nunes)

Mensagem
(Aldo Cabral e Cícero Nunes)

Nota do blogger : considero a melhor versão gravada, a de Isaura Garcia (1946).  Vanusa gravou uma versão balada em 1968. Quem viveu o tempo das cartas, vai curtir esses versos. Sabe quanta ansiedade uma carta fechada nos traz.

Quando o carteiro chegou
E o meu nome gritou
Com uma carta na mão
Ante surpresa tão rude
Nem sei como pude chegar ao portão

Lendo o envelope bonito
O seu sobrescrito eu reconheci
A mesma caligrafia que me disse um dia
"Estou farto de ti"

Porém não tive coragem
de abrir a mensagem
Pela incerteza, eu meditava e dizia :
"Será de alegria, será de tristeza?"

Quanta verdade tristonha
Ou mentira risonha uma carta nos traz ?
E assim pensando, rasguei sua carta e queimei
Para não sofrer mais

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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Caminho pro interior (Bruna Caram)

Caminho pro Interior

(Bruna Caram)

A manhã nasceu lá fora
O meu tempo é mesmo agora
Já vesti a roupa colorida
Na cabeça vem aquele verso
Sobre o meu novo universo

A canção que é minha preferida
Nesse rio sei andar na beira
Desvario é essa cachoeira
Trilha subindo a mata
A vista que me arrebata

Essa estrada me chamou
Eu vou… caminho pro interior

Quaresmeira se encheu de flores
Já calcei o velho tênis
Não tirei nosso bóttom da mochila
Ter de novo sua mão na minha
A razão por que andou sozinha
Nem sei mais, um sentimento não vacila

Escutei sua voz no vento
Coração salta no meu peito
Estou de alma lavada
Não chove mais na minha estrada
Seu olhar já me chamou
Eu vou…Caminho pro interior
Seu olhar já me chamou
Eu vou…Caminho pro interior

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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Acertei no milhar (Geraldo Pereira e W.Batista)

Acertei no milhar(Geraldo Pereira & Wilson Batista)

Nota do blogger : “Morengueira”, citado na letra, trata-se do cantor Moreira da Silva, a quem a música foi oferecida para gravação. Seu apelido era “Kid Morengueira”.



Etelvina !! (o que é, Morengueira?)
Acertei no milhar!
Ganhei quinhentos contos, não vou mais trabalhar!
Você dê toda roupa velha aos pobres
e a mobília podemos quebrar
(breque)
"Isso é pra já, vamos quebrar. Pam, pam, bum, etc...
“Quebra o sofazinho, guarda roupas, compra outro minha filha"

Etelvina vai ter outra lua-de-mel
você vai ser madame
vai morar num grande hotel
eu vou comprar um nome não sei onde
de Marquês Morengueira de Visconde
um professor de francês mon amour
eu vou mudar seu nome pra Madame Pompadour

Até que enfim agora sou feliz
vou passear a Europa toda até Paris
e nossos filhos, oh, que inferno
eu vou pô-los num colégio interno
me telefone pro Mané do armazém
porque não quero ficar devendo nada a ninguém
E vou comprar um avião azul
para percorrer a América do Sul

Mas de repente, mas de repente
Etelvina me chamou está na hora do batente
Mas de repente, Etelvina me chamou,
- Se acorda, Vagulino! Saia pela porta de trás que na frente tem gente.
Foi um sonho, minha gente!


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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Um homem chamado Alfredo (Toquinho)

Um Homem Chamado Alfredo
(Toquinho)

Nota do blogger : eu sempre julguei Toquinho apenas um bom instrumentista, deixando as composições das letras para o Vinicius. Estava eu enganado.

O meu vizinho do lado
Se matou de solidão.
Abriu o gás, o coitado,
O último gás do bujão.

Porque ninguém o queria,
Ninguém lhe dava atenção.
Porque ninguém mais lhe abria
As portas do coração.
Levou com ele seu louro
E um gato de estimação.

Ah! Quanta gente sozinha,
Que a gente mal adivinha.
Gente sem vez para amar,
Gente sem mão para dar,
Gente que basta um olhar, quase nada...

Gente com os olhos no chão
Sempre pedindo perdão.
Gente que a gente não vê
Porque é quase nada.

Eu sempre o cumprimentava
Porque parecia bom.
Um homem por trás dos óculos,
Como diria Drummond.

Num velho papel de embrulho
Deixou um bilhete seu
Dizendo que se matava
De cansado de viver.
Embaixo, assinado Alfredo,
Mas ninguém sabe de quê.

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Tarde em Itapuã (Vinicius de Moraes)


Tarde em Itapuã - Vinicius de Moraes

Nota do blogger : esta letra está nesta antologia porque é um hino à preguiça, à vadiagem !  O que dizer de uma letra que descreve uma leve embriaguez dessa maneira “…bem devagar ir sentindo / a Terra toda rodar…” ?

Um velho calção de banho
Um dia prá vadiar !
O mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar

Depois, na Praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de côco

É bom!
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

Enquanto o mar inaugura
Um verde novinho em folha
Argumentar com doçura
Com uma cachaça de rolha

E com olhar esquecido
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo
A Terra toda rodar

Depois sentir o arrepio
Do vento que a noite traz
E o diz-que-diz-que macio
Que brota dos coqueirais

E nos espaços serenos
Sem ontem nem amanhã
Dormir nos braços morenos
Da lua de Itapuã

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domingo, 1 de novembro de 2015

Geni e o zepelim (Chico Buarque)

Geni e o zepelim
Chico Buarque de Holanda
Nota do blogger : Esses versos do Chico tem cara de cordel. É um hino à hipocrisia e ao preconceito. Geni, de depravada e condenada, torna-se heroina. Mas depois de passado o perigo, volta a ser repudiada.


De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada


Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato

E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia

Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: "Mudei de ideia!"
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir

Essa dama era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro

Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos

Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco

Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado

Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!



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