segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020



Deolinda

(de “Pequenas memórias”, José Saramago)



Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar ("A menina quer namorar comigo?", "Pois sim, se são boas as suas intenções"), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais, conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas da roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, corno me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós), mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Elaa era muito bonita, de rostinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, deveria pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos.  Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado  adno desde então, tinha a pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.



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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

ANTOLOGIA DA LINGUA PORTUGUESA

Neste blog, uma seleção dos melhores textos escritos por autores da língua portuguesa. Claro, os critérios foram pessoais, puramente meus; há quem discorde das minhas escolhas. Como toda antologia, haverá sempre as ausências e as injustiças;  e também as presenças que uns e outros julgarão serem não meritórias.

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domingo, 16 de julho de 2017

Moda da barriga (João Nogueira)

Moda da Barriga - João Nogueira


No dia que a barriga virar moda
realmente vai ser... fogo pra poder me aturar *
Ninguém vai resistir aos meus encantos
e a tv do Silvío Santos vai querer me contratar

Na Globo o galã vai ser o Jô
na Tupi, veja o senhor,
vai ser o Sérgio Cabral
Na lista dentre os 10 mais elegantes
as presenças mais constantesdo Tim Maia e o Imperial *

A Wilza vai fazer a Gabriela *
no papel lá da novela e vai ser sensacional
Vinícius vai ganhar um novo ofício
vai ser manequim famoso da costura nacional

Os bares vão vender muita cerveja
e o padeiro, ora veja, vai vender muito mais pão
As moças pilúlas não vão tomar
e o Brasil vai aumentar a sua população

Por isso realmente vai ser fogo
se a barriga virar moda
vai dar grande confusão.

* Nota do blogger : supostamente João Gilberto, para rimar com “virar moda”, originalmente teria escrito “vai ser foda”. Por algum motivo (talvez censura oficial, ou mesmo um ato de auto-censura) mudou para “vai ser fogo”.
* Carlos Imperial
“A Wilsa (Carla) vai fazer a (novela)  Gabriela (, cravo e canela)”,

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Homem de 40 (João Nogueira)

Homem de 40 - João Nogueira


Olha só quem chegou
É o homem da faixa dos 40 e tal
Diz que é o bom... falador...
Chega botando banca com o pessoal


Tá prá nós, seu doutor,
Ele que não nos leve a mal
Já deve ter feito o seu abdominal
Na praia corrida matinal


Pra manter sempre em forma o visual
Só vive tirando a pressão arterial
Só come comida natural
O malandro vem cheio de moral


Procura de toda a maneira mostrar boa pinta
Que é pra parecer que tem menos de 30
E faz pose até pra jogar futebol
Já diminuiu com bravura o seu birinaite *
Só fuma cigarro prá light
Que é pra controlar o seu colesterol


No seu local de trabalho
Ele impõe respeito
Por isso ele é cheio de frases de efeito
Tornando o ambiente bastante formal


Mas faz coleção de revista de mulheres nuas
Se excita nos cines prives e nas ruas
E diz que na cama é o maioral


*Birinaite = bebida alcoolica, consumida a noite (Birita + night)

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Filho único (Erasmo Carlos)

Filho único - Erasmo Carlos 






Ei, mãe, não sou mais menino
Não é justo que também
queira parir o meu destino
Você já fez a sua parte
me pondo no mundo
Que agora é meu dono, mãe
e nos seus planos não estão você

Proteção desprotege
e carinho demais faz arrepender
Ei, mãe, já sei de antemão
que você fez tudo por mim
e jamais quer que eu sofra
Pois sou seu único filho
Mas contudo não posso fazer nada

A barra tá pesada, mãe
Mas quem tá na chuva tem que se molhar
No início vai ser difícil *
Mas depois você vai se acostumar.
* Nota do blogger : ao escrever “no inicio vai ser difícil”,  supostamente Erasmo quis dizer que “ia sair de casa, morar sozinho,e que no inicio vai ser difícil”. Deu aí ares de que a letra ficou incompleta, que o autor poderia continuar com a letra justificando o “inicio difícil”.

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Pra que discutir com madame ? (Haroldo Barbosa e Janet Almeida)

Pra que discutir com madame ? - Haroldo Barbosa e Janet Almeida

Nota do blogger : por sua origem popular e negra, até o final dos anos 50, o samba era hostilizado pelas elites conservadoras, que se irritavam com a popularidade do samba. Para a elite, a cultura brasileira deveria ser refinada, européia; por isso não se conformavam em ver o samba, como escreveu uma socialite a época, “ fruto de compositores desdentados e mal vestidos”, fazer sucesso. .
A madame em questão (da música) existiu, e se chamava Magdala da Gama Oliveira. Era uma crítica de radio e tinha uma coluna no jornal Diario de Notícias, quando então era um dos mais importantes jornais do Brasil. Na sua coluna, madame Magdala descia a lenha no samba.
Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba,
Madame diz o que samba tem pecado
Que o samba é coitado e devia acabar,

Madame diz que o samba tem cachaça,
mistura de raça mistura de cor,
Madame diz que o samba democrata,
é música barata sem nenhum valor,

Vamos acabar com o samba,
madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra que discutir com madame ?

No carnaval que vem também concorro
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na Avenida entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto

Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno meu Deus que horror
O samba brasileiro democrata
Brasileiro na batata é que tem valor.


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Fui ao dentista–Moreira da Silva

Fui Ao Dentista - Moreira da Silva



Fui ao dentista, pra chumbar uma panela,Mas o gajo achou que ela, não podia obturar.
Ele me disse, "vou mudar toda a mobília,
Tu vais ver que maravilha, Morengueira vai ficar.
Arranco tudo, arranco até o maxilar…"
- Mas doutor, o que está me doendo é o pré-molar.
Eu acho que vou ter um atrito com o senhor… -

Mas quando eu vi o boticão que ele trazia,
Minha tripa ficou fria, começou a tremedeira.
Quem foi que disse que o papai a boca abria,
Pra espetar a anestesia, na gengiva do Moreira.
Mas tem que ser, queira ou não queira.

Em vista disso, pra acabar com o meu berreiro,
O doutor me deu um cheiro, e eu ferrei numa soneca
E quando acordo, nem te conto camarada,
Minha boca está chupada, e a gengiva está careca.
Meu panelão levou a breca…

Enquanto espero que a gengiva murcha e seca,
Pra moldar a perereca, provisória no bocão.
Tudo o que é efe, sai comprido, sai soprado,
Que até fico encabulado, com tamanha assopração:
”Farora fofa faz fofoca no feijão.”

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Moreira da Silva