domingo, 15 de março de 2015

A casa de pensão - Aloisio de Azevedo

A casa de pensão

Aloisio Gonçalves de Azevedo
(Extraído do livro “A casa de pensão”, 1884)

 

Morreu no dia seguinte.

A família ficou pobre. Foi preciso vender o melhor de dois prédios que restavam, para saldar as dívidas do defunto. A viúva principiou então a tomar encomendas de costura e de engomagem. Isso, porém, não bastava; era necessário, a todo o transe, que o menino continuasse nos estudos. Em tal aperto, lembrou-se a pobre mãe de admitir hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e prestava-se admiravelmente para a coisa.

Vieram os primeiros inquilinos; arranjaram-se fregueses para o almoço e jantar, e o órfão prosseguiu nas suas aulas. Dentro de pouco tempo, o sobrado da viúva de Lourenço era a mais estimada e popular casa de pensão do Rio de Janeiro.

Foi nela que Janjão se fez homem. Aí o viram bacharelar-se e aí se matriculou na Escola Central. A irmã respeitava-o como a um pai.

Amélia, por conseguinte, cresceu em uma — casa de pensão. Cresceu no meio da egoística indiferença de vários hóspedes, vendo e ouvindo todos os dias novas caras e novas opiniões, absorvendo o que apanhava da conversa dos caixeiros e estudantes irresponsáveis; afeita a comer em mesa redonda, a sentir perto de si, ao seu lado, na intimidade doméstica — homens estranhos, que não se preocupavam com lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito nu.

Ainda assim deram-lhe mestres. Aprendera a ler e a escrever, tocava já o seu bocado de piano e — se Deus não mandasse o contrário — havia de ir muito mais longe.

Um novo desastre, veio, porém, alterar todos planos: a viúva de Lourenço, depois de dois meses de cama, sucumbiu a uma pneumonia. João Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se mulher por um daqueles dias; parentes — não os tinham... capitais — ainda menos... Como, pois, sustentar a casa de pensão?... Oh! Era preciso despedir os hóspedes, alugar o prédio, abandonar os estudos e obter um emprego.

Arranjou-o de fato — na estrada de ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo a casa de pensão e foi mais a irmã residir em companhia de uma francesa, muito antiga no Brasil, e que durante longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta.

Chamava-se Mme. Brizard. Era mulher de cinqüenta anos, viúva de um afamado hoteleiro, que lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia de apólices da dívida pública.

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O brinquedo roubado-Humberto de Campos

O brinquedo roubado

Extraído de “Memórias”, 1933

Nota do bloguista : o livro "Memórias" de Humberto Campos e memorável. Longo e agradabilíssimo de se ler, um dos meus livros favoritos, conta as mudanças constantes na vida do autor, uma vida bastante incomum, regada de altos e baixos. Narrado em primeira pessoa, como toda memória deve ser, é uma autobiografia imperdivel, como se pode notar no texto que segue :  

    A nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para Parnaíba, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procuras se estabelecer o contato do meu coração com o mundo, ia se formando na minh’alma um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas pelo Destino.
    Foi a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela injustiça.
    Eu fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu perdi aos seis anos, e, depois órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno vidro, dos de Xarope de Cambará. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a Parnaíba, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior encanto das minhas tardes vadias, ás vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas árvores à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve, também, uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis: entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote (1) no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães. Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre. Fazia, em suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos, depois de servidos... Todos meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino pobre. Nenhum vinha da loja.
    É de imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha mãe, em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia, que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.
    Olhos ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequeno. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino órfão, mas infeliz que as outras crianças, e que, por isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.
    Quando ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.
    — Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis.
    — Dois, não; três... — declarou o dono da loja.
    Recontou os brinquedos e insistiu:
    — Falta um... Diga lá que falta um...
    Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.
    Não me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, ás crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.
    Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que possuía. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.
     E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele.

(1) Cornelio Nepote - (Gala Cisalpina, c. 100 a.C. - Roma c. 25. a.C), biógrafo e historiador romano.


Humberto Campos

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Dindinha–Humberto de Campos

Dindinha

Humberto de Campos
Extraído de “Memórias”, 1933


Dos meus avós paternos e maternos, foi o único que eu conheci. Era mãe de meu pai, e chamava-se Emídia. Mas todos nós, seus netos, lhe dávamos o tratamento de Dindinha.
Conheci-a em 1893, ao chegar, pequeno e órfão, a Parnaíba. Era uma velha gorda, limpa, alegre e branca. Dava aquela impressão que Fialho de Almeida tivera diante de outra figura feminina, de uma honrada senhora esculpida em toucinho. Estando com todos os filhos sobreviventes em boas condições de fortuna, tinha vida farta e sossegada. Vivia, por esse tempo, com meu tio Emídio, cuja família a tratava com desvelo e carinho. Todos os dias meu tio Feliciano e meu tio Franklin, já encarnecidos, iam vê-la e pedir-lhe a bênção. Morava em um quarto espaçoso, que se comunicava com a sala de jantar. Deitada em uma rede branca e de varandas largas, conservava sempre ao lado, armada paralelamente, outra rede, destinada à neta, ou cria caseira, que lhe fazia companhia. O seu maior encanto era escutar a leitura de romances, feita pelas pessoas da casa. Interessava-se pelos personagens dos dramas, como se fossem gente do seu conhecimento e da sua amizade. E assim era que, à custa dos olhos alheios, conhecia quase toda a obra, até então editada, e traduzida, de Júlio Verne, de Ponson, de Escrich, de Alexandre Dumas, de Richebourg, de Adolphe Melot. O seu quarto era, por isso mesmo, um pequeno centro literário, povoado de sombras felizes ou desgraçadas, saídas de romances líricos ou tormentosos, e cuja existência era ali comentada e discutida. Isso atraía as netas já moças, ou pouco mais que meninas, que se alternavam na leitura, transmitindo umas às outras o assunto do capítulo porventura lido na sua ausência.
Nós, os netos pequenos, tínhamos, também, uma atração especialíssima naquele quarto em que a velhice aguardava a mansa visita da morte. É que os meus tios levavam sempre, para a velha mãe, frutas e guloseimas, que ela não raro distribuía pelos visitantes miúdos. Foi ali, no seu quarto, que travei relações com a doce e tenra marmelada portuguesa, que vinha em pequeninas latas redondas, e que era partida em talhadas flexíveis e morenas. Essa marmelada, e algumas frutas, levavam-me a tomar a bênção à pesada senhora duas e, não raro, três vezes por dia.
Não me lembro se, além dessas manifestações de prodigalidade que me seduziam, essa minha avó me dava a mim, seu neto órfão, outra demonstração de carinho. Parece-me que não. Minha memória infantil guardou, apenas, a lembrança da sua figura, do seu quarto, dos seus romances e da sua marmelada. Depois, só me recordo que, indo um dia, à tarde, à casa de meu tio Emídio, encontrei-a com as janelas todas abertas e, na sala, um grande caixão preto, com enfeites de galão dourado. Não havia lágrimas nem soluços. Apenas tristeza, e conversas em voz baixa. Meu tio, vestido de preto, espalhava pela sala e pelos compartimentos próximos uma esquisita mistura de aguarrás e ácido fênico, destinada, parece, a disfarçar o mau cheiro do corpo em decomposição.
Não sei de que morreu, nem como. Parece-me, porém, que foi do coração. Eu tinha oito anos e no cérebro não cabia tudo. Sei, apenas, e com certeza, que, a mandado de minha mãe, fui me sentar na pedra da calçada e que, metido na minha roupinha nova, olhava dali com uma superioridade orgulhosa os meninos do sr. Antônio Martins Ribeiro, morador da casa fronteira, os quais deviam estar com enorme inveja de mim, pois a avó que tinha morrido era a minha, e não a deles.
E assim foi que, embora por pouco tempo, eu tive uma avó.

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A enferma–Joaquim Paço D´Arcos

A enferma

Joaquim Paço D´Arcos
(Joaquim Belford Correia da Silva (Lisboa, 1908 - 1979)
Extraído de “O caminho da culpa”

Reentrada na casa de saúde, Eugenia Maria recolheu ao quarto, onde pediu que lhe servissem o jantar. Mal tocou no que lhe ofereciam, tão falha estava de apetite e de disposição para comer.

Amelia, que não ficava de serviço, de noite, veio, antes de se retirar, despedir-se de sua doente :

- Então hoje é que foi uma grande ausência, Senhora Dona Eugenia ? Muito gostei de saber que tinha ido distrair-se.

- Grande distração, não haja dúvida...

- Sempre deve ter sido melhor do que estar para aqui metida. Nem, a bem dizer, a Senhora Dona Eugenia precisa de continuar aqui...

No estado de espirito que estava, todas as palavras a feriam, todos os comentários e conselhos a importunavam; nem se sentia com paciência para estabelecer a menor conversa. Por isso, com laconismo, limitou-se a indagar :

- Qual de vocês fica esta noite de serviço ?

- A Arminda, minha Senhora – respondeu a interrogada. Percebendo que a doente não desejava prolongar o diálogo – Então, até amanhã, e uma noite sossegadinha.

Ela ficou só, para a noite inteira... sossegadinha ...

Não se ouvia qualquer rumor, a não ser o dos raios teimosos no jardim; uma quietação muito grande tombara, de volta com a treva, sobre a casa de saúde, calando o gemido dos enfermos, embalando a própria dor, envolvendo em paz e em mistério o grande albergue do sofrimento. Noite após noite o mesmo manto de silêncio caia, cobrindo tudo, a casa grande, os jardins, a angústia dos doentes, o seu tormento íntimo e atroz. E a paz da noite não findava; a paz da noite e o seu tormento ! Nunca, em vida, supusera que as noites fossem tão extensas , nunca julgara que pudesse haver noites infindáveis ! Só de vez em quando a cega-rega dos ralos (1) era cortada pelo retinir da campainha dum dos quartos, logo seguido do sussurro de passos abafados na passadeira(2) do corredor. De quando em vez, mas raramente, rompia o silêncio o grito do leão, prisioneiro ali perto, nas jaulas do Jardim Zoológico. Mas até o leão encarcerado desaprender de rugir. E o seu bramido mais não era do que uivo lamentoso de ser engaiolado e vencido que já nem se recorda do que foi.

Nem a cega-rega dos ralos, nem o som das campainhas, nem os passos abafados, nem as vozes veladas, nem os automóveis notívagos, conduzindo médicos ou famílias de doentes, nem sequer o rugido do leão prisioneiro, nem um coisa, só, nem todas juntas, eram bastantes para destruir a realidade do silêncio das noites intérminas, mais forte do que a morte !

E foi, dessa forma, noites atrás de noites, que o silêncio a envolveu, que o silêncio se assenhorou dela, se apossou do seu espirito, a afastou da vida, lhe conduziu os passos...

(1) Cega-rega dos ralos : cega-rega é um instrumento que imita o som da cigarra; ralo é um inseto parecido com grilo.

(2) Passadeira : tapete estreito que se estende em corredores e escadas

 

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A moagem–Julio Ribeiro

A moagem

Julio Ribeiro
Extraído de “A carne”, 1888

Chegara o dia de principiar a moagem.
Já de véspera tinham os negros andado em uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.

Mal amanhecera entrou-se a ver no canavial fronteiro uma fita estreita de emurchecimento que aumentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o corte que começara. As roupas brancas de algodão, as saias azuis das pretas, as camisas de baeta vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquele oceano de verdura clara, agitadas por lufadas de vento quente.

No casarão do engenho, varrido, asseado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, refletindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se lôbregas, escancarando as grandes bocas gulosas.

A água, ainda presa na calha, espirrava pelas juntas da comporta sobre as línguas da roda, filetes cristalinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira muito lavada.

Ao longe, quase indistinto a princípio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, contínuo, monótono, irritante. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene (1), tripudiando (2) de júbilo.

Eram os primeiros carros de cana que chegavam.

Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros veículos estalando, gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas canas, riscadas de verde e roxo.

Carreiros negros, altos, espadaúdos, cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados ostentóricos:

-Eia, Lavarinto! Fasta, Ramalhete! Ruma, Barroso!

Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ágeis saltaram para cima deles, a descarregar. Em um momento empilharam-se as canas, de pé, atadas em feixe com as próprias folhas.

Fez-se fogo na fornalha das caldeiras, abriu-se a comporta da calha, a água despenhou-se em queda violenta sobre as línguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a princípio, depois acelerada.

Cortando os atilhos (3) de um feixe a golpes rápidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras canas ao revolver dos cilindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou de branco o desvão escuro em que giravam as moendas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajeto foi cair no cocho grande, marulhosa, gorgolante (4), com grande espumarada resistente.

Os negros banqueiros (5), empunhando espumadeiras de compridos cabos, tomaram lugar junto às caldeiras.

Levada por uma bica volante, a garapa encheu-os em um átimo. A fornalha esbraseou-se, escandesceu, irradiando um calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cair nas caldeiras, refervendo, aos gorgolões(7).

Dominava no ambiente aroma suave, sacarino, cortando espaços por uma lufada tépida de cheiro humano áspero, de catinga sufocante exalada dos negros em suor.

(1) Infrene – sem freios
(2) Tripudiar – exultar
(3) Atilho – cordão
(4) Gorgolante – que sai em golfadas
(5) Banqueiro – pessoa encarregada de cuidar das caldeiras do engenho
(6) Escandecer – o mesmo que incandescer, ficar em brasa
(7) Gorgolão – golfada

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quinta-feira, 5 de março de 2015

Graciliano Ramos–Caetés - Marta

Marta

Graciliano Ramos
Extraído de “Caetés”,1920

Nota do blogger : João Valério (que neste texto é o narrador) sente uma secreta paixão por Luísa, esposa de seu patrão. Ela tem conhecimento desse fato, mas não sente o mesmo por ele. João Valério está passeando com seu amigo Isidoro Pinheiro, quando passam em frente a casa de Dona Engrácia, mulher rica e viúva, mãe de uma moça chamada Marta. Isidoro sugere que o amigo se case com a moça. Diante do amor impossível de Luísa, João Valério pensa nessa possibilidade, de se casar com Marta. Mas seria um casamento por conveniência, um grande golpe do baú.

Pôs-se a caminhar, triste. De repente (Isidoro Pinheiro) apontou a casa Engrácia, grande como um convento, defronte do armazém dos Teixeiras.:

- E se você casasse com a Marta?

- Casar com a Marta? Recuei, desconfiado: Que interesse tem você nisso, Pinheiro?

- Interesse? Nenhum. Mas acho...

- O que não compreendo é essa preocupação de me querer amarrar à força. Já me eu tres vezes o mesmo conselho.

- É que desejo a sua felicidade, rapaz.

- E quem lhe disse que eu seria feliz casando com ela?

- Quem me disse? E por que não seria? A pequena bonita, bem-educada, toca piano, esteve no colégio das freiras. Onde se vai achar outra em melhores condições ? Se aquela não lhe agrada, só mandando fazer uma de encomenda.

Interrompeu-se, bateu no meu ombro, exclamou com admiração e energia, quase engasgado :

- Olhe aquilo, veja que prédio. Vale vinte contos. Pedra e madeira de lei. E terras, cada zebu de trinta arrobas, libra esterlina por descraça, fortuna grossa, meu filho, é tudo da Marta, que o Miranda me contou. Atraque-se com a moça.

Não contive o riso. Estava ele certo de que a Marta Verajão aceitava o arranjo ?

- Por que não ? Que diabo pode ela querer mais ? Você é bem apessoado, tem boas relações, sabe escrituração mercantil e um bocado de aritmética. Oh ! demônio ! Lá se apagou a luz.

No escritório dos Teixeiras, passando para o razão os diversos a diversos em bonita letra apurada, pensei naquela insistência de Isidoro.
(Nota do blogger : o personagem é contador, exerce o ofício da Contabiidade)

É um oficio que se presta as divagações do espirito, este meu. Enquanto se vão acumulando cifras a direita,cifras a esquerda, e se enche a pagina de linhas horizontais e obliquas, a imaginação foge dali. Organizar partidas e escrever a correspondência comercial sao coisas que a gente faz brincando. E para molhar o papel de seda, enxuga-lo, por a fatura ao Iado, apertar o Iivro na prensa não é necessário esforço de pensamento. Dedicava-me as minhas ocupações singelas - e as idéias esvoaçavam em redor da Marta Varejão.

Realmente não era feia, com aquele rostinho morno, grandes olhos pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima fêmea. Se ela me quisesse, eu não tinha razão para considerar-me infeliz.

Oueria. Na segunda-feira do carnaval, defronte ao cinema, fora muito amável comigo. Olhadelas, sorrisos, um provérbio embaraçado, em francês. Aquilo prometia. Estava acabado, ia atirar-me a ela, como diz o Pinheiro. E se a dona Engrácia lhe deixasse a fortuna, bom casamento, negócio magnífico. Não que me preocupe exclusivamente com o dinheiro, pois se Marta fosse vesga e coxa, não a aceitaria por preço nenhum. Mas era bonita, e os bens da viúva davam-Ihe encantos que a princípio eu não tinha descoberto.

Tocava piano. Naquele momento reconheci no piano um caminho seguro para a perfeição. Falava francês. Não havia certamente exercício mais honesto que falar francês, lingua admirável. Fazia flores de parafina. Compreendi que as flores de parafina eram na realidade os únicos objetos uteis. 0 resto não valia nada.

Não seria difícil travar na igreja um namoro com ela, na missa das sete, e mandar-Ihe, por intermédio de Casemira*, umas cartas cheias de inflamações alambicadas, versos de Olavo Bilac e frases estrangeiras, dessas vêm nas folhas cor-de-rosa do pequeno Larousse. Talvez, com algum trabalho, conseguisse completar para ela um soneto que andei compondo aos quinze anos e que teria saido bom se não emperrasse no fim. Depois obteria umas entrevistas a noite, a janela, e, conversa puxa conversa, pregava-Ihe, ao cabo de uma semana, meia dúzia de beijos. Ficávamos noivos, casávamos, Dona Engrácia morria. lmaginei-me proprietário, vendendo tudo, arredondando aí uns quinhentos contos, indo viver no Rio de Janeiro com Marta, entre romances franceses, papéis de música e flores de parafina. Onde iria morar? Na Tijuca, em Santa Teresa, ou em Copacabana, um dos bairros que vi nos jornais. Eu seria um marido exemplar e Marta uma companheira deliciosa, dessas fabricadas por poetas solteiros. Atribuí-Ihe os filhos destinados a Luisa, quatro diabretes fortes e espertos. Suprimi radicalmente NicoIau Varejão, ser inútil.

Nota do blogger : Casemira é a escrava que serve a casa de Marta. Era comum na época os ricos terem um escravo ou escrava, para serviços domésticos. Os recados, escritos, eram deixados aos escravos, que posteriormente repassavam os aos patrões. Entretanto, receber um convite (de aniversário, casamento, etc) através de um escravo, era considerado um ato deselegante. Convites deviam ser feitos pessoalmente.


(Veja o texto “Luisa”, também de “Caetés”)

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