domingo, 15 de março de 2015

A enferma–Joaquim Paço D´Arcos

A enferma

Joaquim Paço D´Arcos
(Joaquim Belford Correia da Silva (Lisboa, 1908 - 1979)
Extraído de “O caminho da culpa”

Reentrada na casa de saúde, Eugenia Maria recolheu ao quarto, onde pediu que lhe servissem o jantar. Mal tocou no que lhe ofereciam, tão falha estava de apetite e de disposição para comer.

Amelia, que não ficava de serviço, de noite, veio, antes de se retirar, despedir-se de sua doente :

- Então hoje é que foi uma grande ausência, Senhora Dona Eugenia ? Muito gostei de saber que tinha ido distrair-se.

- Grande distração, não haja dúvida...

- Sempre deve ter sido melhor do que estar para aqui metida. Nem, a bem dizer, a Senhora Dona Eugenia precisa de continuar aqui...

No estado de espirito que estava, todas as palavras a feriam, todos os comentários e conselhos a importunavam; nem se sentia com paciência para estabelecer a menor conversa. Por isso, com laconismo, limitou-se a indagar :

- Qual de vocês fica esta noite de serviço ?

- A Arminda, minha Senhora – respondeu a interrogada. Percebendo que a doente não desejava prolongar o diálogo – Então, até amanhã, e uma noite sossegadinha.

Ela ficou só, para a noite inteira... sossegadinha ...

Não se ouvia qualquer rumor, a não ser o dos raios teimosos no jardim; uma quietação muito grande tombara, de volta com a treva, sobre a casa de saúde, calando o gemido dos enfermos, embalando a própria dor, envolvendo em paz e em mistério o grande albergue do sofrimento. Noite após noite o mesmo manto de silêncio caia, cobrindo tudo, a casa grande, os jardins, a angústia dos doentes, o seu tormento íntimo e atroz. E a paz da noite não findava; a paz da noite e o seu tormento ! Nunca, em vida, supusera que as noites fossem tão extensas , nunca julgara que pudesse haver noites infindáveis ! Só de vez em quando a cega-rega dos ralos (1) era cortada pelo retinir da campainha dum dos quartos, logo seguido do sussurro de passos abafados na passadeira(2) do corredor. De quando em vez, mas raramente, rompia o silêncio o grito do leão, prisioneiro ali perto, nas jaulas do Jardim Zoológico. Mas até o leão encarcerado desaprender de rugir. E o seu bramido mais não era do que uivo lamentoso de ser engaiolado e vencido que já nem se recorda do que foi.

Nem a cega-rega dos ralos, nem o som das campainhas, nem os passos abafados, nem as vozes veladas, nem os automóveis notívagos, conduzindo médicos ou famílias de doentes, nem sequer o rugido do leão prisioneiro, nem um coisa, só, nem todas juntas, eram bastantes para destruir a realidade do silêncio das noites intérminas, mais forte do que a morte !

E foi, dessa forma, noites atrás de noites, que o silêncio a envolveu, que o silêncio se assenhorou dela, se apossou do seu espirito, a afastou da vida, lhe conduziu os passos...

(1) Cega-rega dos ralos : cega-rega é um instrumento que imita o som da cigarra; ralo é um inseto parecido com grilo.

(2) Passadeira : tapete estreito que se estende em corredores e escadas

 

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