quarta-feira, 15 de abril de 2015


Negrinha

Monteiro Lobato

Do livro “Negrinha”, 1920

 
Monteiro Lobato, quando esteve preso, em 1941, acusado de subversão, por ter criticado o governo Vargas.

        Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

    Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

    Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

    Ótima, a dona Inácia.

    Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

    — Quem é a peste que está chorando aí?

    Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

    — Cale a boca, diabo!

    No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

    Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

    — Sentadinha aí, e bico, hein?

      Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

    — Braços cruzados, já, diabo!

      Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

    Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

    Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

    O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

    A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

    O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague (1), mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

    — Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

    Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

    Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

    Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

    — “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

    Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

    — Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

    — Traga um ovo.

    Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

    — Venha cá!

    Negrinha aproximou-se.

   — Abra a boca!

    Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

    — Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

    E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

    — Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

    — A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.

    — Sim, mas cansa...

    — Quem dá aos pobres empresta a Deus.

    A boa senhora suspirou resignadamente.

    — Inda é o que vale...

    Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

    Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

    Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

    Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

    Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

    — Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

    — Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

    — Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

    Chegaram as malas e logo:

    — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

    Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

    Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

    Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

    — É feita?... — perguntou, extasiada.

   E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

    As meninas admiraram-se daquilo.

    — Nunca viu boneca?

   — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

   Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

    — Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

    — Negrinha.

    As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

    — Pegue!

    Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

    Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

    Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

    Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

    — Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

    Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

    Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...

    Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

    Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

    Assim foi — e essa consciência a matou.

    Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

    Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

    Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

    Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

    Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

    Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola (2) do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

    Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

    Mas, imóvel, sem rufar as asas.

    Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

    E tudo se esvaiu em trevas.

    Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

    E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

    — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

    Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

    — “Como era boa para um cocre!...”
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Vocabulário :
1.       Azorrague - Açoite de várias correias trançadas, atadas a um pau, ou de uma correia só, com que os cocheiros tangem as bestas.
2.       Farândola - Dança de origem provençal em que os pares, dando as mãos, se dispõem em fila, que se movimenta como em um passeio, muito agitada.
 

 





 

Um susto–Humberto de Campos

 


Um susto - Humberto de Campos - extraído de "Memorias"

Os meses passados nos Morros haviam completado o meu curso de vadiação. Fôra como simples estudante de travessuras e voltava doutor, com distinção, em todas as disciplinas ou, melhor, em todas as indisciplinas. À semelhança de Aquiles, mergulhado de cabeça para baixo no Estige, eu me vi imerso, durante esse período, em plena barbaria. E tornei-me um selvagem. Tornei-me insolente, malcriado e destemido. A falta de um homem em casa contribuía para que abusasse da paciência das mulheres, que a mantinham e governavam. O meu cabedal de nomes feios ficara consideravelmente aumentado. A minha cólera, fácil e violenta, estourava constantemente em palavrões, contra as pessoas e contra as coisas. Até que um incidente, implantando o terror na minha alma, me deteve, de súbito, na ribanceira por onde rolava. Como no apólogo famoso, uma raiz de árvore me susteve, por um instante, sobre o abismo.
Entre os castigos que eu mais temia, estava a internação na Escola de Aprendizes Marinheiros que funcionava, então, em Parnaíba. Motivos ponderáveis contribuíam para esse pavor supersticioso. As notícias que me davam desse estabelecimento eram as de uma casa de torturas inconcebíveis. Um dia, correu na cidade a informação de que a Escola havia recebido uma "máquina de cortar cabelo". Quase ao mesmo tempo começaram a aparecer nas ruas aprendizes marinheiros pelados rigorosamente, com o casco da cabeça à mostra. Semanas mais tarde, ao passar pela casa em que se achava instalado esse instituto naval, aconteceu-me ver, por uma janela, enorme aparelho, com caldeira, cilindros, e outras engrenagens, destinadas, talvez, à instrução de futuros maquinistas.
— Que é aquilo ? — perguntei a um parente que ia comigo. — Será a tal máquina de cortar cabelo ?
— É, sim, — confirmou ele, perverso. E indicando uma chapa, semelhante a um chuveiro, que havia no alto : — Mete-se a cabeça do menino, ali, a máquina roda, e arranca todos os cabelos de uma só vez.
Essas e outras informações tornaram a vida do marinheiro da Armada a maior das ameaças que se me podia fazer. E essa ideia estava, ainda, viva no meu espírito, quando, uma tarde, tendo terminado um vistoso papagaio de papel, fui ao quintal e o estendi no solo, ao sol, para secar, voltando, em seguida, para o interior da casa. Vendo de longe aquela grande mancha vermelha e azul nos domínios que legitimamente lhe pertenciam, um enorme pato cinzento veio das proximidades do poço, esticando e encolhendo o pescoço, e sacudindo a cauda inquieta, como a indagar que novidade era aquela. Chegou, enfiou o bico, espanejou-se, e continuou o seu caminho, passando por cima do papagaio, deixando largos rombos no papel de seda. Quando eu regressei e vi a devastação, fiquei desvairado de raiva. Abaixei-me, tomei um pau e um punhado de pedras, e desandei na carreira, como um louco, atrás do bicho. O pato partiu, grasnando, a bater com as asas na areia, ao mesmo tempo que o quintal todo se alarmava, pedindo socorro contra o Homem. Galos cantavam, galinhas cacarejavam, capotes repinicavam, e tudo gritava, corria, fugia diante de mim, pondo em alvoroço, num movimento unânime de solidariedade zoológica, os poleiros do quarteirão todo. E eu, cego, não respeitava nada. Apanhava patos, patas, capotes, pintos, frangos, galos e galinhas. E a medida que corria espancava tudo, congestionado de cólera, despejava sobre palmípedes e galináceos toda a opulência do meu vocabulário insultuoso, trazido dos Morros da Mariana, aprendido entre pescadores e cortadores de cana, à sombra das latadas ou nos ásperos trabalhos do engenho. Até que, fatigado, mas satisfeito da vingança, desatei num choro fundo e nervoso, abraçado com os despojos coloridos do meu lindo papagaio de papel. Minha mãe não estava em casa nessa tarde.
Três dias depois, porém, o velho Manuel, um mulato capenga e manso que ia ao mercado fazer as compras para ganhar um tostão e uma xícara de café, entrou, como de costume, trazendo à cabeça o cesto com a carne, a abóbora e as hortaliças. De acordo com o hábito, assim que o vi, acompanhei-o, em direção à cozinha. Ele descansou o cesto em um caixão grande que servia de mesa, e minha mãe já se preparava para fazer as contas quando ele puxou do bolso uma carta, e entregou-lhe, dizendo :
— Esta carta foi um marinheiro que me deu, na feira, de ordem do Comandante Gervásio, para entregar à senhora... Arregalei, naturalmente, os olhos. O "Comandante Gervásio" era o capitão do porto e comandante da Escola de Aprendizes, cuja farda branca era um dos orgulhos da cidade e uma das ameaças permanentes à minha tranquilidade de menino vadio. Minha mãe tomou a carta, rompeu o envelope, e, com a fisionomia triste, leu, alto, mais ou menos o seguinte :
    "Exma. Sra. Dona Ana de Campos Veras. Passando eu uma destas tardes pela casa da senhora, vi o seu filho Humberto correndo no quintal atrás de um pato, e dizendo nomes feios em voz alta. Não sendo a primeira vez que isso acontece, previno a senhora que, a primeira vez que tal coisa se repita, mandarei um marinheiro pegar o seu filho e trazê-lo para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde sentará praça e será castigado como merece. Assinado : Gervásio Pires de Sampaio, Capitão do porto."
Pus os olhos em minha mãe. A boca, franzida, denunciava preocupação. Uma tristeza silenciosa anuviava-lhe o rosto magro e moreno. E eu, vendo que o caso era mesmo de gravidade excepcional, senti um frio correr-me por todo o corpo, como se me despejassem um copo de água gelada na espinha. Uma covardia invencível aniquilou-me a vontade. Durante algumas semanas mostrei-me dócil, obediente, morigerado*. Passei o resto do verão sem empinar papagaio. Não proferi, durante algum tempo, nomes condenáveis. E cresci, fiz-me homem, sem apurar, jamais, a origem da carta do capitão do porto. Já em 1927, com 41 anos, foi que, vindo minha mãe ao Rio de Janeiro, me ocorreu lembrar-lhe o episódio e perguntar isso. Ela riu.
— Como tu eras tolo — disse-me. E apertando a minha cabeça grisalha e mudada junto ao seu coração, que não mudou : — Então, tu não viste que a letra era minha ?
* morigerado = comedido, comportado, educado

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Antologia de contos da língua portuguesa

O monge de 300 anos–Padre Manuel Bernardes

O monge de trezentos anos

Padre Manuel Bernardes (Lisboa, 1644 – 1710)
Extraido de “Nova Floresta”, 1710

Padre Manuel Bernardes
Pe. Manuel Bernardes

Estando um Monge em matinas (1) com os outros religiosos do seu Mosteiro, quando chegaram aquilo do Salmo, onde se diz que “mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que já passou”, admirou-se grandemente, e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume: e pediu afetuosamente a Nosso Senhor se servisse de lhe dar inteligência daquele verso. Apareceu-lhe ali, no coro, um passarinho, que cantando suavissimamente, andava diante dele dando voltas de uma para a outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o monge julgava) tomou o voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia mui sentido: “Ó passarinho da minha alma, para onde te fostes tão depressa?” Esperou. Como viu que não tornava, recolheu-se para o mosteiro, parecendo-lhe que aquela mesma madrugada depois de matinas tinha saído ele. Chegando ao convento, achou tapada a porta, que de antes costumava servir, e aberta outra de novo em outra parte. Perguntou-lhe o porteiro quem era, e a quem buscava. Respondeu-lhe:

- Eu sou o sacristão, que poucas horas há que saí de casa, e agora torno, e tudo acho mudado.

Perguntado também pelos nomes do abade e do prior, e procurador, ele lhos nomeou, admirando-se muito de que não o deixasse entrar no convento, e de que mostrava não se lembrar daqueles nomes. Disse-lhe que o levasse ao abade: e posto em sua presença, não se conheceram um ao outro; nem o monge sabia que dissesse, ou fizesse, mais que estar confuso e maravilhado de tão grande novidade. O abade então, iluminado por Deus, mandou vir os anais e histórias da ordem: onde, buscando, e achando os nomes que o monge apontava, se veio a averiguar com toda a clareza que eram passados mais de trezentos anos desde que o Monge saíra do Mosteiro até que tornara para ele. Então, este contou o que lhe havia sucedido, e os religiosos o aceitaram como a irmão seu do mesmo hábito. E ele, considerado na grandeza dos bens eternos, e louvando a Deus por tão grande maravilha, pediu os sacramentos, e brevemente passou desta vida com grande paz no Senhor.

(1) Matinas – primeiras orações do dia

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O poço–Mario de Andrade

O poço - Mario de Andrade - de "Contos Novos", 1947




Poço já pronto, com manivela e sarilho

Nota do blogger : o foco principal do conto é demonstrar o coronelismo, o autoritarismo. O patrão latifundiário era a figura máxima, poderosa e incontestável. Hoje isso não existe mais, a relação patrão-empregado é mais equilibrada. Diria até que a balança hoje pende mais para o lado do empregado, que tem tantos direitos trabalhistas,  deixando os empresários de cabelos em pé. Criar empregos hoje, com a arcaica e tirânica CLT, é criar dor de cabeça.  

Ali pelas onze horas da manhã o velho Joaquim Prestes chegou no pesqueiro. Embora fizesse força em se mostrar amável por causa da visita convidada para a pescaria, vinha mal-humorado daquelas cinco léguas de fordinho cabritando na estrada péssima. Aliás o fazendeiro era de pouco riso mesmo, já endurecido por setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno.
O fato é que estourara na zona a mania dos fazendeiros ricos adquirirem terrenos na barranca do Mogi pra pesqueiros de estimação. Joaquim Prestes fora dos que inventaram a moda, como sempre : homem cioso das suas iniciativas, meio cultivando uma vaidade de família – gente escoteira por aqueles campos altos, desbravadora de terras. Agora Joaquim Prestes desbravava pesqueiros na barranca fácil do Mogi. Não tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o nascer, reconhecido como chefe, novo ainda. Bem rico, viajado, meio sem que fazer, desbravava outros matos.
Fora o introdutor do automóvel naquelas estradas, e se o município agora se orgulhava de ser um dos maiores produtores de mel, o devia ao velho Joaquim Prestes, primeiro a se lembrar de criar abelhas ali. Falando o alemão (uma das suas “iniciativas” goradas na zona) tinha uma verdadeira biblioteca sobre abelhas. Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha a idolatria de autoridade. Pra comprar o seu primeiro carro fora à Europa, naqueles tempos em que os automóveis eram mais europeus que americanos. Viera uma “autoridade” no assunto. E o mesmo com as abelhas de que sabia tudo. Um tempo até lhe dera de reeducar as abelhas nacionais, essas “porcas” que misturavam o mel com a samora. Gastou anos e dinheiro bom nisso, inventou ninhos artificiais, cruzou as raças, até fez vir abelhas amazônicas. Mas se mandava nos homens e todos obedeciam, se viu obrigado a obedecer às abelhas que não se educaram um isto. E agora que ninguém falasse perto dele numa inocente jataí (1), Joaquim Prestes xingava. Tempo de florada no cafezal ou nas fruteiras do pomar maravilhoso, nunca mais foi feliz. Lhe amargavam penosamente aquelas mandassaias, mandaguaris, bijuís (2) que vinham lhe roubar mel da Apis melífera (3).
E tudo o que Joaquim Prestes fazia, fazia bem. Automóveis tinha três. Aquela marmom de luxo pra levar da fazenda à cidade, em compras e visitas. Mas como fosse um bocado estreita para que coubessem à vontade, na frente, ele choferando e a mulher que era gorda (a mulher não podia ir atrás com o mecânico, nem este na frente e ela atrás) mandou fazer uma “rolls-royce” de encomenda, com dois assentos na frente que pareciam poltronas de hol, mais de cem contos. E agora, por causa do pesqueiro e da estrada nova, comprara o fordinho cabritante, todo dia quebrava alguma peça, que o deixava de mau-humor.
Que outro fazendeiro se lembrara mais disso ! Pois o velho Joaquim Prestes dera pra construir no pesqueiro uma casa de verdade, de tijolo e telha, embora não imaginasse passar mais que o claro do dia ali, de medo da maleita. Mas podia querer descansar. E era quase uma casa-grande se erguendo, quarto do patrão, quarto pra algum convidado, a sala vasta, o terraço telado, tela por toda a parte pra evitar pernilongos. Só desistiu da agua encanada porque ficava um dinheirão. Mas a casinha, por detrás do bangalô, até era luxo toda de madeira aplainada, pintadinha de verde pra confundir com os mamoeiros, os porcos de raça por baixo (isso de fossa nunca!) e o vaso de esmalte e tampa. Numa parte destocada do terreno, já pastavam no campim novo quatro vacas e o marido, na espera de que alguém quisesse beber um leitezinho caracu (4) . E agora que a casa estava quase pronta, sua horta folhuda e uns girassóis na frente, Joaquim Prestes não se contentara mais com a agua da geladeira, trazida sempre no forde em dois termos (5) gordos, mandara abrir um poço.
Quem abria era gente da fazenda mesmo, desses camaradas que entendem um pouco de tudo. Joaquim Prestes era assim. Tinha dez chapéus estrangeiros té um panamá de conto de réis, mas as meias, só usava meias feitas pela mulher, “pra economizar” afirmava. Afora aqueles quatro operários ali, que cavavam o poço, havia mais dois que lá estavam trabucando(6) no acabamento da casa, as marteladas monótonas chegavam até à fogueira. E todos muito descontentes, rapazes de zona rica e bem servida de progresso, jogados ali na ceva da maleita. Obedeceram, mandados, mas corroídos de irritação.
Só quem estava imaginando que enfim se arranjara na vida era o vigia, esse caipira de gema, bagre sorna(7) dos alagados do rio, maleiteiro eterno a viola e rapadura, mais a mulher e cinco famílias enfezadas. Esse agora se quisesse tinha leite, tinha ovos de legornes (8) finas e horta de semente. Mas lhe bastava imaginar que tinha. Continuava feijão com farinha e a carne-seca do domingo.
Batera um frio terrível esse fim de julho, bem diferente dos invernos daquela zona paulista, sempre bem secos nos dias claros e solares, e as noites de uma nitidez sublime, perfeitas pra quem pode dormir no quente. Mas aquele ano umas chuvas diluviais alagavam tudo, o couro das carteiras embolorava no bolso e o café apodrecia no chão.
No pesqueiro o frio se tornara feroz, lavado daquela umidade maligna que, além de peixe, era só o que o rio sabia dar. Joaquim Prestes e a visita foram se chegando pra fogueira dos camaradas, que logo levantaram, machucando chapéu na mão, bom dia, bom dia. Joaquim tirou o relógio do bolso, com muita calma, examinou bem que horas eram. Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido trabalhar.
Os camaradas responderam que já tinham sim, mas que com aquele tempo quem aguentava permanecer dentro do poço continuando a perfuração ! Tinham ido fazer outra coisa, dando uma mão no acabamento da casa.
- Não trouxe vocês aqui pra fazer casa.
Mas que agora estavam terminando o café do meio dia. Espaçavam as frases, desapontados, principiando a não saber nem como ficar de pé. Havia silêncios desagradáveis. Mas o velho Joaquim Prestes impassível, esperando mais explicações, sem dar sinal de compreender nem de desculpar ninguém. Tinha um que era mais calmo, mulato desempenado (9), fortíssimo, bem escuro na cor. Ainda nem falara. Mas foi esse que acabou inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa inexistente, botando um pouco de felicidade no dono. De repente contou que agora ainda ficara mais penoso o trabalho porque enfim já estava minando (10) água. Joaquim Prestes ficou satisfeito, era visível, e todos suspiravam de alívio.
- Mina muito ?
- A água vem com força, sim senhor.
- Mas precisa cavar mais.
- Quanto chega ?
- Quer dizer, por enquanto dá prá uns dois palmo.
- Parmo e meio Zé.
O mulato virou contrariado para o que falara, um rapaz branco enfezadinho, cor de doente.
- Ocê marcou, mano...
- Marquei sim.
- Então com mais dois dias de trabalho tenho agua suficiente.
Os camaradas se entreolharam. Ainda foi o José quem falou :
- Quer dizer... a gente não sabe, tá uma lama... O poço tá fundo, só o mano que é leviano(11) pode descer...
- Quanto mede ?
- Quarenta e cinco palmos.
- Papagaio ! escapou da boca de Joaquim Prestes. Mas ficou muito mudo, na reflexão. Percebia-se que ele estava lá dentro consigo, decidindo uma lei. Depois meio que largou de pensar, dando todo o cuidado lento em fazer o cigarro de palha com perfeição. Os camaradas esperavam, naquele silencio que os desprezava, era insuportável quase. O rapaz não conseguiu se aguentar mais, como que se sentia culpado de ser mais leve que os outros. Arrancou :
- Por minha causa não, Zé, que eu desço bem.
José tornou a se virar com olhos enraivecidos pro irmão. Ia falar, mas se conteve enquanto outro tomava a dianteira.
- Então ocê vai ficar naquela dureza de trabalho com essa umidade !
- Se a gente pudesse revezar ainda que bem...murmurou o quarto, também regularmente leviano de corpo mas nada disposto a se sacrificar. E decidiu :
- Com essa chuvarada a terra tá mole demais, e se afunda !... Deus te livre...
Aí José não pôde mais adiar o pressentimento que o invadia e protegeu o mano :
- ´cê besta, mano ! e sua doença !
A doença, não se falava o nome. O médico achara que o Albino estava fraco do peito. Isso de um ser mulato e outro branco, o pai espanhol primeiro se amigara com uma preta do litoral, e quando ela morrera, mudara de gosto, viera pra zona Paulista casar com moça branca. Mas a mulher morrera dando à luz o Albino, e o espanhol, gostando mesmo de variar, se casara mas com a cachaça. José, taludinho, inda aguentou-se bem na orfandade, mas o Albino, tratados quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra, teve tifo, escarlatina, disenteria, sarampo, tosse comprida. Cada ano era uma doença nova, e o pai até esbravejava nos janeiros : “Que enfermidade le falta, caramba !” e bebia mais. Até que desapareceu pra sempre.
Albino, nem que fosse pra demonstrar a afirmativa do irmão, teve um acesso forte de tosse. E Joaquim Prestes :
- Você acabou o remédio ?
- Inda tem um poucadinho, sim sinhô.
Joaquim Prestes mesmo comprava o remédio do Albino e dava, sem descontar no ordenado. Uma vidraça que o rapaz quebrara, o fazendeiro descontou os três mil e quinhentos do custo. Porem montava na marmon, dava um pulo até a cidade só pra comprar aquele fortificante estrangeiro, “um dinheirão”, resmungava. E eram mesmo dezoito mil réis.
Com a direção da conversa, os camaradas perceberam que tudo se arranjava pelo melhor. Um comentou :
- Não vê que a gente está vendo se o sol vem e seca um pouco, mode o Albino descer no poço.
Albino, se sentindo humilhado nessa condição de doente, repetiu agressivo :
- Pois isso não que eu desço bem ! Já falei...
José foi pra dizer qualquer coisa mas sobresteve o impulso, olhou o mano com ódio. Joaquim Prestes afirmou :
- O sol não sai hoje.
O frio estava por demais. O café queimando, servido pela mulher do vigia, não reconfortava nada, a umidade corroía os ossos. O ar sombrio fechava os corações. Nenhum passarinho voava, quando muito algum pio magoado vinha botar mais tristeza no dia. Mal se enxergava o aclive da barranca, o rio não se enxergava. Era aquele arminho (12) sujo da nevoa, que assim de longe parecia intransponível.
A afirmação do fazendeiro trouxera de novo um som apreensivo no ambiente. Quem concordou com ele foi o vigia chegando. Só tocou de leve no chapéu, foi esfregar forte as mãos, rumor de lixa, em cima do fogo. Afirmou baixo, com voz taciturna de afeiçoado àquele clima ruim :
- Bem... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando.
A última reflexão do fazendeiro pretendera ser cordial. Mas fora navalhante. Até a visita se sentiu ferida. Os camaradas mais que depressa debandaram, mas Joaquim Prestes :
- Você me acompanhe, Albino, quero ver o poço.
Ainda ficou ali dando umas ordens. Havia de tentar uma rodada assim mesmo. Afinal jogou o toco do cigarro na fogueira, e com a visita se dirigiu para a elevação a uns vinte metros da casa, onde ficava o poço.
Albino já estava lá, com muito cuidado retirando as tábuas que cobriam a abertura. Joaquim Prestes, nem mesmo durante a construção, queria que caíssem “coisas” na água futura que ele iria beber. Afinal ficaram só aquelas tábuas largas, longas, de cabreúva, protegendo a terra do rebordo do perigo de esbarrondar. E mais aquele aparelho primário, que “não era o elegante, definitivo”, Joaquim Prestes foi logo explicando à visita, servindo por agora pra descer os operários no poço e trazer terra.

Poço com cambito, no lugar de manivela

- Não pise aí, nhô Prestes ! Albino gritou com susto.
Mas Joaquim Prestes queria ver a água dele. Com mais cuidado, se acocorou numa das tabuas do rebordo e firmando bem as mãos em duas outras que atravessavam a boca do poço e serviam apenas para descanso da caçamba, avançou o corpo pra espiar. As tabuas abaularam. Só o viram fazer o movimento angustiado, gritou :
- Minha caneta !

Se ergueu com rompante e sem mesmo cuidar de sair daquela bocarra traiçoeira, olhou os companheiros, indignado :
- Essa é boa ! ... Eu é que não posso ficar sem a minha caneta tinteiro ! Agora vocês hão de ter paciência, mas ficar sem minha caneta é que eu não posso ! tem que descer lá dentro buscar ! Chame os outros, Albino ! e depressa ! que com o barro revolvido como está, a caneta vai afundando !
Albino foi correndo. Os camaradas vieram imediatamente, solícitos, ninguém sequer lembrava mais de fazer corpo mole nem nada. Pra eles era evidente que a caneta tinteiro do dono não podia ficar lá dentro. Albino já tirava os sapatões e a roupa. Ficou nú num átimo da cintura pra cima, arregaçou a calça. E tudo, num átimo, estava pronto, a corda com o nó grosso pro rapaz firmar os pés, afundando na escureza do buraco. José mais outro, firmes, seguravam o cambito. Albino com rapidez pegou na corda, se agarrou nela, balanceando no ar. José olhava, atento :
- Cuidado, mano...
- Vira.
- Albino...
- Nhô ?
- ... veja se fica na corda pra não pisar na caneta. Passe a mão de leve no barro...
- Então é melhor botar um pau na corda pra fincar os pés.
- Qual mano ! vira isso logo !
José e o companheiro viraram o cambito (13), Albino desapareceu no poço. O sarilho (14) gemeu, e a medida que a corda se desenrolava o gemido foi aumentando, aumentando, até que se tornou num uivo lancinante. Todos estavam atentos, até que se escutou o grito de aviso do Albino, chegado apenas uma queixa até o grupo. José parou o manejo e fincou o busto no cambito.
Eras esperar, todos imóveis. Joaquim Prestes, mesmo o outro camarada espiavam, meio esquecidos do perigo da terra do rebordo esbarrondar. Passou um minuto, passou mais outro minuto, estava desagradabilíssimo. Passou mais tempo, José não se conteve. Segurando firme só com a mão direita o cambito, os músculos saltaram do braço magnífico, se inclinou quanto pôde na beira do poço:
- Achoooou!
Nada de resposta.
- Achou, manoooo!....
Ainda alguns segundos. A visita não se aguentara mais aquela angústia, se afastara com o pretexto de passear. Aquela voz de poço, um tom surdo, ironicamente macia que chegava aqui em cima em qualquer coisa parecia com um “não”. Os minutos passavam, ninguém mais de aguentava na impaciência. Albino havia de estar perdendo as forças, grudado naquela corda, de cócoras, passando a mão na lama coberta de água.
- José....
- Nhô. Mas atentando onde o velho estava, sem mesmo esperar a ordem, José asperejou (15) com o patrão :
- Por favor, nhô Joaquim Prestes, sai daí, terra tá solta !
Joaquim Prestes se afastou de má vontade. Depois continuou :
- Grite pro Albino que pise na lama, mas que pise num lugar só. José mais que depressa deu a ordem. A corda bambeou. E agora, aliviados, os operários entreconversavam. O magruço (16), que sabia ler no jornal da vendinha da estação, deu de falar, o idiota, no caso do “Soterrado em Campinas”. O outro se confessou pessimista, mas pouco, pra não desagradar o patrão. José mudo, cabeça baixa, olho fincado no chão, muito pensando. Mas a experiência de todos ali, sabia mesmo que a caneta tinteiro se metera pelo barro mole e que primeiro era preciso esgotar a agua do poço. José ergueu a cabeça decidido :
- Assim não vai não, nhô Joaquim Prestes, percisa (16) secar o poço.
Aí Joaquim Prestes concordou. Gritaram ao Albino que subisse. Ele ainda insistiu uns minutos. Todos esperavam em silencio, irritados com aquela teima do Albino. A corda sacudiu, chamando. José mais que depressa agarrou o cambito e gritou :
- Pronto !
A corda enrijou retesada. Mesmo sem esperar que o outro operário o ajudasse, José com músculos de amor virou sozinho o sarilho. A mola deu aquele uivo esganado, assim virada rápido, e veio uivando, gemendo.
- Vocês me engraxem isso, que diabo !
Só quando Albino surgiu na boca do poço o sarilho parou de gemer. O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulo na terra firme e tropeçou três passos, meio tonto. Baixou muito a cabeça sacudida com estertor purrrr! Agitava as mãos, os braços, pernas num halo de lama pesada que caía aos ploques no chão. Deu aquele disfarce pra não desapontar :
- Puta frio !
Foi vestindo, sujo mesmo, com ânsia, a camisa, o pulôver esburacado, o paletó. José foi buscar o seu próprio paletó, o botou silencioso na costinha do irmão. Albino o olhou, deu um sorriso quase alvar de gratidão. Num gesto feminino, feliz, se encolheu dentro da roupa, gostando.
Joaquim Prestes estava numa exasperação terrível, isso via-se. Nem cuidava de disfarçar para a visita. O caipira viera falando que a mulher mandava dizer que o almoço do patrão estava pronto. Disse um “Já vou” duro, continuando a escutar os operários. O magruço lembrou buscarem na cidade um poceiro de profissão. Joaquim Prestes estrilou. Não estava para pagar poceiro por causa duma coisa à toa ! que eles estavam com má vontade de trabalhar ! esgotar poço de pouca água não era nenhuma áfrica (17). Os homens acharam ruim, imaginando que o patrão os tratara de negros. Se tomaram dum orgulho machucado. E foi o próprio magro, mais independente, que fixou José bem nos olhos, animando o mais forte, e meio que perguntou, meio que decidido :
- Bamo !...
Imediatamente se puseram nos preparos, buscando o balde, trocando as tábuas atravessadas por outras que aguentassem o peso de homem, Joaquim Prestes e a visita foram almoçar.
Almoço grave, apesar o gosto fato do dourado. Joaquim Prestes estava árido. Dera nele aquela decisão primária, absoluta de reaver a caneta tinteiro hoje mesmo. Pra ele, honra, dignidade, autoridade não tinha gradação, era uma só : tanto estava no custear a mulher da gente como em reaver a caneta tinteiro. Duas vezes a visita, com ares de quem não sabe perguntou sobre o poceiro da cidade. Mas só o forde podia ir buscar o homem e Joaquim Prestes, agora que o vigia afirmara que não dava peixe, tinha embirrado, havia de mostrar que, no pesqueiro dele, dava. Depois, que diabo ! os camaradas haviam de secar o poço, uns palermas ! Estava numa cólera desesperada. Botando a culpa nos operários, Joaquim Prestes como que distrai a culpa de fazê-los trabalhar injustamente.
Depois do almoço chamou a mulher do vigia, mandou levar café aos homens, porem que fosse bem quente. Perguntou se não havia pinga. Não havia mais, acabara com a friagem daqueles dias. Deu de ombros. Hesitou. Ainda meio que ergueu os olhos pra visita, consultando. Acabou pedindo desculpa, ia dar uma chegadinha até ao poço pra ver o que os camaradas andavam fazendo. E não se falou mais em pescaria.
Tudo trabalhava na afobação. Um descia o balde. Outro, com empuxões fortes na corda, afinal conseguia deitar o balde lá no fundo prá água entrar nele. E quando o balde voltava, depois de parar tempo lá dentro, vinha cheiro apenas pelo terço, quase só lama. Passava de mão em mão para ser esvaziado longe e a agua não se infiltrar pelo terreno do rebordo. Joaquim Prestes pergunto se a água já diminuíra. Houve um silencio emburrado dos trabalhadores. Afinal um falou com rompante :
- Quá !...
Joaquim Prestes ficou ali, imóvel, guardando o trabalho. E ainda foi o próprio Albino, mais servil, quem inventou :
- Se tivesse duas caçambas...
Os camaradas se sobressaltaram, inquietos, se entreolharam. E aquele peste de vigia lembrou que a mulher tinha uma caçamba em casa, foi buscar. O magruço, ainda mais inquieto que os outros, afiançou :
- Nem com duas caçambas não vai não ! é lama por demais ! tá minando muito...
Aí José saiu do seu silencio torvo pra por as coisas às claras:
- De mais a mais, duas caçamba percisa ter gente lá dentro, Albino não desce mais.
- Que que tem, Zé ! deixa de história ! Albino meio que estourou.
De resto o dia aquentara um bocado, sempre escuro, nuvens de chumbo tomando o céu todo. Nenhum pássaro. Mas a brisa caíra por volta das treze horas, e o ar curto deixava o trabalho aquecer os corpos movidos. José se virara com tanta indignação para o mano, todos viram : mesmo com desrespeito pelo velho Joaquim Prestes, o Albino ia tomar com um daqueles cachações(19) que apanhava quando pegado no truco ou na pinga. O magruço resolveu se sacrificar, evitando mais aborrecimento. Interferiu rápido :
- Nós dois se reveza José ! Desta eu que vou.
O mulato sacudiu a cabeça, desesperado, engolindo raiva. A caçamba chegava e todos se atiraram aos preparativos novos. O velho Joaquim Prestes ali, mudo, imóvel. Apenas de vez em quando aquele jeito lento de tirar o relógio e consultar a claridade do dia, que era feito uma censura tirânica, pondo vergonha, quase remorso naqueles homens.
E o trabalho continua infrutífero, sem cessar. Albino ficava o quanto podia lá dentro, e as caçambas, lentas, naquele exasperante ir e vir. E agora o sarilho deu de gritar tanto que foi preciso botar graxa nele, não se suportava aquilo. Joaquim Prestes mudo, olhando aquela boca de poço. E quando Albino não se aguentava mais o outro magruço o revezava. Mas este depois da primeira viagem, se tomara dum medo tal, se fazia lerdo de proposito, e era recomendações a todos, tinha exigências. Já por duas vezes falara em cachaça.
Então o vigia lembrou que o japonês da outra margem tinha cachaça à venda. Dava uma chegadinha lá, que o homem também sempre tinha algum trairão de rede, pegado na lagoa.
Aí Joaquim Prestes se destemperou por completo. Ele bem que estava percebendo a má vontade de todos. Cada vez que o magruço tinha que descer eram cinco minutos, dez, mamparreando (19), se despia. Lento. Pois até não se lembrara de ir na casinha (20) e foi aquela espera insuportável para ninguém ! (E o certo é que a agua minava mais forte agora, livre de muita lama. O dia passava. E uma vez que o Albino subiu, até, contra o jeito dele, veio irritado, porque achara o poço na mesma.)
Joaquim Prestes berrava, fulo de raiva. O vigia que fosse tratar das vacas, deixasse de invencionice ! Não pagava cachaça pra ninguém não,seus imprestáveis ! Não estava para alimentar manha de cachaceiro !
Os camaradas, de golpe, olharam o patrão, tomados de insulto, feridíssimos, já muito sem paciência mais. Porem Joaquim Prestes ainda insistia, olhando o magruço :
- É isso mesmo ! Cachaceiro ! Dispa-se mais depressa ! cumpra o seu dever !...
E o rapaz não aguentou o olhar cutilante (21) do patrão, baixou a cabeça, foi se despindo. Mas ficara ainda mais lerdo, ruminando uma revolta inconsciente, que escapava na respiração precipitada, silvando surda pelo nariz. A visita percebendo o perigo, interveio. Fazia gosto levar um pescado à mulher, se o fazendeiro permitisse, ele dava um pulo com o vigia lá no tal de japonês. E irritado fizera um sinal ao caipira. Se fora, fugindo daquilo, sem mesmo esperar o assentimento de Joaquim Prestes. Este mal encolheu os ombros, de novo imóvel, olhando o trabalho do poço.
Quando mais ou menos uma hora depois, a visita voltou ao poço outra vez, trazia afobada uma garrafa de caninha. Foi oferecendo com felicidade aos camaradas, mas eles só olharam a visita assim de lado, nem responderam. Joaquim Prestes nem olhou, e a visita percebeu que tinha sucedido alguma coisa grava. O ambiente estava tensíssimo. Não se via o Albino nem o magruço que o revezava. Mas não estavam ambos no fundo do poço, como a visita imaginou.
Minutos antes, poço quase seco agora, o magruço que já vira um bloco de terra se desprender do rebordo, chegada a vez dele, se recusara descer. Foi meio minuto apenas de discussão agressiva entre ele e o velho Joaquim Prestes, desce, não desce, e o camarada, num ato de desespero se despedira por si mesmo, antes que o fazendeiro o despedisse. E se fora, dando as costas a tudo, oito anos de fazenda, curtindo uma tristeza funda, sem saber. E Albino, aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego. Os outros dois, com o fantasma próximo de qualquer coisa mais terrível, se acovardaram. Albino estava no fundo do poço.
Agora o vento soprando, chicoteava da gente não aguentar. Os operários tremiam muito, e a própria visita. Só Joaquim Prestes não tremia nada, firme, olhos fincados na boca do poço. A despedida do operário o despeitara ferozmente, ficara num deslumbramento horrível. Nunca imaginara que num caso qualquer o adversário se arrogasse a iniciativa de decidir por si. Ficara assombrado. Por certo que havia de mandar embora o camarada, mas que este se fosse por vontade própria, nunca pudera imaginar. A sensação do insulto estourara nele feito uma bofetada. Se não revidasse era uma desonra, com se vingar !... Mas só as mãos se esfregando lentíssimas, denunciavam o desconcerto interior do fazendeiro. E a vontade reagia com aquela decisão já desvairada de conseguir a caneta tinteiro, custasse o que custasse. Os olhos do velho engoliam a boca do poço, ardentes, com volúpia quase. Mas a corda já sacudia outra vez, agitadíssima agora, avisando que o Albino queria subir. Os operários se afobaram. Joaquim Prestes abriu os braços, num gesto de desespero impaciente.
- Também o Albino não parou nem dez minutos !
José ainda lançou um olhar de imploração ao chefe, mas este não compreendia mais nada. Albino apareceu na boca do poço. Vinha agarrado na corda, se grudando nela com t error, como temendo se despegar. Deixando o outro operário na guarda do cambito, José com muita maternidade ajudava o mano. Este olhava todos, cabeça de banda decepando na corda, boca aberta. Era quase impossível aguentar o olho abobado. Como que não queria se desagarrar da corda, foi preciso o José, “sou eu mano”, o tomar nos braços, lhe fincar os pés na terra firme. Aí Albino largou da corda. Mas o frio súbito do ar livre, principiou tremendo demais. O seguraram pra não cair. Joaquim Prestes perguntava se ainda tinha agua lá em baixo.
- Fa.. Fa...
Levou as mãos descontroladas à boca, na intenção de animar os beiços mortos. Mas não podia limitar os gestos mais, tal o tremor. Os dedos dele tropeçavam nas narinas, se enviavam pela boca, o movimento pretendido de fricção se alargava demais e a mão se quebrava no queixo. O outro camarada lhe esfregava as costas. José estava tão triste... Enrolou, com que macieza ! a cabeça do maninho no braço esquerdo, lhe pôs a garrafa na boca :
-Beba mano.
Albino engoliu o álcool que lhe enchera a boca. Teve aquela reação desonesta que os tragos fortes dão. Afinal pode falar.
- Farta... é só tá-tá seco.
Joaquim Prestes falava manso, compadecido, comentando inflexível :
- Pois é Albino : se você tivesse procurado já, decerto achava. Enquanto isso a água vai minando.
- Se eu tivesse uma lúiz...
- Pois leve.
José parou de esfregar o irmão. Se virou pra Joaquim Prestes. Talvez nem lhe transparecesse ódio no olhar, estava simples. Mandou calmo, olhando o velho nos olhos :
- Albino não desce mais.
Joaquim Prestes ferido desse jeito, ficou que era a imagem descomposta do furor. Recuou um passo na defesa instintiva, levou a mão ao revolver. Berrou já sem pensar :
- Como não desce !
- Não desce não. Eu não quero.
Albino agarrou o braço do mano mas toma com safanão que quase cai. José traz as mãos nas ancas, devagar, com calma de morte. O olhar não pestaneja, enfiando no do inimigo. Ainda repete, bem baixo, mas mastigando :
- Eu não quero não sinhô.
Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido aquele instante... A expressão do rosto dele se mudara de repente, não era de cólera mais, boca escancarada, olhos brancos, metálicos, sustentando olhar puro, tão calmo, do mulato. Ficaram assim. Batia agora uma primeira escureza do entardecer. José, o corpo dele oscilou milímetros, o esforço moral foi excessivo. Que o irmão não descia estava decidido, mas tudo mais era uma tristeza com José, uma desolação vazia, uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos.
Os olhos de Joaquim Prestes reassumiam uma vibração humana. Afinal baixaram, fixando o chão. Depois foa a cabeça que baixou, de súbito, refletindo. Os ombros dele também foram descendo aos poucos. Joaquim Prestes ficou sem perfil mais. Ficou sórdido.
- Não vale a pena mesmo...
Não teve a dignidade de aguentar tambem com a aparência externa da derrota. Esbravejou :
- Mas que diacho, rapaz ! vista vaia !
Albino riu, iluminando o rosto agradecido. A visita riu pra aliviar o ambiente. O outro camarada riu, covarde. José não riu. Virou a cara, talvez para não mostrar os olhos amolecidos. Mas ombros derreados, cabeça enfiada no peito, se percebia que estava fatigadíssimo. Voltara a esfregar maquinalmente o corpo do irmão, agora não carecendo mais disso. Nem ele nem os outros, que o incidente espantara por completo qualquer veleidade do frio.
Quer dizer, o caipira também não riu, ali chegado no meio da briga pra avisar que os trairões, como Joaquim Prestes exigia, devidamente limpos e envoltos em cacos de linho alvo, esperavam para partir. Joaquim Prestes rumou pro forde. Todos o seguiram. Ainda havia nele uns restos de superioridade machucada que era preciso enganar. Falava ríspido, dando a lei com lentidão :
- Amanhã vocês se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José...
Parou, voltou-se, olhou firme o mulato :
- ...doutra vez veja como fala com seu patrão.
Virou, continuou, mais agitado agora, se dirigindo ao forde. Os mais próximos ainda o escutaram murmurar consigo : “... não sou nenhum desalmado...”.
Dois dias depois o camarada desapeou da besta com a caneta tinteiro. Foram levá-la a Joaquim Prestes que, sentado à escrivaninha, punha em dia a escrita da fazenda, um brinco. Joaquim Prestes abriu o embrulho devagar. A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os homens tinham tratado com carinho aquele objeto meio místico, servindo pra escrever sozinho. Joaquim Prestes experimentou mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu, examinou tudo, havia areia em qualquer frincha (23). Afinal descobriu a rachadura.
- Pisaram na minha caneta ! brutos ...
Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas tinteiro. Uma era de ouro. 

(1) jataí – espécie de abelha melífera
(2) mandassaias, mandaguaris, bijuís – espécies de abelhas
(3) Apis melífera – abelha Europa (nome cientifico)
(4) Caracu – raça de gado, de pelo liso e curto.
(5) Termo – espécie de jarro de metal, com um recipiente de vidro dentro, usado para manter a temperatura da água por certo tempo (espécie de garrafa térmica antiga). Do francês thérme.
(6) Trabucar – trabalhar arduamente
(7) Sorna – indolente, preguiçoso
(8) Legornes – raça de galinha (Leghorn)
(9) Desempenado – alto, esbelto, airoso
(10) Minar – jorrar
(11) Leviano – leve (de peso)
(12) Arminho – brancura, alvura
(13) Cambito – galho bifurcado, forquilha. A maioria dos poços, diferente do poço do conto, usava manivela em vez de cambito.
(14) Sarilho – armação rotativa, que serve para enrolar cordas, fios, etc.
(15) Asperejar – tratar ou repreender alguém com aspereza, com rigor
(16) Magruço, percisa – magrelo, precisa. Mario de Andrade adota vários termos regionalistas e/ou de linguagem coloquial.
(17) África – situação de difícil solução, confusão. O adjetivo tem origem nos aspectos deste continente, um amontoado de países de diferentes línguas, milhares de tribos, culturas antagônicas, etc. difícil de se entender ou integrar.
(18) Cachação – pancada na nuca, safanão
(19) Mamparrear – lerdear, amarrar o serviço, fazer “operação tartaruga”
(20) Casinha – latrina
(21) Cutilar – cortar com golpe de cutelo (espécie de faca)
(22) Veleidade – vontade imperfeita, indecisão; capricho, leviandade


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Mario de Andrade