O monge de trezentos anos
Padre Manuel Bernardes (Lisboa, 1644 – 1710)
Extraido de “Nova Floresta”, 1710
Estando um Monge em matinas (1) com os outros religiosos do seu Mosteiro, quando chegaram aquilo do Salmo, onde se diz que “mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que já passou”, admirou-se grandemente, e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume: e pediu afetuosamente a Nosso Senhor se servisse de lhe dar inteligência daquele verso. Apareceu-lhe ali, no coro, um passarinho, que cantando suavissimamente, andava diante dele dando voltas de uma para a outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o monge julgava) tomou o voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia mui sentido: “Ó passarinho da minha alma, para onde te fostes tão depressa?” Esperou. Como viu que não tornava, recolheu-se para o mosteiro, parecendo-lhe que aquela mesma madrugada depois de matinas tinha saído ele. Chegando ao convento, achou tapada a porta, que de antes costumava servir, e aberta outra de novo em outra parte. Perguntou-lhe o porteiro quem era, e a quem buscava. Respondeu-lhe:
- Eu sou o sacristão, que poucas horas há que saí de casa, e agora torno, e tudo acho mudado.
Perguntado também pelos nomes do abade e do prior, e procurador, ele lhos nomeou, admirando-se muito de que não o deixasse entrar no convento, e de que mostrava não se lembrar daqueles nomes. Disse-lhe que o levasse ao abade: e posto em sua presença, não se conheceram um ao outro; nem o monge sabia que dissesse, ou fizesse, mais que estar confuso e maravilhado de tão grande novidade. O abade então, iluminado por Deus, mandou vir os anais e histórias da ordem: onde, buscando, e achando os nomes que o monge apontava, se veio a averiguar com toda a clareza que eram passados mais de trezentos anos desde que o Monge saíra do Mosteiro até que tornara para ele. Então, este contou o que lhe havia sucedido, e os religiosos o aceitaram como a irmão seu do mesmo hábito. E ele, considerado na grandeza dos bens eternos, e louvando a Deus por tão grande maravilha, pediu os sacramentos, e brevemente passou desta vida com grande paz no Senhor.
(1) Matinas – primeiras orações do dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário