quarta-feira, 15 de abril de 2015

Um susto–Humberto de Campos

 


Um susto - Humberto de Campos - extraído de "Memorias"

Os meses passados nos Morros haviam completado o meu curso de vadiação. Fôra como simples estudante de travessuras e voltava doutor, com distinção, em todas as disciplinas ou, melhor, em todas as indisciplinas. À semelhança de Aquiles, mergulhado de cabeça para baixo no Estige, eu me vi imerso, durante esse período, em plena barbaria. E tornei-me um selvagem. Tornei-me insolente, malcriado e destemido. A falta de um homem em casa contribuía para que abusasse da paciência das mulheres, que a mantinham e governavam. O meu cabedal de nomes feios ficara consideravelmente aumentado. A minha cólera, fácil e violenta, estourava constantemente em palavrões, contra as pessoas e contra as coisas. Até que um incidente, implantando o terror na minha alma, me deteve, de súbito, na ribanceira por onde rolava. Como no apólogo famoso, uma raiz de árvore me susteve, por um instante, sobre o abismo.
Entre os castigos que eu mais temia, estava a internação na Escola de Aprendizes Marinheiros que funcionava, então, em Parnaíba. Motivos ponderáveis contribuíam para esse pavor supersticioso. As notícias que me davam desse estabelecimento eram as de uma casa de torturas inconcebíveis. Um dia, correu na cidade a informação de que a Escola havia recebido uma "máquina de cortar cabelo". Quase ao mesmo tempo começaram a aparecer nas ruas aprendizes marinheiros pelados rigorosamente, com o casco da cabeça à mostra. Semanas mais tarde, ao passar pela casa em que se achava instalado esse instituto naval, aconteceu-me ver, por uma janela, enorme aparelho, com caldeira, cilindros, e outras engrenagens, destinadas, talvez, à instrução de futuros maquinistas.
— Que é aquilo ? — perguntei a um parente que ia comigo. — Será a tal máquina de cortar cabelo ?
— É, sim, — confirmou ele, perverso. E indicando uma chapa, semelhante a um chuveiro, que havia no alto : — Mete-se a cabeça do menino, ali, a máquina roda, e arranca todos os cabelos de uma só vez.
Essas e outras informações tornaram a vida do marinheiro da Armada a maior das ameaças que se me podia fazer. E essa ideia estava, ainda, viva no meu espírito, quando, uma tarde, tendo terminado um vistoso papagaio de papel, fui ao quintal e o estendi no solo, ao sol, para secar, voltando, em seguida, para o interior da casa. Vendo de longe aquela grande mancha vermelha e azul nos domínios que legitimamente lhe pertenciam, um enorme pato cinzento veio das proximidades do poço, esticando e encolhendo o pescoço, e sacudindo a cauda inquieta, como a indagar que novidade era aquela. Chegou, enfiou o bico, espanejou-se, e continuou o seu caminho, passando por cima do papagaio, deixando largos rombos no papel de seda. Quando eu regressei e vi a devastação, fiquei desvairado de raiva. Abaixei-me, tomei um pau e um punhado de pedras, e desandei na carreira, como um louco, atrás do bicho. O pato partiu, grasnando, a bater com as asas na areia, ao mesmo tempo que o quintal todo se alarmava, pedindo socorro contra o Homem. Galos cantavam, galinhas cacarejavam, capotes repinicavam, e tudo gritava, corria, fugia diante de mim, pondo em alvoroço, num movimento unânime de solidariedade zoológica, os poleiros do quarteirão todo. E eu, cego, não respeitava nada. Apanhava patos, patas, capotes, pintos, frangos, galos e galinhas. E a medida que corria espancava tudo, congestionado de cólera, despejava sobre palmípedes e galináceos toda a opulência do meu vocabulário insultuoso, trazido dos Morros da Mariana, aprendido entre pescadores e cortadores de cana, à sombra das latadas ou nos ásperos trabalhos do engenho. Até que, fatigado, mas satisfeito da vingança, desatei num choro fundo e nervoso, abraçado com os despojos coloridos do meu lindo papagaio de papel. Minha mãe não estava em casa nessa tarde.
Três dias depois, porém, o velho Manuel, um mulato capenga e manso que ia ao mercado fazer as compras para ganhar um tostão e uma xícara de café, entrou, como de costume, trazendo à cabeça o cesto com a carne, a abóbora e as hortaliças. De acordo com o hábito, assim que o vi, acompanhei-o, em direção à cozinha. Ele descansou o cesto em um caixão grande que servia de mesa, e minha mãe já se preparava para fazer as contas quando ele puxou do bolso uma carta, e entregou-lhe, dizendo :
— Esta carta foi um marinheiro que me deu, na feira, de ordem do Comandante Gervásio, para entregar à senhora... Arregalei, naturalmente, os olhos. O "Comandante Gervásio" era o capitão do porto e comandante da Escola de Aprendizes, cuja farda branca era um dos orgulhos da cidade e uma das ameaças permanentes à minha tranquilidade de menino vadio. Minha mãe tomou a carta, rompeu o envelope, e, com a fisionomia triste, leu, alto, mais ou menos o seguinte :
    "Exma. Sra. Dona Ana de Campos Veras. Passando eu uma destas tardes pela casa da senhora, vi o seu filho Humberto correndo no quintal atrás de um pato, e dizendo nomes feios em voz alta. Não sendo a primeira vez que isso acontece, previno a senhora que, a primeira vez que tal coisa se repita, mandarei um marinheiro pegar o seu filho e trazê-lo para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde sentará praça e será castigado como merece. Assinado : Gervásio Pires de Sampaio, Capitão do porto."
Pus os olhos em minha mãe. A boca, franzida, denunciava preocupação. Uma tristeza silenciosa anuviava-lhe o rosto magro e moreno. E eu, vendo que o caso era mesmo de gravidade excepcional, senti um frio correr-me por todo o corpo, como se me despejassem um copo de água gelada na espinha. Uma covardia invencível aniquilou-me a vontade. Durante algumas semanas mostrei-me dócil, obediente, morigerado*. Passei o resto do verão sem empinar papagaio. Não proferi, durante algum tempo, nomes condenáveis. E cresci, fiz-me homem, sem apurar, jamais, a origem da carta do capitão do porto. Já em 1927, com 41 anos, foi que, vindo minha mãe ao Rio de Janeiro, me ocorreu lembrar-lhe o episódio e perguntar isso. Ela riu.
— Como tu eras tolo — disse-me. E apertando a minha cabeça grisalha e mudada junto ao seu coração, que não mudou : — Então, tu não viste que a letra era minha ?
* morigerado = comedido, comportado, educado

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