quinta-feira, 5 de março de 2015

Graciliano Ramos–Caetés - Marta

Marta

Graciliano Ramos
Extraído de “Caetés”,1920

Nota do blogger : João Valério (que neste texto é o narrador) sente uma secreta paixão por Luísa, esposa de seu patrão. Ela tem conhecimento desse fato, mas não sente o mesmo por ele. João Valério está passeando com seu amigo Isidoro Pinheiro, quando passam em frente a casa de Dona Engrácia, mulher rica e viúva, mãe de uma moça chamada Marta. Isidoro sugere que o amigo se case com a moça. Diante do amor impossível de Luísa, João Valério pensa nessa possibilidade, de se casar com Marta. Mas seria um casamento por conveniência, um grande golpe do baú.

Pôs-se a caminhar, triste. De repente (Isidoro Pinheiro) apontou a casa Engrácia, grande como um convento, defronte do armazém dos Teixeiras.:

- E se você casasse com a Marta?

- Casar com a Marta? Recuei, desconfiado: Que interesse tem você nisso, Pinheiro?

- Interesse? Nenhum. Mas acho...

- O que não compreendo é essa preocupação de me querer amarrar à força. Já me eu tres vezes o mesmo conselho.

- É que desejo a sua felicidade, rapaz.

- E quem lhe disse que eu seria feliz casando com ela?

- Quem me disse? E por que não seria? A pequena bonita, bem-educada, toca piano, esteve no colégio das freiras. Onde se vai achar outra em melhores condições ? Se aquela não lhe agrada, só mandando fazer uma de encomenda.

Interrompeu-se, bateu no meu ombro, exclamou com admiração e energia, quase engasgado :

- Olhe aquilo, veja que prédio. Vale vinte contos. Pedra e madeira de lei. E terras, cada zebu de trinta arrobas, libra esterlina por descraça, fortuna grossa, meu filho, é tudo da Marta, que o Miranda me contou. Atraque-se com a moça.

Não contive o riso. Estava ele certo de que a Marta Verajão aceitava o arranjo ?

- Por que não ? Que diabo pode ela querer mais ? Você é bem apessoado, tem boas relações, sabe escrituração mercantil e um bocado de aritmética. Oh ! demônio ! Lá se apagou a luz.

No escritório dos Teixeiras, passando para o razão os diversos a diversos em bonita letra apurada, pensei naquela insistência de Isidoro.
(Nota do blogger : o personagem é contador, exerce o ofício da Contabiidade)

É um oficio que se presta as divagações do espirito, este meu. Enquanto se vão acumulando cifras a direita,cifras a esquerda, e se enche a pagina de linhas horizontais e obliquas, a imaginação foge dali. Organizar partidas e escrever a correspondência comercial sao coisas que a gente faz brincando. E para molhar o papel de seda, enxuga-lo, por a fatura ao Iado, apertar o Iivro na prensa não é necessário esforço de pensamento. Dedicava-me as minhas ocupações singelas - e as idéias esvoaçavam em redor da Marta Varejão.

Realmente não era feia, com aquele rostinho morno, grandes olhos pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima fêmea. Se ela me quisesse, eu não tinha razão para considerar-me infeliz.

Oueria. Na segunda-feira do carnaval, defronte ao cinema, fora muito amável comigo. Olhadelas, sorrisos, um provérbio embaraçado, em francês. Aquilo prometia. Estava acabado, ia atirar-me a ela, como diz o Pinheiro. E se a dona Engrácia lhe deixasse a fortuna, bom casamento, negócio magnífico. Não que me preocupe exclusivamente com o dinheiro, pois se Marta fosse vesga e coxa, não a aceitaria por preço nenhum. Mas era bonita, e os bens da viúva davam-Ihe encantos que a princípio eu não tinha descoberto.

Tocava piano. Naquele momento reconheci no piano um caminho seguro para a perfeição. Falava francês. Não havia certamente exercício mais honesto que falar francês, lingua admirável. Fazia flores de parafina. Compreendi que as flores de parafina eram na realidade os únicos objetos uteis. 0 resto não valia nada.

Não seria difícil travar na igreja um namoro com ela, na missa das sete, e mandar-Ihe, por intermédio de Casemira*, umas cartas cheias de inflamações alambicadas, versos de Olavo Bilac e frases estrangeiras, dessas vêm nas folhas cor-de-rosa do pequeno Larousse. Talvez, com algum trabalho, conseguisse completar para ela um soneto que andei compondo aos quinze anos e que teria saido bom se não emperrasse no fim. Depois obteria umas entrevistas a noite, a janela, e, conversa puxa conversa, pregava-Ihe, ao cabo de uma semana, meia dúzia de beijos. Ficávamos noivos, casávamos, Dona Engrácia morria. lmaginei-me proprietário, vendendo tudo, arredondando aí uns quinhentos contos, indo viver no Rio de Janeiro com Marta, entre romances franceses, papéis de música e flores de parafina. Onde iria morar? Na Tijuca, em Santa Teresa, ou em Copacabana, um dos bairros que vi nos jornais. Eu seria um marido exemplar e Marta uma companheira deliciosa, dessas fabricadas por poetas solteiros. Atribuí-Ihe os filhos destinados a Luisa, quatro diabretes fortes e espertos. Suprimi radicalmente NicoIau Varejão, ser inútil.

Nota do blogger : Casemira é a escrava que serve a casa de Marta. Era comum na época os ricos terem um escravo ou escrava, para serviços domésticos. Os recados, escritos, eram deixados aos escravos, que posteriormente repassavam os aos patrões. Entretanto, receber um convite (de aniversário, casamento, etc) através de um escravo, era considerado um ato deselegante. Convites deviam ser feitos pessoalmente.


(Veja o texto “Luisa”, também de “Caetés”)

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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Meus oito anos - Casimiro de Abreu


Meus oito anos
Casimiro de Abreu (1839-1860)
(Casimiro José Marques de Abreu)
Extraído de “As primaveras”, 1859

Nota do blogger : poema descreve um mundo que não existe mais. Quando o  mundo e as pessoas eram mais puras, ingênuas, esperançosas. É um poema saudosista e bastante “rural”. Descreve uma infância dourada, uma vida despreocupada de criança abastada e bem cuidada.
Casimiro de Abreu faleceu em 1860 aos 21 anos de idade, vitima da tuberculose. Teve uma vida intensa, morando em várias cidades do Brasil e Portugal, longe da família.
Poema bem recitado por Silvio Matos neste tube (apesar do chiado da trilha sonora) :


Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem, mais!

Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;

O mar é  lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!

O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!

Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
Pés descalços, braços nus

Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;

Rezava as Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

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Casimiro de Abreu


Lingua Portuguesa ("Ultima Flor do Lacio")

Língua Portuguesa - Olavo Bilac

("Ultima flor do Lácio")

Nota do bloguista :  O Português foi  a última língua derivada do Latim Vulgar falado no Lácio, uma região italiana. As línguas derivadas do Latim são chamadas de latinas ou românicas,  sendo as mais faladas: Francês, Espanhol, Italiano e Português.
    O termo "inculta" usado pelo poeta, se refere ao Latim Vulgar, era  falado por soldados, camponeses e camadas populares. Era diferente do Latim Clássico, empregado pelas classes superiores. Para Bilac, a Língua Portuguesa continuava a ser "bela", mesmo sendo originada de uma linguagem popular.
Devido a esse soneto, o Português era antigamente, as vezes, chamada de “ultima flor do Lácio”.
Olavo Bras Martins dos Guimarães Bilac, a titulo de curiosidade, foi o autor do Hino à Bandeira (“Salve lindo pendão da esperança...”).


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!


Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


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Olavo Bilac




Os pobres–Olavo Bilac

Os pobres

Olavo Bilac
(Olavo de Bras Martins Bilac)

Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receeis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão .

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Pirolito–Olegário Mariano

Pirolito

Olegário Mariano
Extraido de “Canto da minha terra”, 1930

"Pirolito que bate bate,
Pirolito que já bateu.
Quem gosta de mim é ela,
Quem gosta dela sou eu".

Em meio à praça adormecida,
Ao luar que tece rendas no chão
Numa grande alegria da vida
As crianças dançam ... girando vão ...

Fazem roda de braços dados,
Riem num riso que nos faz bem.
Abrem os olhos afortunados ...
Que lindos olhos as crianças têm!

Uma magrinha, tatibitate*,
Na voz delgada que Deus lhe deu,
Esganiçada não canta, late:
“Pirolito que bate, bate,
Pirolito que já bateu.”
* tatibitate – irresoluta, tímida, que não sabe o que quer

As notas frescas se emudeceram
De uma tristeza que ninguém quis.
A voz daqueles que não sofreram,
Que não amaram... como é feliz!

Na singeleza, na ingenuidade
Dessa alegria que faz chorar,
A gente sente que anda a saudade
Cantando dentro do nosso olhar.

E recordamos as esperanças
Que o tempo, em sombras, adormeceu...
Nós outros, poetas, somos crianças,
Foi a nossa alma que envelheceu...

“Pirolito que bate, bate,
Pirolito que já bateu.”

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Retrato–Cecilia Meireles


Retrato - Cecilia Meireles

Cecilia Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
 

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
 

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

antologia língua portuguesa  cecilia meireles retrato


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Cajueiro pequenino–Juvenal Galeano

Cajueiro pequenino
Juvenal Galeano


Cajueiro pequenino,
Carregadinho de flor,
À sombra das tuas folhas
Venho cantar meu amor,
Acompanhado somente
Da brisa pelo rumor,
Cajueiro pequenino,
Carregadinho de flor.

Tu és um sonho querido
De minha vida infantil,
Desde esse dia... me lembro...
Era uma aurora de abril,
Por entre verdes ervinhas
Nasceste todo gentil,
Cajueiro pequenino,
Meu lindo sonho infantil.

Que prazer quando encontrei-te
Nascendo junto ao meu lar!
— Este é meu, este defendo,
Ninguém mo venha arrancar –
Bradei e logo cuidadoso,
Contente fui te alimpar,
Cajueiro pequenino,
Meu companheiro do lar.

Cresceste... se eu te faltasse,
Que de ti seria, irmão?
Afogado nestes matos,
Morto à sede no verão...
Tu que foste sempre enfermo
Aqui neste ingrato chão!
Cajueiro pequenino,
Que de ti seria, irmão?

Cresceste... crescemos ambos,
Nossa amizade também;
Eras tu o meu enlevo,
O meu afeto o teu bem;
Se tu sofrias... eu, triste,
Chorava como... ninguém!
Cajueiro pequenino,
Por mim sofrias também!

Quando em casa me batiam,
Contava-te o meu penar;
Tu calado me escutavas,
Pois não podias falar;
Mas no teu semblante, amigo,
Mostravas grande pesar,
Cajueiro pequenino,
Nas horas do meu penar!

Após as dores... me vias
Brincando ledo e feliz
O-tempo-será (1) e outros
Brinquedos que eu tanto quis!
Depois cismando a teu lado
Em muito verso que fiz...
Cajueiro pequenino,
Me vias brincar feliz!

Mas um dia... me ausentaram. .
Fui obrigado... parti!
Chorando beijei-te as folhas. . .
Quanta saudade senti!
Fui-me longe... muitos anos
Ausente pensei em ti...
Cajueiro pequenino,
Quando obrigado parti!

Agora volto, e te encontro
Carregadinho de flor!
Mas ainda tão pequeno,
Com muito mato ao redor...
Coitadinho, não cresceste
Por falta do meu amor,
Cajueiro pequenino,
Carregadinho de flor.

(1) o-tempo-será : não encontrei nenhum registro sobre este brinquedo. Talvez seja um jogo infantil antigo, que caiu no esquecimento. A quem puder me dizer do que se trata, agradeço.

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