segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Vai passar (Chico Buarque de Holanda)

Vai Passar (1984) - Chico Buarque de Holanda



Ferrenho adversário da ditadura militar, Chico lançou essa música em 1984, já no final dela. Chama o a ditadura de “página infeliz da nossa história” . E fala dos desmazelos do governo, das obras faraônicas muitas vezes desnecessárias (…”erguendo estranhas catedrais”), da corrupção (…”subtraida em tenebrosas transações”). Por fim, diz que o povo esquece de tudo no período do carnaval, “uma alegria fugaz”. Entretanto, ao mesmo tempo que foi vigiado de perto pela censura, Chico teve uma relação diplomática com ela. Hábil e astuto, bom negociante, Chico conseguia as vezes burlar a censura e liberar algumas músicas "censuráveis". 

Findo o período militar, Chico teve sua irmã nomeada Ministro da Cultura. Sob sua desastrada gestão, vários artistas da MPB tiveram benefícios duvidosos da Lei Rouanet. Papagaio come milho, piriquito leva fama, Chico (que nunca se beneficiou dessa lei) acabou em desgraça. Teve seu nome massacrado nas redes sociais, que espalharam vários boatos maledicentes sobre sua pessoa. 
Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar
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sábado, 14 de janeiro de 2017

Detalhes–Roberto Carlos

  Detalhes - Roberto Carlos


Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito tempo em sua vida
Eu vou viver
Detalhes tão pequenos de nós dois
São coisas muito grandes pra esquecer
E a toda hora vão estar presentes
Você vai ver
Se um outro cabeludo aparecer na sua rua
E isto lhe trouxer saudades minhas
A culpa é sua
O ronco barulhento do seu carro
A velha calça desbotada ou coisa assim
Imediatamente você vai lembrar de mim
Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido
Palavras de amor como eu falei, mas eu duvido!
Duvido que ele tenha tanto amor
E até os erros do meu português ruim
E nessa hora você vai lembrar de mim
A noite envolvida no silêncio
Do seu quarto
Antes de dormir você procura
O meu retrato
Mas da moldura não sou eu quem lhe sorri
Mas você vê o meu sorriso mesmo assim
E tudo isso vai fazer você lembrar de mim
Se alguém tocar seu corpo como eu
Não diga nada
Não vá dizer meu nome sem querer
À pessoa errada
Pensando ter amor nesse momento
Desesperada você tenta até o fim
E até nesse momento você vai
Lembrar de mim
Eu sei que esses detalhes vão sumir
Na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor
Em quase nada
Mas "quase" também é mais um detalhe
Um grande amor não vai morrer assim
Por isso, de vez em quando você vai
Vai lembrar de mim
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sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Seu Liborio (João de Barro)

Seu Libório (1958) - Alberto Ribeiro e João de Barro 

Resolvi botar um pouco de humor no blog. Esta engraçada e simplória canção é sobre três vizinhas do seu Libório. Nas entrelinhas, deixa o autor entender que tratam-se de garotas de programa (eu sempre acho que “garota de programa” é um eufemismo para “biscatinha”).

Seu Libório tem três vizinhas
Manon, Margot e Fru-fru
Saem todas as tardinhas
Carregando o seu Lulu

Ninguém sabe o que elas fazem
Porém todo mundo diz
Que Seu Líbório é quem manda !
Ah!,Como o Libório é feliz
 

A Manon é mais lourinha
Que boneca de Paris !
A Margot é queimadinha
Pelo sol do meu país

A Fru-fru tem um sinalzinho
Na pontinha do nariz

Usam todas um V-8*
Que lhes deu um coronel

Têm vestidos de altos preços
E perfumes a granel
Vivem assim felizes contentes
Com o que o destino lhes deu

O Seu íbório é quem manda
Ai, o Seu Libório sou eu !
 

* V-8 : automóvel com motor tipo V-8. Para os leigos, trata-se de um motor de 8 pistões, dispostos em 4 pares lado a lado, formando uma fileira de 4 Vs (letra).

http://www.dreamstime.com/royalty-free-stock-images-v8-engine-pistons-image20053239
Disposição dos 8 pistões de um motor V-8
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Prá não morrer de tristeza (João Bandeira)


Prá não morrer de tristeza - João Bandeira

Nota do bloguista : bem simplesinha, de poucos versos. Fiquei algum tempo na indecisão  antes de postar ela aqui, entre as melhores da MPB, mas eu gosto tanto dessa música que não resisti. Conta a historia de um homem que encontra a ex-mulher bebendo nos cabarés. 

Mulher, deixaste a moradia,
Pra viver de boemia,
E beber nos cabarés,
E eu, pra não morrer de tristeza,
Me sento na mesma mesa,
Mesmo sabendo quem és,

Hoje, nós vivemos de bebida,
Sem consolo, sem guarida*,
Num mundo enganador

Quem era eu,
Quem eras tu,
Quem somos agora ?
Companheiros de outrora,
Inimigos no amor !


Gostei demais dessa rima, “agora” e “outrora”. Tudo haver !
Também gostei da rima “moradia” e “boemia”, porque são coisas totalmente antagônicas.
* Guarida : abrigo, refúgio 

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Trocando em Miudos (Chico Buarque)


Trocando em miúdos - Chico Buarque de Holanda

Nota do bloguista : esta é música de separação. Aqui, quem levou cartão vermelho é a pessoa que narra a canção. E é ele que deixa a casa (o lar).
Quem permanece na casa,  que é alugada, vai receber um novo morador (“aceite uma ajuda do seu futuro amor pro aluguel”). 
O casal já tinha trocado alianças, que o protagonista da canção pede para penhorar (=empenhar) ou derreter, dando entender que, com a separação, este símbolo de união não vale mais nada.
"Trocando em miúdos" é um expressão idiomática que já não se usa mais. Significa "em outras palavras, explicando melhor".

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!

O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis

As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor

Pro aluguel

Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.


Nota do blogger : “medida do Bonfim” é aquela fitinha que turista amarrava no braço quando ia à Bahia. A medida desta fita é 47 centimetros, diz-se que é a medida do braço direito da estátua de Jesus, que se encontra na Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, Salvador. Com o passar do tempo, as pessoas foram ficando mais xiitas e chatas no quesito higiene, e a fitinha virou sinônimo de sujeira, de criadouro de bactérias. Por isso, saiu de moda.

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Ultima Flor do Lácio


Antologia da Lingua Portuguesa
 Veja aqui uma seleção dos melhores textos escritos por autores da lingua portuguesa.
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Atenção ! se voce não gosta de ler, não clique ! Escafeda-se !
Claro, os critérios de seleção foram pessoais, puramente meus; há quem discorde das minhas escolhas.
Como toda antologia, haverá sempre as ausências e as injustiças;  e também as presenças que uns e outros julgarão serem não meritórias.


Sobre o autor
Fale comigo clicando na simpática figura acima.






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sábado, 26 de dezembro de 2015

Outro brinde para Alice - Sergio Faraco 




No dia em que se decidiu levar Alice para Porto Alegre meu pai se arreliou * com o doutor Braz e o chamou de embromador, quase deu umas porradas nele. Coitado do doutor Braz. Que havia de fazer o doutor aqui na terra, se Deus, no céu, não favorecia? Na camisinha de Alice, presa numa joana*, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro conseguida na quermesse do Divino. Rodeavam seu pescoçinho dois escapulários, sendo um abençoado pelo Bispo de Uruguaiana. Ajunte que desde semana mamãe se amanhecia de joelhos sobre grãos de milho, implorando ao Coração de Jesus entronizado que Ele desse uma demonstração, desse um sinal de que nem tudo estava perdido. E Ele nada. Alice já não se importava com os chocalhos nem erguia os bracinhos para as fitas cor-de-rosa do mosquiteiro. Na agitação da febre era preciso que ficasse sempre alguém à mão, do contrário ela era capaz de se enforcar no escapulário abençoado. As mamadeiras Alice vomitava, não parava nada no estomagozinho dela. Já nem podia ficar sentada ou fazer cocô no peniquinho, por causa dos inchaços que a picada da agulha levantava na bundinha.
E agora essa, Porto Alegre. Prometer Porto Alegre para um doente era o mesmo que lhe dar a extrema-unção. Prometia-se o milagre e nem sempre a medicina da capital tinha um no estoque.
A mera decisão da viagem mergulhou nossa casa num abismo de angústia e desesperança. Tresnoitado, barba por fazer, papai se isolava no fundo do quintal para tomar seu chimarrão, falava sozinho e ficava sacudindo a cabeça como um pobre-diabo. Mamãe, ao contrário, não parava, começou a fabricar um colchãozinho novo para o berço de Alice, procurava pela casa objetos que ninguém ao certo sabia quais eram, e, se acaso topava comigo num cruzar de porta, surpreendia-se, murmurava meu filho, meu filho, e lá se ia mamãe trotando casa à toa, como um animalzinho entristecido e só.
Minha avó Luíza veio da campanha para tomar conta da casa. Chegou de madrugada na carona do leiteiro e trazia um saco com duas abóboras, muitas cenouras, chuchus, laranjas de umbigo e sem. Trouxe também o garrafão de vinho feito em casa, que era como o seu cartão de identidade.
Meu padrinho tio Jasson ofereceu o auto para economizar umas horas da viagem de trem. Papai preferiu o trem e com razão, receava ficar na carreteira com Alice aquele jeito. No dia da viagem, ao fazer sua última prece ao Coração entronizado, braços abertos em cruz, mamãe deu um grito que foi ouvido em toda a vizinhança, até na farmácia Braz, de onde acudiu um tal de Plínio numa afobação. Pois o Coração, imagine, o Coração havia sangrado, até pingado em nosso chão de tábuas.
Eles partiram animados, quase alegres, no leito do maria fumaça, com Alice de touca e enroladinha num cobertor. Na estação, papai tratou de negócios com o padrinho tio Jasson. Mamãe, toda de branco e com um lenço verde na cabeça, recomendou para a vó Luíza que, na medida do possivel, fosse adiantando o colchãozinho. Eles confiavam em voltar numa semana, se Deus quisesse, e, diziam, haviam de dar boas risadas daquele medo, daquele horror que seria a vida sem Alice, com saudade de Alice.
Mas a janta naquela noite foi silenciosa. A vó Luíza, o padrinho, eu, nós três em torno da mesa sem toalha, a sopa rasa, o barulho das colheres, o vinho escuro, o vinho escuro nos beiços da minha avó era como um sangue que vertesse para dentro. Tio Jasson de tempo em tempo repetia:
- Que milagre, dona Luíza.
A velha concordava, arqueava as sobrancelhas, emborcava outro copito do seu vinho - outro brinde para o bem de Alice. No olho dela apontava uma lágrima que em seguida pingaria no vinho. Eu não, eu me segurava, trancava o soluço na garganta e ficava com pena da pobre velhinha. Eu sabia, e ela mais ainda, que aquele sangue no Coração tinha gosto de outra coisa, e que Alice nunca mais ia voltar.

· Arreliar – impacientar-se
· Joana – não há nenhuma referencia a esse substantivo, em nenhum dicionário, talvez seja um cordão de nylon, já que os escapulários de igreja usavam este tipo de cordão. Outra hipótese é de que se usavam muitos escapulários da Santa Joana D´arc, daí a associação.

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