Outro brinde para Alice - Sergio Faraco
No dia em que se decidiu levar Alice para Porto
Alegre meu pai se arreliou * com o doutor Braz e o chamou de embromador, quase
deu umas porradas nele. Coitado do doutor Braz. Que havia de fazer o doutor aqui
na terra, se Deus, no céu, não favorecia? Na camisinha de Alice, presa numa
joana*, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro conseguida na quermesse do
Divino. Rodeavam seu pescoçinho dois escapulários, sendo um abençoado pelo Bispo
de Uruguaiana. Ajunte que desde semana mamãe se amanhecia de joelhos sobre grãos
de milho, implorando ao Coração de Jesus entronizado que Ele desse uma
demonstração, desse um sinal de que nem tudo estava perdido. E Ele nada. Alice
já não se importava com os chocalhos nem erguia os bracinhos para as fitas
cor-de-rosa do mosquiteiro. Na agitação da febre era preciso que ficasse sempre
alguém à mão, do contrário ela era capaz de se enforcar no escapulário
abençoado. As mamadeiras Alice vomitava, não parava nada no estomagozinho dela.
Já nem podia ficar sentada ou fazer cocô no peniquinho, por causa dos inchaços
que a picada da agulha levantava na bundinha.
E agora essa, Porto Alegre. Prometer Porto Alegre
para um doente era o mesmo que lhe dar a extrema-unção. Prometia-se o milagre e
nem sempre a medicina da capital tinha um no estoque.
A mera decisão da viagem mergulhou nossa casa num
abismo de angústia e desesperança. Tresnoitado, barba por fazer, papai se
isolava no fundo do quintal para tomar seu chimarrão, falava sozinho e ficava
sacudindo a cabeça como um pobre-diabo. Mamãe, ao contrário, não parava, começou
a fabricar um colchãozinho novo para o berço de Alice, procurava pela casa
objetos que ninguém ao certo sabia quais eram, e, se acaso topava comigo num
cruzar de porta, surpreendia-se, murmurava meu filho, meu filho, e lá se ia
mamãe trotando casa à toa, como um animalzinho entristecido e só.
Minha avó Luíza veio da campanha para tomar conta
da casa. Chegou de madrugada na carona do leiteiro e trazia um saco com duas
abóboras, muitas cenouras, chuchus, laranjas de umbigo e sem. Trouxe também o
garrafão de vinho feito em casa, que era como o seu cartão de identidade.
Meu padrinho tio Jasson ofereceu o auto para
economizar umas horas da viagem de trem. Papai preferiu o trem e com razão,
receava ficar na carreteira com Alice aquele jeito. No dia da viagem, ao fazer
sua última prece ao Coração entronizado, braços abertos em cruz, mamãe deu um
grito que foi ouvido em toda a vizinhança, até na farmácia Braz, de onde acudiu
um tal de Plínio numa afobação. Pois o Coração, imagine, o Coração havia
sangrado, até pingado em nosso chão de tábuas.
Eles partiram animados, quase alegres, no leito do
maria fumaça, com Alice de touca e enroladinha num cobertor. Na estação, papai
tratou de negócios com o padrinho tio Jasson. Mamãe, toda de branco e com um
lenço verde na cabeça, recomendou para a vó Luíza que, na medida do possivel,
fosse adiantando o colchãozinho. Eles confiavam em voltar numa semana, se Deus
quisesse, e, diziam, haviam de dar boas risadas daquele medo, daquele horror que
seria a vida sem Alice, com saudade de Alice.
Mas a janta naquela noite foi silenciosa. A vó
Luíza, o padrinho, eu, nós três em torno da mesa sem toalha, a sopa rasa, o
barulho das colheres, o vinho escuro, o vinho escuro nos beiços da minha avó era
como um sangue que vertesse para dentro. Tio Jasson de tempo em tempo
repetia:
- Que milagre, dona Luíza.
A velha concordava, arqueava as sobrancelhas,
emborcava outro copito do seu vinho - outro brinde para o bem de Alice. No olho
dela apontava uma lágrima que em seguida pingaria no vinho. Eu não, eu me
segurava, trancava o soluço na garganta e ficava com pena da pobre velhinha. Eu
sabia, e ela mais ainda, que aquele sangue no Coração tinha gosto de outra
coisa, e que Alice nunca mais ia voltar.
Um comentário:
Na camisinha de Alice, presa numa joana*, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro conseguida na quermesse do Divino.
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