sábado, 26 de dezembro de 2015

Outro brinde para Alice - Sergio Faraco 




No dia em que se decidiu levar Alice para Porto Alegre meu pai se arreliou * com o doutor Braz e o chamou de embromador, quase deu umas porradas nele. Coitado do doutor Braz. Que havia de fazer o doutor aqui na terra, se Deus, no céu, não favorecia? Na camisinha de Alice, presa numa joana*, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro conseguida na quermesse do Divino. Rodeavam seu pescoçinho dois escapulários, sendo um abençoado pelo Bispo de Uruguaiana. Ajunte que desde semana mamãe se amanhecia de joelhos sobre grãos de milho, implorando ao Coração de Jesus entronizado que Ele desse uma demonstração, desse um sinal de que nem tudo estava perdido. E Ele nada. Alice já não se importava com os chocalhos nem erguia os bracinhos para as fitas cor-de-rosa do mosquiteiro. Na agitação da febre era preciso que ficasse sempre alguém à mão, do contrário ela era capaz de se enforcar no escapulário abençoado. As mamadeiras Alice vomitava, não parava nada no estomagozinho dela. Já nem podia ficar sentada ou fazer cocô no peniquinho, por causa dos inchaços que a picada da agulha levantava na bundinha.
E agora essa, Porto Alegre. Prometer Porto Alegre para um doente era o mesmo que lhe dar a extrema-unção. Prometia-se o milagre e nem sempre a medicina da capital tinha um no estoque.
A mera decisão da viagem mergulhou nossa casa num abismo de angústia e desesperança. Tresnoitado, barba por fazer, papai se isolava no fundo do quintal para tomar seu chimarrão, falava sozinho e ficava sacudindo a cabeça como um pobre-diabo. Mamãe, ao contrário, não parava, começou a fabricar um colchãozinho novo para o berço de Alice, procurava pela casa objetos que ninguém ao certo sabia quais eram, e, se acaso topava comigo num cruzar de porta, surpreendia-se, murmurava meu filho, meu filho, e lá se ia mamãe trotando casa à toa, como um animalzinho entristecido e só.
Minha avó Luíza veio da campanha para tomar conta da casa. Chegou de madrugada na carona do leiteiro e trazia um saco com duas abóboras, muitas cenouras, chuchus, laranjas de umbigo e sem. Trouxe também o garrafão de vinho feito em casa, que era como o seu cartão de identidade.
Meu padrinho tio Jasson ofereceu o auto para economizar umas horas da viagem de trem. Papai preferiu o trem e com razão, receava ficar na carreteira com Alice aquele jeito. No dia da viagem, ao fazer sua última prece ao Coração entronizado, braços abertos em cruz, mamãe deu um grito que foi ouvido em toda a vizinhança, até na farmácia Braz, de onde acudiu um tal de Plínio numa afobação. Pois o Coração, imagine, o Coração havia sangrado, até pingado em nosso chão de tábuas.
Eles partiram animados, quase alegres, no leito do maria fumaça, com Alice de touca e enroladinha num cobertor. Na estação, papai tratou de negócios com o padrinho tio Jasson. Mamãe, toda de branco e com um lenço verde na cabeça, recomendou para a vó Luíza que, na medida do possivel, fosse adiantando o colchãozinho. Eles confiavam em voltar numa semana, se Deus quisesse, e, diziam, haviam de dar boas risadas daquele medo, daquele horror que seria a vida sem Alice, com saudade de Alice.
Mas a janta naquela noite foi silenciosa. A vó Luíza, o padrinho, eu, nós três em torno da mesa sem toalha, a sopa rasa, o barulho das colheres, o vinho escuro, o vinho escuro nos beiços da minha avó era como um sangue que vertesse para dentro. Tio Jasson de tempo em tempo repetia:
- Que milagre, dona Luíza.
A velha concordava, arqueava as sobrancelhas, emborcava outro copito do seu vinho - outro brinde para o bem de Alice. No olho dela apontava uma lágrima que em seguida pingaria no vinho. Eu não, eu me segurava, trancava o soluço na garganta e ficava com pena da pobre velhinha. Eu sabia, e ela mais ainda, que aquele sangue no Coração tinha gosto de outra coisa, e que Alice nunca mais ia voltar.

· Arreliar – impacientar-se
· Joana – não há nenhuma referencia a esse substantivo, em nenhum dicionário, talvez seja um cordão de nylon, já que os escapulários de igreja usavam este tipo de cordão. Outra hipótese é de que se usavam muitos escapulários da Santa Joana D´arc, daí a associação.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Na camisinha de Alice, presa numa joana*, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro conseguida na quermesse do Divino.
Alfinete de segurança