O brinquedo roubado
(1) Cornelio Nepote - (Gala Cisalpina, c. 100 a.C. - Roma c. 25. a.C), biógrafo e historiador romano.
Humberto Campos |
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Dindinha
Humberto de Campos
Extraído de “Memórias”, 1933
Dos meus avós paternos e maternos, foi o único que eu conheci. Era mãe de meu pai, e chamava-se Emídia. Mas todos nós, seus netos, lhe dávamos o tratamento de Dindinha.
Conheci-a em 1893, ao chegar, pequeno e órfão, a Parnaíba. Era uma velha gorda, limpa, alegre e branca. Dava aquela impressão que Fialho de Almeida tivera diante de outra figura feminina, de uma honrada senhora esculpida em toucinho. Estando com todos os filhos sobreviventes em boas condições de fortuna, tinha vida farta e sossegada. Vivia, por esse tempo, com meu tio Emídio, cuja família a tratava com desvelo e carinho. Todos os dias meu tio Feliciano e meu tio Franklin, já encarnecidos, iam vê-la e pedir-lhe a bênção. Morava em um quarto espaçoso, que se comunicava com a sala de jantar. Deitada em uma rede branca e de varandas largas, conservava sempre ao lado, armada paralelamente, outra rede, destinada à neta, ou cria caseira, que lhe fazia companhia. O seu maior encanto era escutar a leitura de romances, feita pelas pessoas da casa. Interessava-se pelos personagens dos dramas, como se fossem gente do seu conhecimento e da sua amizade. E assim era que, à custa dos olhos alheios, conhecia quase toda a obra, até então editada, e traduzida, de Júlio Verne, de Ponson, de Escrich, de Alexandre Dumas, de Richebourg, de Adolphe Melot. O seu quarto era, por isso mesmo, um pequeno centro literário, povoado de sombras felizes ou desgraçadas, saídas de romances líricos ou tormentosos, e cuja existência era ali comentada e discutida. Isso atraía as netas já moças, ou pouco mais que meninas, que se alternavam na leitura, transmitindo umas às outras o assunto do capítulo porventura lido na sua ausência.
Nós, os netos pequenos, tínhamos, também, uma atração especialíssima naquele quarto em que a velhice aguardava a mansa visita da morte. É que os meus tios levavam sempre, para a velha mãe, frutas e guloseimas, que ela não raro distribuía pelos visitantes miúdos. Foi ali, no seu quarto, que travei relações com a doce e tenra marmelada portuguesa, que vinha em pequeninas latas redondas, e que era partida em talhadas flexíveis e morenas. Essa marmelada, e algumas frutas, levavam-me a tomar a bênção à pesada senhora duas e, não raro, três vezes por dia.
Não me lembro se, além dessas manifestações de prodigalidade que me seduziam, essa minha avó me dava a mim, seu neto órfão, outra demonstração de carinho. Parece-me que não. Minha memória infantil guardou, apenas, a lembrança da sua figura, do seu quarto, dos seus romances e da sua marmelada. Depois, só me recordo que, indo um dia, à tarde, à casa de meu tio Emídio, encontrei-a com as janelas todas abertas e, na sala, um grande caixão preto, com enfeites de galão dourado. Não havia lágrimas nem soluços. Apenas tristeza, e conversas em voz baixa. Meu tio, vestido de preto, espalhava pela sala e pelos compartimentos próximos uma esquisita mistura de aguarrás e ácido fênico, destinada, parece, a disfarçar o mau cheiro do corpo em decomposição.
Não sei de que morreu, nem como. Parece-me, porém, que foi do coração. Eu tinha oito anos e no cérebro não cabia tudo. Sei, apenas, e com certeza, que, a mandado de minha mãe, fui me sentar na pedra da calçada e que, metido na minha roupinha nova, olhava dali com uma superioridade orgulhosa os meninos do sr. Antônio Martins Ribeiro, morador da casa fronteira, os quais deviam estar com enorme inveja de mim, pois a avó que tinha morrido era a minha, e não a deles.
E assim foi que, embora por pouco tempo, eu tive uma avó.
A enferma
Joaquim Paço D´Arcos
(Joaquim Belford Correia da Silva (Lisboa, 1908 - 1979)
Extraído de “O caminho da culpa”
Reentrada na casa de saúde, Eugenia Maria recolheu ao quarto, onde pediu que lhe servissem o jantar. Mal tocou no que lhe ofereciam, tão falha estava de apetite e de disposição para comer.
Amelia, que não ficava de serviço, de noite, veio, antes de se retirar, despedir-se de sua doente :
- Então hoje é que foi uma grande ausência, Senhora Dona Eugenia ? Muito gostei de saber que tinha ido distrair-se.
- Grande distração, não haja dúvida...
- Sempre deve ter sido melhor do que estar para aqui metida. Nem, a bem dizer, a Senhora Dona Eugenia precisa de continuar aqui...
No estado de espirito que estava, todas as palavras a feriam, todos os comentários e conselhos a importunavam; nem se sentia com paciência para estabelecer a menor conversa. Por isso, com laconismo, limitou-se a indagar :
- Qual de vocês fica esta noite de serviço ?
- A Arminda, minha Senhora – respondeu a interrogada. Percebendo que a doente não desejava prolongar o diálogo – Então, até amanhã, e uma noite sossegadinha.
Ela ficou só, para a noite inteira... sossegadinha ...
Não se ouvia qualquer rumor, a não ser o dos raios teimosos no jardim; uma quietação muito grande tombara, de volta com a treva, sobre a casa de saúde, calando o gemido dos enfermos, embalando a própria dor, envolvendo em paz e em mistério o grande albergue do sofrimento. Noite após noite o mesmo manto de silêncio caia, cobrindo tudo, a casa grande, os jardins, a angústia dos doentes, o seu tormento íntimo e atroz. E a paz da noite não findava; a paz da noite e o seu tormento ! Nunca, em vida, supusera que as noites fossem tão extensas , nunca julgara que pudesse haver noites infindáveis ! Só de vez em quando a cega-rega dos ralos (1) era cortada pelo retinir da campainha dum dos quartos, logo seguido do sussurro de passos abafados na passadeira(2) do corredor. De quando em vez, mas raramente, rompia o silêncio o grito do leão, prisioneiro ali perto, nas jaulas do Jardim Zoológico. Mas até o leão encarcerado desaprender de rugir. E o seu bramido mais não era do que uivo lamentoso de ser engaiolado e vencido que já nem se recorda do que foi.
Nem a cega-rega dos ralos, nem o som das campainhas, nem os passos abafados, nem as vozes veladas, nem os automóveis notívagos, conduzindo médicos ou famílias de doentes, nem sequer o rugido do leão prisioneiro, nem um coisa, só, nem todas juntas, eram bastantes para destruir a realidade do silêncio das noites intérminas, mais forte do que a morte !
E foi, dessa forma, noites atrás de noites, que o silêncio a envolveu, que o silêncio se assenhorou dela, se apossou do seu espirito, a afastou da vida, lhe conduziu os passos...
(1) Cega-rega dos ralos : cega-rega é um instrumento que imita o som da cigarra; ralo é um inseto parecido com grilo.
(2) Passadeira : tapete estreito que se estende em corredores e escadas
A moagem
Julio Ribeiro
Extraído de “A carne”, 1888
Chegara o dia de principiar a moagem.
Já de véspera tinham os negros andado em uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.
Mal amanhecera entrou-se a ver no canavial fronteiro uma fita estreita de emurchecimento que aumentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o corte que começara. As roupas brancas de algodão, as saias azuis das pretas, as camisas de baeta vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquele oceano de verdura clara, agitadas por lufadas de vento quente.
No casarão do engenho, varrido, asseado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, refletindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se lôbregas, escancarando as grandes bocas gulosas.
A água, ainda presa na calha, espirrava pelas juntas da comporta sobre as línguas da roda, filetes cristalinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira muito lavada.
Ao longe, quase indistinto a princípio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, contínuo, monótono, irritante. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene (1), tripudiando (2) de júbilo.
Eram os primeiros carros de cana que chegavam.
Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros veículos estalando, gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas canas, riscadas de verde e roxo.
Carreiros negros, altos, espadaúdos, cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados ostentóricos:
-Eia, Lavarinto! Fasta, Ramalhete! Ruma, Barroso!
Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ágeis saltaram para cima deles, a descarregar. Em um momento empilharam-se as canas, de pé, atadas em feixe com as próprias folhas.
Fez-se fogo na fornalha das caldeiras, abriu-se a comporta da calha, a água despenhou-se em queda violenta sobre as línguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a princípio, depois acelerada.
Cortando os atilhos (3) de um feixe a golpes rápidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras canas ao revolver dos cilindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou de branco o desvão escuro em que giravam as moendas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajeto foi cair no cocho grande, marulhosa, gorgolante (4), com grande espumarada resistente.
Os negros banqueiros (5), empunhando espumadeiras de compridos cabos, tomaram lugar junto às caldeiras.
Levada por uma bica volante, a garapa encheu-os em um átimo. A fornalha esbraseou-se, escandesceu, irradiando um calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cair nas caldeiras, refervendo, aos gorgolões(7).
Dominava no ambiente aroma suave, sacarino, cortando espaços por uma lufada tépida de cheiro humano áspero, de catinga sufocante exalada dos negros em suor.
(1) Infrene – sem freios
(2) Tripudiar – exultar
(3) Atilho – cordão
(4) Gorgolante – que sai em golfadas
(5) Banqueiro – pessoa encarregada de cuidar das caldeiras do engenho
(6) Escandecer – o mesmo que incandescer, ficar em brasa
(7) Gorgolão – golfada
Marta
Graciliano Ramos
Extraído de “Caetés”,1920
Nota do blogger : João Valério (que neste texto é o narrador) sente uma secreta paixão por Luísa, esposa de seu patrão. Ela tem conhecimento desse fato, mas não sente o mesmo por ele. João Valério está passeando com seu amigo Isidoro Pinheiro, quando passam em frente a casa de Dona Engrácia, mulher rica e viúva, mãe de uma moça chamada Marta. Isidoro sugere que o amigo se case com a moça. Diante do amor impossível de Luísa, João Valério pensa nessa possibilidade, de se casar com Marta. Mas seria um casamento por conveniência, um grande golpe do baú.
Pôs-se a caminhar, triste. De repente (Isidoro Pinheiro) apontou a casa Engrácia, grande como um convento, defronte do armazém dos Teixeiras.:
- E se você casasse com a Marta?
- Casar com a Marta? Recuei, desconfiado: Que interesse tem você nisso, Pinheiro?
- Interesse? Nenhum. Mas acho...
- O que não compreendo é essa preocupação de me querer amarrar à força. Já me eu tres vezes o mesmo conselho.
- É que desejo a sua felicidade, rapaz.
- E quem lhe disse que eu seria feliz casando com ela?
- Quem me disse? E por que não seria? A pequena bonita, bem-educada, toca piano, esteve no colégio das freiras. Onde se vai achar outra em melhores condições ? Se aquela não lhe agrada, só mandando fazer uma de encomenda.
Interrompeu-se, bateu no meu ombro, exclamou com admiração e energia, quase engasgado :
- Olhe aquilo, veja que prédio. Vale vinte contos. Pedra e madeira de lei. E terras, cada zebu de trinta arrobas, libra esterlina por descraça, fortuna grossa, meu filho, é tudo da Marta, que o Miranda me contou. Atraque-se com a moça.
Não contive o riso. Estava ele certo de que a Marta Verajão aceitava o arranjo ?
- Por que não ? Que diabo pode ela querer mais ? Você é bem apessoado, tem boas relações, sabe escrituração mercantil e um bocado de aritmética. Oh ! demônio ! Lá se apagou a luz.
No escritório dos Teixeiras, passando para o razão os diversos a diversos em bonita letra apurada, pensei naquela insistência de Isidoro.
(Nota do blogger : o personagem é contador, exerce o ofício da Contabiidade)
É um oficio que se presta as divagações do espirito, este meu. Enquanto se vão acumulando cifras a direita,cifras a esquerda, e se enche a pagina de linhas horizontais e obliquas, a imaginação foge dali. Organizar partidas e escrever a correspondência comercial sao coisas que a gente faz brincando. E para molhar o papel de seda, enxuga-lo, por a fatura ao Iado, apertar o Iivro na prensa não é necessário esforço de pensamento. Dedicava-me as minhas ocupações singelas - e as idéias esvoaçavam em redor da Marta Varejão.
Realmente não era feia, com aquele rostinho morno, grandes olhos pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima fêmea. Se ela me quisesse, eu não tinha razão para considerar-me infeliz.
Oueria. Na segunda-feira do carnaval, defronte ao cinema, fora muito amável comigo. Olhadelas, sorrisos, um provérbio embaraçado, em francês. Aquilo prometia. Estava acabado, ia atirar-me a ela, como diz o Pinheiro. E se a dona Engrácia lhe deixasse a fortuna, bom casamento, negócio magnífico. Não que me preocupe exclusivamente com o dinheiro, pois se Marta fosse vesga e coxa, não a aceitaria por preço nenhum. Mas era bonita, e os bens da viúva davam-Ihe encantos que a princípio eu não tinha descoberto.
Tocava piano. Naquele momento reconheci no piano um caminho seguro para a perfeição. Falava francês. Não havia certamente exercício mais honesto que falar francês, lingua admirável. Fazia flores de parafina. Compreendi que as flores de parafina eram na realidade os únicos objetos uteis. 0 resto não valia nada.
Não seria difícil travar na igreja um namoro com ela, na missa das sete, e mandar-Ihe, por intermédio de Casemira*, umas cartas cheias de inflamações alambicadas, versos de Olavo Bilac e frases estrangeiras, dessas vêm nas folhas cor-de-rosa do pequeno Larousse. Talvez, com algum trabalho, conseguisse completar para ela um soneto que andei compondo aos quinze anos e que teria saido bom se não emperrasse no fim. Depois obteria umas entrevistas a noite, a janela, e, conversa puxa conversa, pregava-Ihe, ao cabo de uma semana, meia dúzia de beijos. Ficávamos noivos, casávamos, Dona Engrácia morria. lmaginei-me proprietário, vendendo tudo, arredondando aí uns quinhentos contos, indo viver no Rio de Janeiro com Marta, entre romances franceses, papéis de música e flores de parafina. Onde iria morar? Na Tijuca, em Santa Teresa, ou em Copacabana, um dos bairros que vi nos jornais. Eu seria um marido exemplar e Marta uma companheira deliciosa, dessas fabricadas por poetas solteiros. Atribuí-Ihe os filhos destinados a Luisa, quatro diabretes fortes e espertos. Suprimi radicalmente NicoIau Varejão, ser inútil.
Nota do blogger : Casemira é a escrava que serve a casa de Marta. Era comum na época os ricos terem um escravo ou escrava, para serviços domésticos. Os recados, escritos, eram deixados aos escravos, que posteriormente repassavam os aos patrões. Entretanto, receber um convite (de aniversário, casamento, etc) através de um escravo, era considerado um ato deselegante. Convites deviam ser feitos pessoalmente.
(Veja o texto “Luisa”, também de “Caetés”)
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