quarta-feira, 15 de abril de 2015

O poço–Mario de Andrade

O poço - Mario de Andrade - de "Contos Novos", 1947




Poço já pronto, com manivela e sarilho

Nota do blogger : o foco principal do conto é demonstrar o coronelismo, o autoritarismo. O patrão latifundiário era a figura máxima, poderosa e incontestável. Hoje isso não existe mais, a relação patrão-empregado é mais equilibrada. Diria até que a balança hoje pende mais para o lado do empregado, que tem tantos direitos trabalhistas,  deixando os empresários de cabelos em pé. Criar empregos hoje, com a arcaica e tirânica CLT, é criar dor de cabeça.  

Ali pelas onze horas da manhã o velho Joaquim Prestes chegou no pesqueiro. Embora fizesse força em se mostrar amável por causa da visita convidada para a pescaria, vinha mal-humorado daquelas cinco léguas de fordinho cabritando na estrada péssima. Aliás o fazendeiro era de pouco riso mesmo, já endurecido por setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno.
O fato é que estourara na zona a mania dos fazendeiros ricos adquirirem terrenos na barranca do Mogi pra pesqueiros de estimação. Joaquim Prestes fora dos que inventaram a moda, como sempre : homem cioso das suas iniciativas, meio cultivando uma vaidade de família – gente escoteira por aqueles campos altos, desbravadora de terras. Agora Joaquim Prestes desbravava pesqueiros na barranca fácil do Mogi. Não tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o nascer, reconhecido como chefe, novo ainda. Bem rico, viajado, meio sem que fazer, desbravava outros matos.
Fora o introdutor do automóvel naquelas estradas, e se o município agora se orgulhava de ser um dos maiores produtores de mel, o devia ao velho Joaquim Prestes, primeiro a se lembrar de criar abelhas ali. Falando o alemão (uma das suas “iniciativas” goradas na zona) tinha uma verdadeira biblioteca sobre abelhas. Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha a idolatria de autoridade. Pra comprar o seu primeiro carro fora à Europa, naqueles tempos em que os automóveis eram mais europeus que americanos. Viera uma “autoridade” no assunto. E o mesmo com as abelhas de que sabia tudo. Um tempo até lhe dera de reeducar as abelhas nacionais, essas “porcas” que misturavam o mel com a samora. Gastou anos e dinheiro bom nisso, inventou ninhos artificiais, cruzou as raças, até fez vir abelhas amazônicas. Mas se mandava nos homens e todos obedeciam, se viu obrigado a obedecer às abelhas que não se educaram um isto. E agora que ninguém falasse perto dele numa inocente jataí (1), Joaquim Prestes xingava. Tempo de florada no cafezal ou nas fruteiras do pomar maravilhoso, nunca mais foi feliz. Lhe amargavam penosamente aquelas mandassaias, mandaguaris, bijuís (2) que vinham lhe roubar mel da Apis melífera (3).
E tudo o que Joaquim Prestes fazia, fazia bem. Automóveis tinha três. Aquela marmom de luxo pra levar da fazenda à cidade, em compras e visitas. Mas como fosse um bocado estreita para que coubessem à vontade, na frente, ele choferando e a mulher que era gorda (a mulher não podia ir atrás com o mecânico, nem este na frente e ela atrás) mandou fazer uma “rolls-royce” de encomenda, com dois assentos na frente que pareciam poltronas de hol, mais de cem contos. E agora, por causa do pesqueiro e da estrada nova, comprara o fordinho cabritante, todo dia quebrava alguma peça, que o deixava de mau-humor.
Que outro fazendeiro se lembrara mais disso ! Pois o velho Joaquim Prestes dera pra construir no pesqueiro uma casa de verdade, de tijolo e telha, embora não imaginasse passar mais que o claro do dia ali, de medo da maleita. Mas podia querer descansar. E era quase uma casa-grande se erguendo, quarto do patrão, quarto pra algum convidado, a sala vasta, o terraço telado, tela por toda a parte pra evitar pernilongos. Só desistiu da agua encanada porque ficava um dinheirão. Mas a casinha, por detrás do bangalô, até era luxo toda de madeira aplainada, pintadinha de verde pra confundir com os mamoeiros, os porcos de raça por baixo (isso de fossa nunca!) e o vaso de esmalte e tampa. Numa parte destocada do terreno, já pastavam no campim novo quatro vacas e o marido, na espera de que alguém quisesse beber um leitezinho caracu (4) . E agora que a casa estava quase pronta, sua horta folhuda e uns girassóis na frente, Joaquim Prestes não se contentara mais com a agua da geladeira, trazida sempre no forde em dois termos (5) gordos, mandara abrir um poço.
Quem abria era gente da fazenda mesmo, desses camaradas que entendem um pouco de tudo. Joaquim Prestes era assim. Tinha dez chapéus estrangeiros té um panamá de conto de réis, mas as meias, só usava meias feitas pela mulher, “pra economizar” afirmava. Afora aqueles quatro operários ali, que cavavam o poço, havia mais dois que lá estavam trabucando(6) no acabamento da casa, as marteladas monótonas chegavam até à fogueira. E todos muito descontentes, rapazes de zona rica e bem servida de progresso, jogados ali na ceva da maleita. Obedeceram, mandados, mas corroídos de irritação.
Só quem estava imaginando que enfim se arranjara na vida era o vigia, esse caipira de gema, bagre sorna(7) dos alagados do rio, maleiteiro eterno a viola e rapadura, mais a mulher e cinco famílias enfezadas. Esse agora se quisesse tinha leite, tinha ovos de legornes (8) finas e horta de semente. Mas lhe bastava imaginar que tinha. Continuava feijão com farinha e a carne-seca do domingo.
Batera um frio terrível esse fim de julho, bem diferente dos invernos daquela zona paulista, sempre bem secos nos dias claros e solares, e as noites de uma nitidez sublime, perfeitas pra quem pode dormir no quente. Mas aquele ano umas chuvas diluviais alagavam tudo, o couro das carteiras embolorava no bolso e o café apodrecia no chão.
No pesqueiro o frio se tornara feroz, lavado daquela umidade maligna que, além de peixe, era só o que o rio sabia dar. Joaquim Prestes e a visita foram se chegando pra fogueira dos camaradas, que logo levantaram, machucando chapéu na mão, bom dia, bom dia. Joaquim tirou o relógio do bolso, com muita calma, examinou bem que horas eram. Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido trabalhar.
Os camaradas responderam que já tinham sim, mas que com aquele tempo quem aguentava permanecer dentro do poço continuando a perfuração ! Tinham ido fazer outra coisa, dando uma mão no acabamento da casa.
- Não trouxe vocês aqui pra fazer casa.
Mas que agora estavam terminando o café do meio dia. Espaçavam as frases, desapontados, principiando a não saber nem como ficar de pé. Havia silêncios desagradáveis. Mas o velho Joaquim Prestes impassível, esperando mais explicações, sem dar sinal de compreender nem de desculpar ninguém. Tinha um que era mais calmo, mulato desempenado (9), fortíssimo, bem escuro na cor. Ainda nem falara. Mas foi esse que acabou inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa inexistente, botando um pouco de felicidade no dono. De repente contou que agora ainda ficara mais penoso o trabalho porque enfim já estava minando (10) água. Joaquim Prestes ficou satisfeito, era visível, e todos suspiravam de alívio.
- Mina muito ?
- A água vem com força, sim senhor.
- Mas precisa cavar mais.
- Quanto chega ?
- Quer dizer, por enquanto dá prá uns dois palmo.
- Parmo e meio Zé.
O mulato virou contrariado para o que falara, um rapaz branco enfezadinho, cor de doente.
- Ocê marcou, mano...
- Marquei sim.
- Então com mais dois dias de trabalho tenho agua suficiente.
Os camaradas se entreolharam. Ainda foi o José quem falou :
- Quer dizer... a gente não sabe, tá uma lama... O poço tá fundo, só o mano que é leviano(11) pode descer...
- Quanto mede ?
- Quarenta e cinco palmos.
- Papagaio ! escapou da boca de Joaquim Prestes. Mas ficou muito mudo, na reflexão. Percebia-se que ele estava lá dentro consigo, decidindo uma lei. Depois meio que largou de pensar, dando todo o cuidado lento em fazer o cigarro de palha com perfeição. Os camaradas esperavam, naquele silencio que os desprezava, era insuportável quase. O rapaz não conseguiu se aguentar mais, como que se sentia culpado de ser mais leve que os outros. Arrancou :
- Por minha causa não, Zé, que eu desço bem.
José tornou a se virar com olhos enraivecidos pro irmão. Ia falar, mas se conteve enquanto outro tomava a dianteira.
- Então ocê vai ficar naquela dureza de trabalho com essa umidade !
- Se a gente pudesse revezar ainda que bem...murmurou o quarto, também regularmente leviano de corpo mas nada disposto a se sacrificar. E decidiu :
- Com essa chuvarada a terra tá mole demais, e se afunda !... Deus te livre...
Aí José não pôde mais adiar o pressentimento que o invadia e protegeu o mano :
- ´cê besta, mano ! e sua doença !
A doença, não se falava o nome. O médico achara que o Albino estava fraco do peito. Isso de um ser mulato e outro branco, o pai espanhol primeiro se amigara com uma preta do litoral, e quando ela morrera, mudara de gosto, viera pra zona Paulista casar com moça branca. Mas a mulher morrera dando à luz o Albino, e o espanhol, gostando mesmo de variar, se casara mas com a cachaça. José, taludinho, inda aguentou-se bem na orfandade, mas o Albino, tratados quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra, teve tifo, escarlatina, disenteria, sarampo, tosse comprida. Cada ano era uma doença nova, e o pai até esbravejava nos janeiros : “Que enfermidade le falta, caramba !” e bebia mais. Até que desapareceu pra sempre.
Albino, nem que fosse pra demonstrar a afirmativa do irmão, teve um acesso forte de tosse. E Joaquim Prestes :
- Você acabou o remédio ?
- Inda tem um poucadinho, sim sinhô.
Joaquim Prestes mesmo comprava o remédio do Albino e dava, sem descontar no ordenado. Uma vidraça que o rapaz quebrara, o fazendeiro descontou os três mil e quinhentos do custo. Porem montava na marmon, dava um pulo até a cidade só pra comprar aquele fortificante estrangeiro, “um dinheirão”, resmungava. E eram mesmo dezoito mil réis.
Com a direção da conversa, os camaradas perceberam que tudo se arranjava pelo melhor. Um comentou :
- Não vê que a gente está vendo se o sol vem e seca um pouco, mode o Albino descer no poço.
Albino, se sentindo humilhado nessa condição de doente, repetiu agressivo :
- Pois isso não que eu desço bem ! Já falei...
José foi pra dizer qualquer coisa mas sobresteve o impulso, olhou o mano com ódio. Joaquim Prestes afirmou :
- O sol não sai hoje.
O frio estava por demais. O café queimando, servido pela mulher do vigia, não reconfortava nada, a umidade corroía os ossos. O ar sombrio fechava os corações. Nenhum passarinho voava, quando muito algum pio magoado vinha botar mais tristeza no dia. Mal se enxergava o aclive da barranca, o rio não se enxergava. Era aquele arminho (12) sujo da nevoa, que assim de longe parecia intransponível.
A afirmação do fazendeiro trouxera de novo um som apreensivo no ambiente. Quem concordou com ele foi o vigia chegando. Só tocou de leve no chapéu, foi esfregar forte as mãos, rumor de lixa, em cima do fogo. Afirmou baixo, com voz taciturna de afeiçoado àquele clima ruim :
- Bem... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando.
A última reflexão do fazendeiro pretendera ser cordial. Mas fora navalhante. Até a visita se sentiu ferida. Os camaradas mais que depressa debandaram, mas Joaquim Prestes :
- Você me acompanhe, Albino, quero ver o poço.
Ainda ficou ali dando umas ordens. Havia de tentar uma rodada assim mesmo. Afinal jogou o toco do cigarro na fogueira, e com a visita se dirigiu para a elevação a uns vinte metros da casa, onde ficava o poço.
Albino já estava lá, com muito cuidado retirando as tábuas que cobriam a abertura. Joaquim Prestes, nem mesmo durante a construção, queria que caíssem “coisas” na água futura que ele iria beber. Afinal ficaram só aquelas tábuas largas, longas, de cabreúva, protegendo a terra do rebordo do perigo de esbarrondar. E mais aquele aparelho primário, que “não era o elegante, definitivo”, Joaquim Prestes foi logo explicando à visita, servindo por agora pra descer os operários no poço e trazer terra.

Poço com cambito, no lugar de manivela

- Não pise aí, nhô Prestes ! Albino gritou com susto.
Mas Joaquim Prestes queria ver a água dele. Com mais cuidado, se acocorou numa das tabuas do rebordo e firmando bem as mãos em duas outras que atravessavam a boca do poço e serviam apenas para descanso da caçamba, avançou o corpo pra espiar. As tabuas abaularam. Só o viram fazer o movimento angustiado, gritou :
- Minha caneta !

Se ergueu com rompante e sem mesmo cuidar de sair daquela bocarra traiçoeira, olhou os companheiros, indignado :
- Essa é boa ! ... Eu é que não posso ficar sem a minha caneta tinteiro ! Agora vocês hão de ter paciência, mas ficar sem minha caneta é que eu não posso ! tem que descer lá dentro buscar ! Chame os outros, Albino ! e depressa ! que com o barro revolvido como está, a caneta vai afundando !
Albino foi correndo. Os camaradas vieram imediatamente, solícitos, ninguém sequer lembrava mais de fazer corpo mole nem nada. Pra eles era evidente que a caneta tinteiro do dono não podia ficar lá dentro. Albino já tirava os sapatões e a roupa. Ficou nú num átimo da cintura pra cima, arregaçou a calça. E tudo, num átimo, estava pronto, a corda com o nó grosso pro rapaz firmar os pés, afundando na escureza do buraco. José mais outro, firmes, seguravam o cambito. Albino com rapidez pegou na corda, se agarrou nela, balanceando no ar. José olhava, atento :
- Cuidado, mano...
- Vira.
- Albino...
- Nhô ?
- ... veja se fica na corda pra não pisar na caneta. Passe a mão de leve no barro...
- Então é melhor botar um pau na corda pra fincar os pés.
- Qual mano ! vira isso logo !
José e o companheiro viraram o cambito (13), Albino desapareceu no poço. O sarilho (14) gemeu, e a medida que a corda se desenrolava o gemido foi aumentando, aumentando, até que se tornou num uivo lancinante. Todos estavam atentos, até que se escutou o grito de aviso do Albino, chegado apenas uma queixa até o grupo. José parou o manejo e fincou o busto no cambito.
Eras esperar, todos imóveis. Joaquim Prestes, mesmo o outro camarada espiavam, meio esquecidos do perigo da terra do rebordo esbarrondar. Passou um minuto, passou mais outro minuto, estava desagradabilíssimo. Passou mais tempo, José não se conteve. Segurando firme só com a mão direita o cambito, os músculos saltaram do braço magnífico, se inclinou quanto pôde na beira do poço:
- Achoooou!
Nada de resposta.
- Achou, manoooo!....
Ainda alguns segundos. A visita não se aguentara mais aquela angústia, se afastara com o pretexto de passear. Aquela voz de poço, um tom surdo, ironicamente macia que chegava aqui em cima em qualquer coisa parecia com um “não”. Os minutos passavam, ninguém mais de aguentava na impaciência. Albino havia de estar perdendo as forças, grudado naquela corda, de cócoras, passando a mão na lama coberta de água.
- José....
- Nhô. Mas atentando onde o velho estava, sem mesmo esperar a ordem, José asperejou (15) com o patrão :
- Por favor, nhô Joaquim Prestes, sai daí, terra tá solta !
Joaquim Prestes se afastou de má vontade. Depois continuou :
- Grite pro Albino que pise na lama, mas que pise num lugar só. José mais que depressa deu a ordem. A corda bambeou. E agora, aliviados, os operários entreconversavam. O magruço (16), que sabia ler no jornal da vendinha da estação, deu de falar, o idiota, no caso do “Soterrado em Campinas”. O outro se confessou pessimista, mas pouco, pra não desagradar o patrão. José mudo, cabeça baixa, olho fincado no chão, muito pensando. Mas a experiência de todos ali, sabia mesmo que a caneta tinteiro se metera pelo barro mole e que primeiro era preciso esgotar a agua do poço. José ergueu a cabeça decidido :
- Assim não vai não, nhô Joaquim Prestes, percisa (16) secar o poço.
Aí Joaquim Prestes concordou. Gritaram ao Albino que subisse. Ele ainda insistiu uns minutos. Todos esperavam em silencio, irritados com aquela teima do Albino. A corda sacudiu, chamando. José mais que depressa agarrou o cambito e gritou :
- Pronto !
A corda enrijou retesada. Mesmo sem esperar que o outro operário o ajudasse, José com músculos de amor virou sozinho o sarilho. A mola deu aquele uivo esganado, assim virada rápido, e veio uivando, gemendo.
- Vocês me engraxem isso, que diabo !
Só quando Albino surgiu na boca do poço o sarilho parou de gemer. O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulo na terra firme e tropeçou três passos, meio tonto. Baixou muito a cabeça sacudida com estertor purrrr! Agitava as mãos, os braços, pernas num halo de lama pesada que caía aos ploques no chão. Deu aquele disfarce pra não desapontar :
- Puta frio !
Foi vestindo, sujo mesmo, com ânsia, a camisa, o pulôver esburacado, o paletó. José foi buscar o seu próprio paletó, o botou silencioso na costinha do irmão. Albino o olhou, deu um sorriso quase alvar de gratidão. Num gesto feminino, feliz, se encolheu dentro da roupa, gostando.
Joaquim Prestes estava numa exasperação terrível, isso via-se. Nem cuidava de disfarçar para a visita. O caipira viera falando que a mulher mandava dizer que o almoço do patrão estava pronto. Disse um “Já vou” duro, continuando a escutar os operários. O magruço lembrou buscarem na cidade um poceiro de profissão. Joaquim Prestes estrilou. Não estava para pagar poceiro por causa duma coisa à toa ! que eles estavam com má vontade de trabalhar ! esgotar poço de pouca água não era nenhuma áfrica (17). Os homens acharam ruim, imaginando que o patrão os tratara de negros. Se tomaram dum orgulho machucado. E foi o próprio magro, mais independente, que fixou José bem nos olhos, animando o mais forte, e meio que perguntou, meio que decidido :
- Bamo !...
Imediatamente se puseram nos preparos, buscando o balde, trocando as tábuas atravessadas por outras que aguentassem o peso de homem, Joaquim Prestes e a visita foram almoçar.
Almoço grave, apesar o gosto fato do dourado. Joaquim Prestes estava árido. Dera nele aquela decisão primária, absoluta de reaver a caneta tinteiro hoje mesmo. Pra ele, honra, dignidade, autoridade não tinha gradação, era uma só : tanto estava no custear a mulher da gente como em reaver a caneta tinteiro. Duas vezes a visita, com ares de quem não sabe perguntou sobre o poceiro da cidade. Mas só o forde podia ir buscar o homem e Joaquim Prestes, agora que o vigia afirmara que não dava peixe, tinha embirrado, havia de mostrar que, no pesqueiro dele, dava. Depois, que diabo ! os camaradas haviam de secar o poço, uns palermas ! Estava numa cólera desesperada. Botando a culpa nos operários, Joaquim Prestes como que distrai a culpa de fazê-los trabalhar injustamente.
Depois do almoço chamou a mulher do vigia, mandou levar café aos homens, porem que fosse bem quente. Perguntou se não havia pinga. Não havia mais, acabara com a friagem daqueles dias. Deu de ombros. Hesitou. Ainda meio que ergueu os olhos pra visita, consultando. Acabou pedindo desculpa, ia dar uma chegadinha até ao poço pra ver o que os camaradas andavam fazendo. E não se falou mais em pescaria.
Tudo trabalhava na afobação. Um descia o balde. Outro, com empuxões fortes na corda, afinal conseguia deitar o balde lá no fundo prá água entrar nele. E quando o balde voltava, depois de parar tempo lá dentro, vinha cheiro apenas pelo terço, quase só lama. Passava de mão em mão para ser esvaziado longe e a agua não se infiltrar pelo terreno do rebordo. Joaquim Prestes pergunto se a água já diminuíra. Houve um silencio emburrado dos trabalhadores. Afinal um falou com rompante :
- Quá !...
Joaquim Prestes ficou ali, imóvel, guardando o trabalho. E ainda foi o próprio Albino, mais servil, quem inventou :
- Se tivesse duas caçambas...
Os camaradas se sobressaltaram, inquietos, se entreolharam. E aquele peste de vigia lembrou que a mulher tinha uma caçamba em casa, foi buscar. O magruço, ainda mais inquieto que os outros, afiançou :
- Nem com duas caçambas não vai não ! é lama por demais ! tá minando muito...
Aí José saiu do seu silencio torvo pra por as coisas às claras:
- De mais a mais, duas caçamba percisa ter gente lá dentro, Albino não desce mais.
- Que que tem, Zé ! deixa de história ! Albino meio que estourou.
De resto o dia aquentara um bocado, sempre escuro, nuvens de chumbo tomando o céu todo. Nenhum pássaro. Mas a brisa caíra por volta das treze horas, e o ar curto deixava o trabalho aquecer os corpos movidos. José se virara com tanta indignação para o mano, todos viram : mesmo com desrespeito pelo velho Joaquim Prestes, o Albino ia tomar com um daqueles cachações(19) que apanhava quando pegado no truco ou na pinga. O magruço resolveu se sacrificar, evitando mais aborrecimento. Interferiu rápido :
- Nós dois se reveza José ! Desta eu que vou.
O mulato sacudiu a cabeça, desesperado, engolindo raiva. A caçamba chegava e todos se atiraram aos preparativos novos. O velho Joaquim Prestes ali, mudo, imóvel. Apenas de vez em quando aquele jeito lento de tirar o relógio e consultar a claridade do dia, que era feito uma censura tirânica, pondo vergonha, quase remorso naqueles homens.
E o trabalho continua infrutífero, sem cessar. Albino ficava o quanto podia lá dentro, e as caçambas, lentas, naquele exasperante ir e vir. E agora o sarilho deu de gritar tanto que foi preciso botar graxa nele, não se suportava aquilo. Joaquim Prestes mudo, olhando aquela boca de poço. E quando Albino não se aguentava mais o outro magruço o revezava. Mas este depois da primeira viagem, se tomara dum medo tal, se fazia lerdo de proposito, e era recomendações a todos, tinha exigências. Já por duas vezes falara em cachaça.
Então o vigia lembrou que o japonês da outra margem tinha cachaça à venda. Dava uma chegadinha lá, que o homem também sempre tinha algum trairão de rede, pegado na lagoa.
Aí Joaquim Prestes se destemperou por completo. Ele bem que estava percebendo a má vontade de todos. Cada vez que o magruço tinha que descer eram cinco minutos, dez, mamparreando (19), se despia. Lento. Pois até não se lembrara de ir na casinha (20) e foi aquela espera insuportável para ninguém ! (E o certo é que a agua minava mais forte agora, livre de muita lama. O dia passava. E uma vez que o Albino subiu, até, contra o jeito dele, veio irritado, porque achara o poço na mesma.)
Joaquim Prestes berrava, fulo de raiva. O vigia que fosse tratar das vacas, deixasse de invencionice ! Não pagava cachaça pra ninguém não,seus imprestáveis ! Não estava para alimentar manha de cachaceiro !
Os camaradas, de golpe, olharam o patrão, tomados de insulto, feridíssimos, já muito sem paciência mais. Porem Joaquim Prestes ainda insistia, olhando o magruço :
- É isso mesmo ! Cachaceiro ! Dispa-se mais depressa ! cumpra o seu dever !...
E o rapaz não aguentou o olhar cutilante (21) do patrão, baixou a cabeça, foi se despindo. Mas ficara ainda mais lerdo, ruminando uma revolta inconsciente, que escapava na respiração precipitada, silvando surda pelo nariz. A visita percebendo o perigo, interveio. Fazia gosto levar um pescado à mulher, se o fazendeiro permitisse, ele dava um pulo com o vigia lá no tal de japonês. E irritado fizera um sinal ao caipira. Se fora, fugindo daquilo, sem mesmo esperar o assentimento de Joaquim Prestes. Este mal encolheu os ombros, de novo imóvel, olhando o trabalho do poço.
Quando mais ou menos uma hora depois, a visita voltou ao poço outra vez, trazia afobada uma garrafa de caninha. Foi oferecendo com felicidade aos camaradas, mas eles só olharam a visita assim de lado, nem responderam. Joaquim Prestes nem olhou, e a visita percebeu que tinha sucedido alguma coisa grava. O ambiente estava tensíssimo. Não se via o Albino nem o magruço que o revezava. Mas não estavam ambos no fundo do poço, como a visita imaginou.
Minutos antes, poço quase seco agora, o magruço que já vira um bloco de terra se desprender do rebordo, chegada a vez dele, se recusara descer. Foi meio minuto apenas de discussão agressiva entre ele e o velho Joaquim Prestes, desce, não desce, e o camarada, num ato de desespero se despedira por si mesmo, antes que o fazendeiro o despedisse. E se fora, dando as costas a tudo, oito anos de fazenda, curtindo uma tristeza funda, sem saber. E Albino, aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego. Os outros dois, com o fantasma próximo de qualquer coisa mais terrível, se acovardaram. Albino estava no fundo do poço.
Agora o vento soprando, chicoteava da gente não aguentar. Os operários tremiam muito, e a própria visita. Só Joaquim Prestes não tremia nada, firme, olhos fincados na boca do poço. A despedida do operário o despeitara ferozmente, ficara num deslumbramento horrível. Nunca imaginara que num caso qualquer o adversário se arrogasse a iniciativa de decidir por si. Ficara assombrado. Por certo que havia de mandar embora o camarada, mas que este se fosse por vontade própria, nunca pudera imaginar. A sensação do insulto estourara nele feito uma bofetada. Se não revidasse era uma desonra, com se vingar !... Mas só as mãos se esfregando lentíssimas, denunciavam o desconcerto interior do fazendeiro. E a vontade reagia com aquela decisão já desvairada de conseguir a caneta tinteiro, custasse o que custasse. Os olhos do velho engoliam a boca do poço, ardentes, com volúpia quase. Mas a corda já sacudia outra vez, agitadíssima agora, avisando que o Albino queria subir. Os operários se afobaram. Joaquim Prestes abriu os braços, num gesto de desespero impaciente.
- Também o Albino não parou nem dez minutos !
José ainda lançou um olhar de imploração ao chefe, mas este não compreendia mais nada. Albino apareceu na boca do poço. Vinha agarrado na corda, se grudando nela com t error, como temendo se despegar. Deixando o outro operário na guarda do cambito, José com muita maternidade ajudava o mano. Este olhava todos, cabeça de banda decepando na corda, boca aberta. Era quase impossível aguentar o olho abobado. Como que não queria se desagarrar da corda, foi preciso o José, “sou eu mano”, o tomar nos braços, lhe fincar os pés na terra firme. Aí Albino largou da corda. Mas o frio súbito do ar livre, principiou tremendo demais. O seguraram pra não cair. Joaquim Prestes perguntava se ainda tinha agua lá em baixo.
- Fa.. Fa...
Levou as mãos descontroladas à boca, na intenção de animar os beiços mortos. Mas não podia limitar os gestos mais, tal o tremor. Os dedos dele tropeçavam nas narinas, se enviavam pela boca, o movimento pretendido de fricção se alargava demais e a mão se quebrava no queixo. O outro camarada lhe esfregava as costas. José estava tão triste... Enrolou, com que macieza ! a cabeça do maninho no braço esquerdo, lhe pôs a garrafa na boca :
-Beba mano.
Albino engoliu o álcool que lhe enchera a boca. Teve aquela reação desonesta que os tragos fortes dão. Afinal pode falar.
- Farta... é só tá-tá seco.
Joaquim Prestes falava manso, compadecido, comentando inflexível :
- Pois é Albino : se você tivesse procurado já, decerto achava. Enquanto isso a água vai minando.
- Se eu tivesse uma lúiz...
- Pois leve.
José parou de esfregar o irmão. Se virou pra Joaquim Prestes. Talvez nem lhe transparecesse ódio no olhar, estava simples. Mandou calmo, olhando o velho nos olhos :
- Albino não desce mais.
Joaquim Prestes ferido desse jeito, ficou que era a imagem descomposta do furor. Recuou um passo na defesa instintiva, levou a mão ao revolver. Berrou já sem pensar :
- Como não desce !
- Não desce não. Eu não quero.
Albino agarrou o braço do mano mas toma com safanão que quase cai. José traz as mãos nas ancas, devagar, com calma de morte. O olhar não pestaneja, enfiando no do inimigo. Ainda repete, bem baixo, mas mastigando :
- Eu não quero não sinhô.
Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido aquele instante... A expressão do rosto dele se mudara de repente, não era de cólera mais, boca escancarada, olhos brancos, metálicos, sustentando olhar puro, tão calmo, do mulato. Ficaram assim. Batia agora uma primeira escureza do entardecer. José, o corpo dele oscilou milímetros, o esforço moral foi excessivo. Que o irmão não descia estava decidido, mas tudo mais era uma tristeza com José, uma desolação vazia, uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos.
Os olhos de Joaquim Prestes reassumiam uma vibração humana. Afinal baixaram, fixando o chão. Depois foa a cabeça que baixou, de súbito, refletindo. Os ombros dele também foram descendo aos poucos. Joaquim Prestes ficou sem perfil mais. Ficou sórdido.
- Não vale a pena mesmo...
Não teve a dignidade de aguentar tambem com a aparência externa da derrota. Esbravejou :
- Mas que diacho, rapaz ! vista vaia !
Albino riu, iluminando o rosto agradecido. A visita riu pra aliviar o ambiente. O outro camarada riu, covarde. José não riu. Virou a cara, talvez para não mostrar os olhos amolecidos. Mas ombros derreados, cabeça enfiada no peito, se percebia que estava fatigadíssimo. Voltara a esfregar maquinalmente o corpo do irmão, agora não carecendo mais disso. Nem ele nem os outros, que o incidente espantara por completo qualquer veleidade do frio.
Quer dizer, o caipira também não riu, ali chegado no meio da briga pra avisar que os trairões, como Joaquim Prestes exigia, devidamente limpos e envoltos em cacos de linho alvo, esperavam para partir. Joaquim Prestes rumou pro forde. Todos o seguiram. Ainda havia nele uns restos de superioridade machucada que era preciso enganar. Falava ríspido, dando a lei com lentidão :
- Amanhã vocês se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José...
Parou, voltou-se, olhou firme o mulato :
- ...doutra vez veja como fala com seu patrão.
Virou, continuou, mais agitado agora, se dirigindo ao forde. Os mais próximos ainda o escutaram murmurar consigo : “... não sou nenhum desalmado...”.
Dois dias depois o camarada desapeou da besta com a caneta tinteiro. Foram levá-la a Joaquim Prestes que, sentado à escrivaninha, punha em dia a escrita da fazenda, um brinco. Joaquim Prestes abriu o embrulho devagar. A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os homens tinham tratado com carinho aquele objeto meio místico, servindo pra escrever sozinho. Joaquim Prestes experimentou mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu, examinou tudo, havia areia em qualquer frincha (23). Afinal descobriu a rachadura.
- Pisaram na minha caneta ! brutos ...
Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas tinteiro. Uma era de ouro. 

(1) jataí – espécie de abelha melífera
(2) mandassaias, mandaguaris, bijuís – espécies de abelhas
(3) Apis melífera – abelha Europa (nome cientifico)
(4) Caracu – raça de gado, de pelo liso e curto.
(5) Termo – espécie de jarro de metal, com um recipiente de vidro dentro, usado para manter a temperatura da água por certo tempo (espécie de garrafa térmica antiga). Do francês thérme.
(6) Trabucar – trabalhar arduamente
(7) Sorna – indolente, preguiçoso
(8) Legornes – raça de galinha (Leghorn)
(9) Desempenado – alto, esbelto, airoso
(10) Minar – jorrar
(11) Leviano – leve (de peso)
(12) Arminho – brancura, alvura
(13) Cambito – galho bifurcado, forquilha. A maioria dos poços, diferente do poço do conto, usava manivela em vez de cambito.
(14) Sarilho – armação rotativa, que serve para enrolar cordas, fios, etc.
(15) Asperejar – tratar ou repreender alguém com aspereza, com rigor
(16) Magruço, percisa – magrelo, precisa. Mario de Andrade adota vários termos regionalistas e/ou de linguagem coloquial.
(17) África – situação de difícil solução, confusão. O adjetivo tem origem nos aspectos deste continente, um amontoado de países de diferentes línguas, milhares de tribos, culturas antagônicas, etc. difícil de se entender ou integrar.
(18) Cachação – pancada na nuca, safanão
(19) Mamparrear – lerdear, amarrar o serviço, fazer “operação tartaruga”
(20) Casinha – latrina
(21) Cutilar – cortar com golpe de cutelo (espécie de faca)
(22) Veleidade – vontade imperfeita, indecisão; capricho, leviandade


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Mario de Andrade

As Festas de Reis de minha prima-Raul Pompeia

As Festas de Reis de minha prima
(conto)

Raul Pompeia
Extraído de “Contos”

Conheci muito o dr. Sinfrônio. Nunca lhe achei cara de poeta... Pois ele o fora!

Uma única vez na vida, às escondidas, como se tivesse vergonha... Mas fora... Vim a sabê-lo, alguns anos depois da sua morte. Não quero dizer que este póstumo achado lhe valha a glória. Poeta, é modo de escrever. São umas linhas execráveis, sem metrificação nem graça, em que bela rima à toa com janela ou com singela, como no "Era no outono..." de Bulhão Pato.

São versos de paixão, espécie de carta de namoro a linhas curtas, começadas em letra maiúscula. Mostrou-nos o filho, um velho amigo de colégio que me ficou da infância; mostrou-nos, fazendo considerações a propósito de certas ingenuidades que todos têm e certas fraquezas em que todos caem. Aquele homem prático, prosaico, impregnado de negócios do foro e alguma política rasteira, empírica de mais, sem horizontes largos, aquele burguês redondo tivera um dia de pieguice(1) aguda na sua vida! Lá estava o corpo de delito, descoberto em meio duma aluvião de rascunhos de correspondências, contas, recibos, papelório forense, traças e poeira.

Era uma página da mocidade, incontestavelmente.

O papel estava cor-de-palha e a letra extinta. Mas sentia-se ainda, naquele fragmento de papel, a frescura juvenil de uma alma ardente, embora um tanto avessa à música das liras. Nada me entristece mais do que um verso apaixonado, e errado! Parece-me a pomba do sentimento, rolando no chão de asas e pés quebrados... Pés quebrados!

Ora, imaginem que pena - Cupido cambaio(2) e trôpego!

Quando um homem furta-se aos afazeres positivos da vida e arroja-se ao cometimento de uma estrofe, certo de que não tem veia, nem teve apurada educação literária, contando apenas com um raio celestial de inspiração, guiando-se apenas pela bamba norma fundamental da letra grande, por princípio, linha curta, por base e rima alternada, por fim; quando um mortal faz isto, é que tem todas as vísceras escalavradas de paixão! O amor roeu-lhe já o coração fibra a fibra e começa a morder-lhe as células do cérebro.

É um heroísmo que se enternece.

Respeito estas desventuras literárias, quando as descubro, principalmente percebendo que elas queriam ficar sempre escondidas na obscuridade tímida das fraquezas humanas.

No momento em que o meu velho amigo mostrou-me o pecado literário do pai, não foi preciso esforço, para eu conservar-me sério.

"Quando te vejo, ó gentil imagem...”

Começava assim a poesia e prolongava-se pelo papel abaixo, exaltando os dotes da minha prima Isaura.

Isaura contava nesse tempo quatorze ou quinze anos e não era absolutamente feia, conquanto ja tivesse, em meio da cara o mesmo pedaço de nariz que hoje distingue a maturidade dos seus trinta e oito. Menos crescido, talvez. A prima Isaura sempre foi namoradeira e nunca achou casamento. Não sei se os namorados espantavam os casamentos, ou se a falta de casamento excitava os namoros. Nunca achou casamento, eis o fato. O único marido que lhe andou ao alcance da mão foi o dr. Sinfrônio.

Sinfrônio teve a fantasia de se apaixonar pela Isaura. Esta, porém, que estreava nos esplendores da puberdade, entendeu que toda a vida os Sinfrônios haviam de ameigar para ela a pupila e desprezou o primeiro à espera de outro mais bonito, senão menos esbodegado (3).

Sinfrônio era feio e pobre. Acabava de formar-se em direito e queria fazer família, para entrar regularmente na vida prática. Abstraindo-se-lhe o nariz, a Isaura não era detestável. Sinfrônio deitou namoro. De repente, com grande surpresa sua, reconheceu que estava caído perdidamente pela menina... Sempre nariz à parte, suponho.

Neste período, cometeu, fora de si, algumas poesias (entre outras a que eu vira) que, durante as reuniões da família da minha prima, cuja casa ele freqüentava, conseguia fazer chegar-lhe às mãos. Isaura deu corda, a princípio. Pouco depois abandonou o pobre Sinfrônio por um pelintra (4) que fingia fazer caso dela.

A ingratidão da menina exasperou o dr. Sinfrônio, que, a modo de desfeita à gentil imagem dos seus malogrados arroubos poéticos, tratou de casar-se logo com outra; e fê-lo sem dificuldade.

Muito arrependeu-se Isaura, tempos depois, do desdém com que tratara o dr. Sinfrônio. Os Sinfrônios não se repetiram...

E, por maior desdita, foi o nariz avultando com a idade e descrevendo uma órbita insensível em direção ao queixo, que saiu-lhe amavelmente ao encontro... Ainda hoje cresce o nariz; cresce, e Isaura não desanima. A esperança foi sempre a sua força.

Lá vai uma história que prova evidentemente que a prima Isaura não desanima.

A nossa família retine-se toda para os dias de Natal, Ano Bom e Reis. Há sempre uma festa em nossa casa, por ocasião dos três grandes dias. Uma festa que dura semanas... A prima Isaura não falta nunca; vem com a mãe, os cunhados, a melhor gente deste mundo, folgazãos, despretensiosos e amigos de agradar a todos. No dia de Reis do ano passado, a prima obsequiou-me com um trabalho da sua agulha, uma cousinha chic. Já não me lembro bem o que era... Desde essa época, observo que não sou indiferente à minha estimável Isaura. Não havia, entretanto, documentos comprobatórios, salvo uns olhares que notei, sorrisos que apanhei no ar, atenções que me cativavam - pura cortesia, em última análise, temperada naturalmente por um afeto vulgar entre primos...

Mas, como qualquer afeto, por mais vulgar que seja, toma caráter grave, quando se trata da prima Isaura, eu esperava tudo...

Dous dias antes do seis de janeiro deste ano, a minha amável Isaura, enfeitada com os pés-de-galinha dos seus trinta e oito e um ligeiro sorriso enrugado nos lábios, acercou-se de mim, meio acanhada...

Tomou-me entre os dedos os berloques (6) do relógio, com uma graça infantil e meiga...

— Temos coisa, pensei.

— Edmundo, disse ela, quando me dá as festas... deste ano?...

— E você? prima... perguntei igualmente.

É o que ela queria.

— Depois d'amanhã bem cedo, você há de achá-las... no seu quarto... há de gostar, afianço... E não seja ingrato!

Dado o recado, Isaura deixou os berloques e afastou-se, confusa como uma noiva, levando diante de si, como um belo fruto maduro e longo, o magnífico nariz, ruborizado de velhos pudores virginais.

Álea jacta! (7)

No dia de Reis, ao levantar-se, de manhã, observei, através da meia treva do quarto fechado, que, sobre a minha mesa, havia alguma coisa . Eram flores elegantemente apertadas em bouquet e uma carta, um pequeno envelope fechado.

Flores! carta! Bravíssimo, senhora minha prima!

— Ah, meus pressentimentos negros! suspirei.

E suspirando abri a janela. A luz alegre da manhã caiu sobre as flores, palpitantes de frescura, rociadas de brilhantes gotas d'água. Que esplêndida coroa de cravos rubros e que formosa camélia branca ao centro! Admirei de uma só vez as flores e o bom gosto da minha Isaura. Que mimo! E a carta!... E o envelope! Uma jóia de papelaria! Pombos em cromo, entretecidos com malmequeres e rosas... Tive pena de rasgar aquilo. Uma letra bonita desenhava em sobrescrito - Primo Edmundo.

Eram as festas efetivamente da Isaura; quase posso dizê-lo já - da minha namorada Isaura!

Quando abri o enveloppe, foi como se quebrasse um frasco de perfume... A carta era uma poesia! Com certeza a intensa nuvem de aromas que me povoava o quarto vinha das flores daquelas estrofes! Versos de amor! Santo Deus! Acordo em dia de Reis, entre os braços parnasianos de Safo!

De repente, estremeci... Era possível?!... Mas eu conhecia aqueles versos!...

Li-os outra vez:

"Quando te vejo, ó gentil imagem”.

Ora, ora! Eram os versos, os cambaios versos do dr. Sinfrônio, impingidos em segunda edição, e assinados sobre aquele delicioso papel de cetim pelo doce nome de Isaura!...

Tu, só tu, puro amor!...

Uma vez, um pobre apaixonado armara umas palavras desconcertadas, parecendo, de longe, versos... Vinte e tantos anos mais tarde, uma apaixonada, amorosa até o crime, plagia ousadamente a coisa e a impinge como sua, masculinizando-lhe devidamente o sentido!... Mistos de ousadia e fraqueza que amor prepara.

Notável coincidência fora aquela de ter visitado, dias antes, o filho do falecido Sinfrônio!..., que eu tanto conhecera, sem nunca descobrir-lhe vestígios do fogo sagrado que um dia lhe acendera no cérebro a paixão violenta e que o levara a urdir trabalhosamente a epopéia dos encantos de Isaura, para muitos anos depois, esta respeitável senhora, mutatis mutandis (8), converter em mavioso hino de amor (por este seu criado!) e festas de Reis, acompanhando o hino de uma coroa de cravos rubros com uma camélia branca ao centro!...

Triste destino dos poetas! Malvadas tentações de Cupido! Incansável Isaura!

(1) Pieguice – excessiva sentimentalidade
(2) Cambaio – coxo, manco
(3) Esbodegado – estragado; cansado
(4) Pelintra – pilantra
(5) Retinir – fazer soar um som agudo e persistente
(6) Berloque – enfeite que fica pendente no relógio
(7) Alea Jacta ! – Raul Pompeia errou, a expressão latina é “Alea jacta est !” , “a sorte está lançada”
(8) Mutatus mutandis – expressão latina, “mudando o que deve ser mudado”, no caso, mudar os versos que estavam no feminino para o masculino.

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domingo, 15 de março de 2015

A casa de pensão - Aloisio de Azevedo

A casa de pensão

Aloisio Gonçalves de Azevedo
(Extraído do livro “A casa de pensão”, 1884)

 

Morreu no dia seguinte.

A família ficou pobre. Foi preciso vender o melhor de dois prédios que restavam, para saldar as dívidas do defunto. A viúva principiou então a tomar encomendas de costura e de engomagem. Isso, porém, não bastava; era necessário, a todo o transe, que o menino continuasse nos estudos. Em tal aperto, lembrou-se a pobre mãe de admitir hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e prestava-se admiravelmente para a coisa.

Vieram os primeiros inquilinos; arranjaram-se fregueses para o almoço e jantar, e o órfão prosseguiu nas suas aulas. Dentro de pouco tempo, o sobrado da viúva de Lourenço era a mais estimada e popular casa de pensão do Rio de Janeiro.

Foi nela que Janjão se fez homem. Aí o viram bacharelar-se e aí se matriculou na Escola Central. A irmã respeitava-o como a um pai.

Amélia, por conseguinte, cresceu em uma — casa de pensão. Cresceu no meio da egoística indiferença de vários hóspedes, vendo e ouvindo todos os dias novas caras e novas opiniões, absorvendo o que apanhava da conversa dos caixeiros e estudantes irresponsáveis; afeita a comer em mesa redonda, a sentir perto de si, ao seu lado, na intimidade doméstica — homens estranhos, que não se preocupavam com lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito nu.

Ainda assim deram-lhe mestres. Aprendera a ler e a escrever, tocava já o seu bocado de piano e — se Deus não mandasse o contrário — havia de ir muito mais longe.

Um novo desastre, veio, porém, alterar todos planos: a viúva de Lourenço, depois de dois meses de cama, sucumbiu a uma pneumonia. João Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se mulher por um daqueles dias; parentes — não os tinham... capitais — ainda menos... Como, pois, sustentar a casa de pensão?... Oh! Era preciso despedir os hóspedes, alugar o prédio, abandonar os estudos e obter um emprego.

Arranjou-o de fato — na estrada de ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo a casa de pensão e foi mais a irmã residir em companhia de uma francesa, muito antiga no Brasil, e que durante longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta.

Chamava-se Mme. Brizard. Era mulher de cinqüenta anos, viúva de um afamado hoteleiro, que lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia de apólices da dívida pública.

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O brinquedo roubado-Humberto de Campos

O brinquedo roubado

Extraído de “Memórias”, 1933

Nota do bloguista : o livro "Memórias" de Humberto Campos e memorável. Longo e agradabilíssimo de se ler, um dos meus livros favoritos, conta as mudanças constantes na vida do autor, uma vida bastante incomum, regada de altos e baixos. Narrado em primeira pessoa, como toda memória deve ser, é uma autobiografia imperdivel, como se pode notar no texto que segue :  

    A nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para Parnaíba, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procuras se estabelecer o contato do meu coração com o mundo, ia se formando na minh’alma um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas pelo Destino.
    Foi a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela injustiça.
    Eu fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu perdi aos seis anos, e, depois órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno vidro, dos de Xarope de Cambará. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a Parnaíba, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior encanto das minhas tardes vadias, ás vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas árvores à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve, também, uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis: entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote (1) no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães. Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre. Fazia, em suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos, depois de servidos... Todos meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino pobre. Nenhum vinha da loja.
    É de imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha mãe, em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia, que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.
    Olhos ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequeno. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino órfão, mas infeliz que as outras crianças, e que, por isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.
    Quando ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.
    — Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis.
    — Dois, não; três... — declarou o dono da loja.
    Recontou os brinquedos e insistiu:
    — Falta um... Diga lá que falta um...
    Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.
    Não me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, ás crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.
    Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que possuía. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.
     E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele.

(1) Cornelio Nepote - (Gala Cisalpina, c. 100 a.C. - Roma c. 25. a.C), biógrafo e historiador romano.


Humberto Campos

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Dindinha–Humberto de Campos

Dindinha

Humberto de Campos
Extraído de “Memórias”, 1933


Dos meus avós paternos e maternos, foi o único que eu conheci. Era mãe de meu pai, e chamava-se Emídia. Mas todos nós, seus netos, lhe dávamos o tratamento de Dindinha.
Conheci-a em 1893, ao chegar, pequeno e órfão, a Parnaíba. Era uma velha gorda, limpa, alegre e branca. Dava aquela impressão que Fialho de Almeida tivera diante de outra figura feminina, de uma honrada senhora esculpida em toucinho. Estando com todos os filhos sobreviventes em boas condições de fortuna, tinha vida farta e sossegada. Vivia, por esse tempo, com meu tio Emídio, cuja família a tratava com desvelo e carinho. Todos os dias meu tio Feliciano e meu tio Franklin, já encarnecidos, iam vê-la e pedir-lhe a bênção. Morava em um quarto espaçoso, que se comunicava com a sala de jantar. Deitada em uma rede branca e de varandas largas, conservava sempre ao lado, armada paralelamente, outra rede, destinada à neta, ou cria caseira, que lhe fazia companhia. O seu maior encanto era escutar a leitura de romances, feita pelas pessoas da casa. Interessava-se pelos personagens dos dramas, como se fossem gente do seu conhecimento e da sua amizade. E assim era que, à custa dos olhos alheios, conhecia quase toda a obra, até então editada, e traduzida, de Júlio Verne, de Ponson, de Escrich, de Alexandre Dumas, de Richebourg, de Adolphe Melot. O seu quarto era, por isso mesmo, um pequeno centro literário, povoado de sombras felizes ou desgraçadas, saídas de romances líricos ou tormentosos, e cuja existência era ali comentada e discutida. Isso atraía as netas já moças, ou pouco mais que meninas, que se alternavam na leitura, transmitindo umas às outras o assunto do capítulo porventura lido na sua ausência.
Nós, os netos pequenos, tínhamos, também, uma atração especialíssima naquele quarto em que a velhice aguardava a mansa visita da morte. É que os meus tios levavam sempre, para a velha mãe, frutas e guloseimas, que ela não raro distribuía pelos visitantes miúdos. Foi ali, no seu quarto, que travei relações com a doce e tenra marmelada portuguesa, que vinha em pequeninas latas redondas, e que era partida em talhadas flexíveis e morenas. Essa marmelada, e algumas frutas, levavam-me a tomar a bênção à pesada senhora duas e, não raro, três vezes por dia.
Não me lembro se, além dessas manifestações de prodigalidade que me seduziam, essa minha avó me dava a mim, seu neto órfão, outra demonstração de carinho. Parece-me que não. Minha memória infantil guardou, apenas, a lembrança da sua figura, do seu quarto, dos seus romances e da sua marmelada. Depois, só me recordo que, indo um dia, à tarde, à casa de meu tio Emídio, encontrei-a com as janelas todas abertas e, na sala, um grande caixão preto, com enfeites de galão dourado. Não havia lágrimas nem soluços. Apenas tristeza, e conversas em voz baixa. Meu tio, vestido de preto, espalhava pela sala e pelos compartimentos próximos uma esquisita mistura de aguarrás e ácido fênico, destinada, parece, a disfarçar o mau cheiro do corpo em decomposição.
Não sei de que morreu, nem como. Parece-me, porém, que foi do coração. Eu tinha oito anos e no cérebro não cabia tudo. Sei, apenas, e com certeza, que, a mandado de minha mãe, fui me sentar na pedra da calçada e que, metido na minha roupinha nova, olhava dali com uma superioridade orgulhosa os meninos do sr. Antônio Martins Ribeiro, morador da casa fronteira, os quais deviam estar com enorme inveja de mim, pois a avó que tinha morrido era a minha, e não a deles.
E assim foi que, embora por pouco tempo, eu tive uma avó.

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A enferma–Joaquim Paço D´Arcos

A enferma

Joaquim Paço D´Arcos
(Joaquim Belford Correia da Silva (Lisboa, 1908 - 1979)
Extraído de “O caminho da culpa”

Reentrada na casa de saúde, Eugenia Maria recolheu ao quarto, onde pediu que lhe servissem o jantar. Mal tocou no que lhe ofereciam, tão falha estava de apetite e de disposição para comer.

Amelia, que não ficava de serviço, de noite, veio, antes de se retirar, despedir-se de sua doente :

- Então hoje é que foi uma grande ausência, Senhora Dona Eugenia ? Muito gostei de saber que tinha ido distrair-se.

- Grande distração, não haja dúvida...

- Sempre deve ter sido melhor do que estar para aqui metida. Nem, a bem dizer, a Senhora Dona Eugenia precisa de continuar aqui...

No estado de espirito que estava, todas as palavras a feriam, todos os comentários e conselhos a importunavam; nem se sentia com paciência para estabelecer a menor conversa. Por isso, com laconismo, limitou-se a indagar :

- Qual de vocês fica esta noite de serviço ?

- A Arminda, minha Senhora – respondeu a interrogada. Percebendo que a doente não desejava prolongar o diálogo – Então, até amanhã, e uma noite sossegadinha.

Ela ficou só, para a noite inteira... sossegadinha ...

Não se ouvia qualquer rumor, a não ser o dos raios teimosos no jardim; uma quietação muito grande tombara, de volta com a treva, sobre a casa de saúde, calando o gemido dos enfermos, embalando a própria dor, envolvendo em paz e em mistério o grande albergue do sofrimento. Noite após noite o mesmo manto de silêncio caia, cobrindo tudo, a casa grande, os jardins, a angústia dos doentes, o seu tormento íntimo e atroz. E a paz da noite não findava; a paz da noite e o seu tormento ! Nunca, em vida, supusera que as noites fossem tão extensas , nunca julgara que pudesse haver noites infindáveis ! Só de vez em quando a cega-rega dos ralos (1) era cortada pelo retinir da campainha dum dos quartos, logo seguido do sussurro de passos abafados na passadeira(2) do corredor. De quando em vez, mas raramente, rompia o silêncio o grito do leão, prisioneiro ali perto, nas jaulas do Jardim Zoológico. Mas até o leão encarcerado desaprender de rugir. E o seu bramido mais não era do que uivo lamentoso de ser engaiolado e vencido que já nem se recorda do que foi.

Nem a cega-rega dos ralos, nem o som das campainhas, nem os passos abafados, nem as vozes veladas, nem os automóveis notívagos, conduzindo médicos ou famílias de doentes, nem sequer o rugido do leão prisioneiro, nem um coisa, só, nem todas juntas, eram bastantes para destruir a realidade do silêncio das noites intérminas, mais forte do que a morte !

E foi, dessa forma, noites atrás de noites, que o silêncio a envolveu, que o silêncio se assenhorou dela, se apossou do seu espirito, a afastou da vida, lhe conduziu os passos...

(1) Cega-rega dos ralos : cega-rega é um instrumento que imita o som da cigarra; ralo é um inseto parecido com grilo.

(2) Passadeira : tapete estreito que se estende em corredores e escadas

 

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A moagem–Julio Ribeiro

A moagem

Julio Ribeiro
Extraído de “A carne”, 1888

Chegara o dia de principiar a moagem.
Já de véspera tinham os negros andado em uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.

Mal amanhecera entrou-se a ver no canavial fronteiro uma fita estreita de emurchecimento que aumentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o corte que começara. As roupas brancas de algodão, as saias azuis das pretas, as camisas de baeta vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquele oceano de verdura clara, agitadas por lufadas de vento quente.

No casarão do engenho, varrido, asseado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, refletindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se lôbregas, escancarando as grandes bocas gulosas.

A água, ainda presa na calha, espirrava pelas juntas da comporta sobre as línguas da roda, filetes cristalinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira muito lavada.

Ao longe, quase indistinto a princípio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, contínuo, monótono, irritante. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene (1), tripudiando (2) de júbilo.

Eram os primeiros carros de cana que chegavam.

Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros veículos estalando, gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas canas, riscadas de verde e roxo.

Carreiros negros, altos, espadaúdos, cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados ostentóricos:

-Eia, Lavarinto! Fasta, Ramalhete! Ruma, Barroso!

Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ágeis saltaram para cima deles, a descarregar. Em um momento empilharam-se as canas, de pé, atadas em feixe com as próprias folhas.

Fez-se fogo na fornalha das caldeiras, abriu-se a comporta da calha, a água despenhou-se em queda violenta sobre as línguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a princípio, depois acelerada.

Cortando os atilhos (3) de um feixe a golpes rápidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras canas ao revolver dos cilindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou de branco o desvão escuro em que giravam as moendas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajeto foi cair no cocho grande, marulhosa, gorgolante (4), com grande espumarada resistente.

Os negros banqueiros (5), empunhando espumadeiras de compridos cabos, tomaram lugar junto às caldeiras.

Levada por uma bica volante, a garapa encheu-os em um átimo. A fornalha esbraseou-se, escandesceu, irradiando um calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cair nas caldeiras, refervendo, aos gorgolões(7).

Dominava no ambiente aroma suave, sacarino, cortando espaços por uma lufada tépida de cheiro humano áspero, de catinga sufocante exalada dos negros em suor.

(1) Infrene – sem freios
(2) Tripudiar – exultar
(3) Atilho – cordão
(4) Gorgolante – que sai em golfadas
(5) Banqueiro – pessoa encarregada de cuidar das caldeiras do engenho
(6) Escandecer – o mesmo que incandescer, ficar em brasa
(7) Gorgolão – golfada

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