Doutor por correspondência - Marcos Rey
Minha casa (falo dum tempo muito distante)
por muitos anos serviu de hospedaria a parentes, quase desconhecidos, que
vinham do interior visitar ou tentar a vida na capital. Uns se alojavam em casa
porque não encontravam vagas nos hotéis, alguns por não gostarem deles e outros
porque confessavam preferir o convívio familiar. Primo Emílio estava entre
estes. Na carta em que nos preveniu de sua vinda, esclareceu que, tinha meios
para alugar um belo apartamento no centro ou uma casa confortável num bairro tranquilo,
mas temia magoar nosso espírito de hospitalidade. “Morro de saudade”, terminava
a carta.
Nunca um carteiro trouxe uma carta tão
surpreendente para minha família. É que Emílio era um primo distante, fora de
circulação e completamente esquecido. Eu só o conhecia através dum retrato
dele, já amarelado, num álbum de família. O Emílio, com uma palheta na cabeça,
gravata borboleta, num jardim público, diante duma jaula de macacos. Bela
chapa! A carta chegou às onze; ao meio-dia Emilio apertava a campainha de casa com sua
mala e sua simpatia. Certamente não usava mais palheta, mas a pretíssima
gravata borboleta estava lá, enfeitando seu afinado pescoço.
- Eh, gente! Aqui estou eu, o Emílio! Primo Emílio era um homem de estatura mediana, o corpo cilíndrico, o rosto oval e pequeno. Jovem era no espírito, pois dos lados seus cabelos já embranqueciam. Tinha que pintá-los mensalmente, como fiquei sabendo depois. Fumava como um possesso, cigarros Petit Londrino, e cuspia com frequência sem ver onde. Quando estava satisfeito, esfregava as mãos; ríamos muito desse costume. E gostava de dizer “Ora, muito bem!” mesmo quando as coisas não iam bem.
No dia da chegada, durante todo o almoço, só falou duma coisa: sua aversão. aos hotéis e da multidão de insetos que torturara suas noites de solidão e insônia. Mamãe, comovida, quase derrama uma lágrima enquanto primo Emílio fazia uma confissão:
- Mas já fui um ingrato, tia. Que se danem os parentes, dizia. Verdade, eu era assim. Porém o sofrimento me ensinou a estimar os parentes e a rezar para que nunca lhes falte saúde e dinheiro.
- Eh, gente! Aqui estou eu, o Emílio! Primo Emílio era um homem de estatura mediana, o corpo cilíndrico, o rosto oval e pequeno. Jovem era no espírito, pois dos lados seus cabelos já embranqueciam. Tinha que pintá-los mensalmente, como fiquei sabendo depois. Fumava como um possesso, cigarros Petit Londrino, e cuspia com frequência sem ver onde. Quando estava satisfeito, esfregava as mãos; ríamos muito desse costume. E gostava de dizer “Ora, muito bem!” mesmo quando as coisas não iam bem.
No dia da chegada, durante todo o almoço, só falou duma coisa: sua aversão. aos hotéis e da multidão de insetos que torturara suas noites de solidão e insônia. Mamãe, comovida, quase derrama uma lágrima enquanto primo Emílio fazia uma confissão:
- Mas já fui um ingrato, tia. Que se danem os parentes, dizia. Verdade, eu era assim. Porém o sofrimento me ensinou a estimar os parentes e a rezar para que nunca lhes falte saúde e dinheiro.
Aí não só minha mãe, todos ficaram
comovidos.
- Você traz algum plano do interior? - perguntou meu pai.
- Vou construir edifícios. Sabiam que São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo?
- Empreiteiro?
- Empreiteiro, eu? Arquiteto!
- E o diploma?
- Vou receber em dezembro, se passar nos exames.
- Em que faculdade você estuda, Emílio?
- Numa faculdade do Rio de Janeiro.
- Como é possível, se você não mora lã?!
Aí ele fez uma pausa inteligente e revelou:
- Vou me formar por correspondência. - E ante a incredulidade geral, prosseguiu:
- Hoje em dia apenas os incapazes é que vão à escola. Estamos no século XX, sabiam? Tudo agora é muito prático. Por isso inventaram esses cursos. Tenho um amigo que estuda até cirurgia por correspondência.
Meu pai ponderou:
- Você entregaria sua barriga a um cirurgião que tivesse se formado por correspondência?
- Entregava. Acho.
Primo Emílio, justiça se lhe faça, não ficou parado. Levantava cedo, tomava seu café com leite e saia às pressas para a rua. Voltava, às vezes, meia hora depois. No jantar, era o primeiro a chegar à mesa. Em seguida, tornava a sair com a mesma pressa, e o coitado ficava fora até alta madrugada. Imaginávamos que, mesmo antes de receber o diploma, já se lançam ao trabalho de construir, ele que odiava perder tempo.
- Você traz algum plano do interior? - perguntou meu pai.
- Vou construir edifícios. Sabiam que São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo?
- Empreiteiro?
- Empreiteiro, eu? Arquiteto!
- E o diploma?
- Vou receber em dezembro, se passar nos exames.
- Em que faculdade você estuda, Emílio?
- Numa faculdade do Rio de Janeiro.
- Como é possível, se você não mora lã?!
Aí ele fez uma pausa inteligente e revelou:
- Vou me formar por correspondência. - E ante a incredulidade geral, prosseguiu:
- Hoje em dia apenas os incapazes é que vão à escola. Estamos no século XX, sabiam? Tudo agora é muito prático. Por isso inventaram esses cursos. Tenho um amigo que estuda até cirurgia por correspondência.
Meu pai ponderou:
- Você entregaria sua barriga a um cirurgião que tivesse se formado por correspondência?
- Entregava. Acho.
Primo Emílio, justiça se lhe faça, não ficou parado. Levantava cedo, tomava seu café com leite e saia às pressas para a rua. Voltava, às vezes, meia hora depois. No jantar, era o primeiro a chegar à mesa. Em seguida, tornava a sair com a mesma pressa, e o coitado ficava fora até alta madrugada. Imaginávamos que, mesmo antes de receber o diploma, já se lançam ao trabalho de construir, ele que odiava perder tempo.
Certo dia, no almoço, primo Emílio
anunciou:
- Começo amanhã.
- Onde vai ser seu primeiro edifício? - indagou mamãe.
- Edifício? Do que está falando, tia?
- Não vai ser construtor?
Primo Emílio riu a valer, sacudindo a cabeça.
- Já há construtoras demais.
- Então o que vai fazer? - quis saber meu pai.
Primo Emílio foi para seu quarto, o dos fundos, donde tivemos que desalojar a empregada, e voltou triunfante com diversos pacotes que colocou sobre a mesa. Era como se trouxera ouro em pó, pois os pacotes continham pó, como logo nos mostrou.
- Este, sim, é um grande negócio.
- Que negócio?
- Vou fabricar bebidas.
- Bebidas?
Este pó amarelado é o uísque escocês. Este é um vermute muito saboroso. Este outro é vinho do Rio Grande. Bebidas finas daquelas que se fabricava antes da guerra. Aqui está o melhor negócio do mundo!
- E a destilaria? Vai precisar de uma, não?
- Bobagem!
Apenas na manhã seguinte. que era de sábado, conhecemos com detalhes os planos industriais do primo Emílio. Ele tinha razão, não precisava de destilaria. Bastavam pó, álcool e água. E mais outra coisa: a banheira velha, há anos aposentada num canto do quintal. Esfregando as mãos, com muito otimismo, e nomeando-me seu assistente, partiu para o trabalho.
Assim que o líquido ganhou cores, pegou uma colher de madeira, mergulhou-a na banheira e levou-a à boca. Retirou-a apressadamente.
- Mais pó! - exclamou.
Dei-lhe outro pacote, que imediatamente Emílio despejou na banheira. O líquido que era azul, ficou esverdeado, depois foi amarelando e por fim virou roxo.
- Bela cor! - admirou-se meu primo.
A segunda etapa foi encher as garrafas. Primo Emílio comprara algumas dúzias de garrafas vazias. Ajudei-o, interessado, nessa tarefa. Mas o seu dia não acabou aí. Faltavam os rótulos. Tinha um maço deles, coloridos, vistosos, escritos em inglês. Professoralmente, Emílio ensinou-me o sentido de algumas palavras, como made, finest, scotland e muitas outras. Sua pronúncia provavelmente não era boa, mas ele estava muito feliz.
Por dois meses ajudei primo. Emílio a fabricar as bebidas e a encher as garrafas, como também a colar os rótulos. As vezes surgia uma cor tão confusa que ninguém em casa conseguia distinguir; aí o Emílio colava nas garrafas o rótulo do “Rum das Antilhas”. Essa bebida tinha muita saída como verifiquei mais tarde.
Primo Emílio, pelo menos a princípio, deu sorte como industrial. A banheira estava sempre cheia e ele comprou centenas de garrafas vazias. Lembro que até pagou a meu pai o aluguel do quarto dos fundos,. o que causou a todos incrível surpresa. Aos domingos trazia à mesa um garrafão de vinho, não de sua fabricação, mas comprado num dos empórios do bairro. Renovou o guarda-roupa e deu de sair todas as noites, muito perfumado, com ares bacana.
Certo dia, primo Emílio declarou:
Vou mudar. Estou pensando em comprar uma casa nas Perdizes. Mas levo a banheira. Pago um conto por ela.
- Por um conto você pode comprar algumas banheiras novas - disse meu pai.
- Eu sei, mas sou muito grato a essa banheira. Disse um conto. Pago já.
- Já ?
- Quero dizer, amanhã.
Na manhã seguinte dois homens de chapéu apareceram em casa. Primo Emílio foi recebe-los de braços abertos. Mas não eram compradores. Ambos mostraram um distintivo na parte traseira da lapela e levaram o industrial, juntamente com um maço de rótulos de “Rum das Antilhas”.
Durante três dias primo Emílio permaneceu na Polícia, dando explicações. Consta que o delegado simpatizou com ele, como todo mundo, e o deixou ir em liberdade com a promessa de que nunca mais fabricaria bebidas nacionais ou estrangeiras. Primo Emílio voltou para casa, mas não derrotado, como supúnhamos. Era um homem otimista e cheio de idéias.
Eu dou um jeito - garantiu à mesa, ajeitando a gravata. - Neste mundo só não vence quem não quer. Em seguida, foi ao quintal e olhou demoradamente a banheira.
- Vou vendê-la para o ferro velho - disse meu pai.
- Eu disse que compro a banheira e não voltei atrás.
- Para fabricar bebidas? Isso, não!
- Tive outra ideia - comunicou, misteriosamente, antes de internar-se no quarto para meditar.
No dia seguinte, primo Emílio saiu cedo para comprar um fole. Eu disse um fole. Quando lhe perguntaram para que queria aquilo, não respondeu. O certo é que estava em plena ação. Meu pai descobriu que ele mandara fazer uma grande placa de três metros de comprimento por dois de largura. A banheira arrastou para seu quarto, depois de fazer nela alguns consertos. Andou verificando o encanamento da casa e, sem nenhuma consulta, mandou ladrilhar parte de seu modesto quarto, ao mesmo tempo que trocava os vidros da janela por outros espessos e escuros. Para finalizar, descobriu uma tipografia no bairro e encomendou milhares de impressos.
Todos em casa andávamos preocupados com essa movimentação, mas não foi preciso obriga-lo a falar.
- Agora já posso me abrir, sócio - disse ele a meu pai.
- O que está querendo dizer?
- Preste atenção, sócio.
- Antes me explique porque está me chamando de sócio?
- Vou explicar.
Quando ia explicar, tocaram a campainha. Eram carregadores trazendo a referida placa de três metros por dois. Fomos todos para a porta, curiosos, sabendo que ela explicaria tudo. Foi com assombro que meu pai leu: “Ao SULTÃO DOS BANHOS TURCOS - Reumatismo, artritismo, doenças da coluna, paralisias em geral - Duchas quentes e frias, segundo o moderníssimo processo Emilius”.
- Podem pregar a placa na fachada - ordenou Emílio aos carregadores. E voltando-se a meu pai:
- Pode dar uma gorjeta a eles, sócio?
- De volta à mesa, alegre e realizado, mas ainda com apetite, Emílio falou dos milagres que os banhos turcos realizam na cura das doenças da circulação. Os extremos, o quente e o frio. têm tirado da cama pessoas entrevadas há anos. Ele lera tudo a respeito e não tinha dúvidas. Quanto ao processo Emilius, reconhecia que não passava dum charme, algo diferente, um sopro de ar frio na espinha, aplicado com o fole, que se não fizesse bem, mal também não faria.
- Mas você pretende atender a seus clientes no quartinho do fundo? indagou minha mãe. Os doentes não querem comodidade, querem a cura. Você já fez alguma experiência?
- Eu não, mas os turcos fizeram antes de mim. Séculos de experiência. Vocês já viram algum turco reumático? Digam lá. Já viram?
- Não lembro - admitiu meu pai.
- Então. Se tivesse visto, não esqueceria.
Meu pai ainda resistia à sociedade, a despeito do dinheirão que podia ganhar com a casa de banhos.
- E a licença, Emílio? Tem licença para abrir o estabelecimento?
Primo Emílio levantou-se em meio à sobremesa, lembrando-se que precisava passar na tipografia, para apanhar os reclames, como dizia, para distribui-los pelas casas do bairro.
Emílio sempre acreditou muito na publicidade e foi a primeira pessoa que ouvi dizer que “a propaganda é a alma do negócio”.
Assim que primo Emílio saiu, fui à porta ver mais demoradamente a placa, que causava estranheza aos vizinhos, mesmo porque a falta de água era o grande problema da rua. A tardinha ele voltava, já tendo distribuído a maior parte dos seus folhetos. Devia estar entusiasmado, pois não o vira ainda fumar charuto, o que ele fazia gloriosamente.
Na manhã seguinte, ao contrário do seu hábito, Emílio levantou cedo e pôs-se a andar pela casa, talvez à espera do primeiro cliente. Esperou em vão o dia todo, passeando, impaciente.
Dois dias mais tarde resolveu sair, lembrando que o dono do armazém arrastava penosamente uma perna. Tentou convencê-lo a um tratamento de doze banhos. Embora cada banho fosse baratísismo, o homem preferiu continuar com sua perna paraplégica. Soubemos que o Emílio teve uma briga feia com ele e que só não o esmurrou, para convencê-lo, porque devia uma continha.
Nenhum cliente apareceu na primeira semana. Na segunda apareceu um, mas este mudou de ideia ao ver o enorme fole que produzia jato de ar frio na espinha. Ao completar-se o mes já estávamos todos certos de que o empreendimento de Emílio fracassara. Ele até já cuidava da retirada da tabuleta, quando um carro parou diante de casa e dele desceu sua grande esperança. Desceu não, foi descido. O que eu vi foi um velhinho, carregado pelos braços robustos de dois netos. Largaram-no numa poltrona da sala, o ancião segurando na mão trêmula um dos folhetos do Emílio.
- Por favor, quero ver o dr. Emílio.
Minha mãe, assustada com o estado do enfermo, e para evitar complicações, ia dizendo que o dr. Emílio fora viajar, quando ele irrompeu na sala com um sorriso capaz de incutir confiança e certeza de cura em todos os paraplégicos do mundo.
- Aqui estou eu! - exclamou, como se dissesse: aqui está a salvação. - Qual é seu caso? Ah, as pernas! Arregace as calças para examiná-lo.
- O exame foi breve.
- O que acha do caso, doutor?
- É sopa!
- Sopa?
- Sopa.
Em seguida, carregando-o pelos braços, Emílio levou o cliente ao quarto dos fundos, que se lamuriou e grunhiu durante todo o trajeto. Na sala, à espera, ficaram os netos, meu pai e minha mãe que rezava disfarçadamente. Eu fui até o quintal, perto do quarto, pois com meus doze anos era o único na família que acreditava nos milagres que o Emílio podia realizar com os banhos, o vapor e o fole.
No começo o velhinho parecia estar resistindo bem ao sacrifício. A água quente talvez o confortasse. Mas as coisas pioraram quando chegou do armazém aquela imensa pedra de gelo. Então o idoso cliente passou a gemer cada vez mais alto. Um dos netos bateu à porta, assustado, mas Emílio respondeu que “era assim mesmo e que tudo corria bem”. No entanto, os gemidos transformaram-se em gritos na aplicação ,da ducha de ar frio na espinha. Pensei que o velho bateria as botas, esticaria as canelas, iria para o beleléu. E parece que era essa a impressão de todos, inclusive da vizinhança.
Quando a ambulância chegou, o cliente do Emílio não gritava nem gemia mais, porém estava rígido e gelado. O primo, ainda segurando o fole, garantia aos netos do infeliz que ele resistiria melhor ao segundo banho. E enumerava ilustres paraplégicos que, dizia, frequentavam com bons resultados a sua clínica. Mas eles não quiseram ouvir nada, e, além de não pagar o banho, ainda insultaram o primo Emílio.
- É o que dá quando se lida com ignorantes - lamentou o sultão dos banhos turcos. - Mas se quiserem voltar, que não contem mais comigo!
Nunca vi ninguém mais triste que o primo Emílio como no dia em que retiraram a tabuleta da frente de casa. O mundo desabava para ele, sua última esperança que naufragava. Desiludido, arrumou as malas para voltar ao interior, mas não voltou. Ficou por lá, tentando bolar novas idéias, fundindo a cuca o dia inteiro; Cansada de sua presença, minha mãe lhe pediu a cama, pois a empregada não queria dormir mais no divã. Ele devolveu a cama, dizendo:
- Não faz mal, durmo na banheira.
Devia gostar dela, já que jamais levantava antes do meio dia.
Lembro que foi nas vésperas do Natal, o primo já muito desmoralizado na família, quando chegou pelo correio um cartucho envolto em papel de seda. Eu, que o recebi do carteiro, fui ao seu quarto. O primo roncava dentro da banheira, vestindo algo que já fora um pijama. Como não tinha mais dinheiro para pintar os cabelos, eles haviam embranquecido. Notei que sua velha palheta servia agora de cinzeiro. E a inseparável gravata não tinha mais cor, como o “Rum das Antilhas”. Acordei o primo com dificuldade, e entreguei-lhe o cartucho. Emílio, ainda sonolento, preferiu dormir mais, antes de abri-lo. Íamos nos sentar à mesa para o almoço quando ele surgiu. impetuosamente na sala sorrindo histericamente a brandir o cartucho no ar.
- O meu diploma! Passei nos exames! Sou doutor! Ouviram? Sou doutor!
- Era um belíssimo e solene diploma, nitidamente impresso, escrito com letras góticas, selado, carimbado e cheio de assinaturas dos dois lados.
- Vejam, está tudo em ordem - disse o primo. - Dentro da lei, como sempre exigi as coisas.
Meu pai, que não levava o primo a sério, teve que dar a mão à palmatória.
- É mesmo um turuna esse Emílio! Doutor por correspondência! Quem diria?
- E me formei com boa nota! Nove e meio. Nove e meio é nota e mais alguma coisa, homem!
A alegria do Emílio fez daquele Natal uma data inesquecível. Correu ao mercado e encomendou um peru com dinheiro que meu pai lhe adiantou, o que não tirava o valor do presente. Fez mais: em nossa conta comprou enfeites natalinos e armou uma belíssima árvore num canto da sala. Nem Papai Noel movimentou-se tanto quanto o Emilio naqueles dias. Quanto ao diploma, mandou fazer uma sólida moldura dourada e dependurou-o no corredor para que todos o vissem, quando passassem. A mesma tipografia que imprimiu os volantes de propaganda do “sultão dos banhos turcos” rodou mil cartões de visita: “Dr. Emílio de tal, arquiteto”.
Aquele resto de ano, passou-o fazendo planos, diante duma prancheta de arquiteto que mamãe lhe deu. Achava-se com fôlego suficiente para revolucionar a arquitetura e ganhar ,rios de dinheiro. Alguns desses projetos explicou detalhes, entre eles o de um imenso hospital para a classe média que ele considerava a grande injustiçada. Na festinha de fim de ano, à meia-noite, enquanto as crianças, na rua, martelavam os postes e as sirenes tocavam, fez solenemente uma revelação íntima e comovida: primo Emílio ia casar.
Vocês ignoram, mas há vinte anos sou noivo duma boa moça lá de minha cidade. Suponho que ela esteja um pouco cansada de esperar, mas agora que o dinheiro vai entrar, caso-me com ela. É a hora de criar juízo!
Essa revelação arrancou lágrimas da família e convenceu meu pai a ir comprar às pressas mais algumas garrafas de vinho porque o momento exigia. Nos primeiros dias de janeiro, primo Emílio já com um anelão de doutor no dedo, aconteceu aquilo. Isto é, uma notícia no jornal, na última página, dedicada ao noticiário policial.
A notícia aludia a uma verdadeira fábrica de diplomas do curso superior, localizada no Rio de Janeiro, cujo reitor já se encontrava nas grades. Vinha depois uma lista de diplomandos que haviam caído no conto, incluindo o nome do primo Emílio.
Meu primo foi o último em casa a ler a notícia. Ninguém tinha coragem de mostrar-lhe o jornal. Mas era necessário, antes que ele se empregasse como arquiteto numa construtora e acabasse preso também. Emílio bateu os olhos na página, entendeu e caiu sentado. Permaneceu algum tempo mudo e surdo às palavras de consolo que a família lhe dirigia. Depois, levantou-se e foi para o quarto dos fundos.
- Será que ele vai se matar? - receou minha mãe.
Aliás, era esse o temor de todos. Mas ele não se matou. Tendo encontrado no quarto um resto de pó colorido e uma garrafa de álcool, fabricou em pouco tempo uma quantidade de bebida capaz de obter o efeito desejado. Ao voltar para a sala, onde todos o esperavam, suas pernas cambaleavam e sua cabeça parecia dar giros. Quisemos que sentasse, mas preferiu circular em torno da mesa. Numa das voltas, perdeu o equilíbrio e caiu. Ameaçou vomitar, já sentado no divã. Pusemos um jornal no chão. Ao ver o jornal, não quis mais vomitar. Pediu café. Veio o café, não o tomou. Deu um pontapé na prancheta.
- Adeus, vou embora - disse.
- Você não pode andar assim pela rua - ponderaram.
- Nada mais me segura aqui. Volto para o interior e me caso com Joaninha.
- Joaninha? Só então soubemos o nome da paciente noiva.
- Fique - pediu meu pai.
- Não fico - respondeu, decidido, arrotando o inconfundível “Rum das Antilhas".
- Fique ao menos até amanhã.
- Até amanhã?
- Amanhã você já pode ir.
Emílio concentrou-se para sair de sua indecisão. Depois dum longo silêncio, resolveu:
- Já que insistem, hoje fico, amanhã eu parto.
Primo Emilio era homem de palavra: ficou. Apenas se esqueceu da segunda parte da promessa. Não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia as malas e dizia o seu adeus. Soubemos, mais tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata. O mundo é assim mesmo.
Nota do bloguista : nos anos 60 e 70 eram muito populares os cursos profissionalizantes por correspondencia. Havia cursos prá tudo, corte e costura, eletrônica, programação de computadores, secretariado, contabilidade, musica, etc. O lider deste mercado de educação a distancia era o Instituto Universal Brasileiro, que afirma ter ministrado mais de 1,5 milhões de cursos. Os cursos eram oferecidos em revistas de histórias em quadrinho, e a matricula era feita preenchendo se um cupom. Nada era exigido do matriculando (exceto, é claro, pagamento), bastava saber a ler, não se exigia nenhum pré requisito. Alguns anúncios tinham testemunhais de alunos contando maravilhas, histórias de sucesso e muito dinheiro no bolso.
- Começo amanhã.
- Onde vai ser seu primeiro edifício? - indagou mamãe.
- Edifício? Do que está falando, tia?
- Não vai ser construtor?
Primo Emílio riu a valer, sacudindo a cabeça.
- Já há construtoras demais.
- Então o que vai fazer? - quis saber meu pai.
Primo Emílio foi para seu quarto, o dos fundos, donde tivemos que desalojar a empregada, e voltou triunfante com diversos pacotes que colocou sobre a mesa. Era como se trouxera ouro em pó, pois os pacotes continham pó, como logo nos mostrou.
- Este, sim, é um grande negócio.
- Que negócio?
- Vou fabricar bebidas.
- Bebidas?
Este pó amarelado é o uísque escocês. Este é um vermute muito saboroso. Este outro é vinho do Rio Grande. Bebidas finas daquelas que se fabricava antes da guerra. Aqui está o melhor negócio do mundo!
- E a destilaria? Vai precisar de uma, não?
- Bobagem!
Apenas na manhã seguinte. que era de sábado, conhecemos com detalhes os planos industriais do primo Emílio. Ele tinha razão, não precisava de destilaria. Bastavam pó, álcool e água. E mais outra coisa: a banheira velha, há anos aposentada num canto do quintal. Esfregando as mãos, com muito otimismo, e nomeando-me seu assistente, partiu para o trabalho.
Assim que o líquido ganhou cores, pegou uma colher de madeira, mergulhou-a na banheira e levou-a à boca. Retirou-a apressadamente.
- Mais pó! - exclamou.
Dei-lhe outro pacote, que imediatamente Emílio despejou na banheira. O líquido que era azul, ficou esverdeado, depois foi amarelando e por fim virou roxo.
- Bela cor! - admirou-se meu primo.
A segunda etapa foi encher as garrafas. Primo Emílio comprara algumas dúzias de garrafas vazias. Ajudei-o, interessado, nessa tarefa. Mas o seu dia não acabou aí. Faltavam os rótulos. Tinha um maço deles, coloridos, vistosos, escritos em inglês. Professoralmente, Emílio ensinou-me o sentido de algumas palavras, como made, finest, scotland e muitas outras. Sua pronúncia provavelmente não era boa, mas ele estava muito feliz.
Por dois meses ajudei primo. Emílio a fabricar as bebidas e a encher as garrafas, como também a colar os rótulos. As vezes surgia uma cor tão confusa que ninguém em casa conseguia distinguir; aí o Emílio colava nas garrafas o rótulo do “Rum das Antilhas”. Essa bebida tinha muita saída como verifiquei mais tarde.
Primo Emílio, pelo menos a princípio, deu sorte como industrial. A banheira estava sempre cheia e ele comprou centenas de garrafas vazias. Lembro que até pagou a meu pai o aluguel do quarto dos fundos,. o que causou a todos incrível surpresa. Aos domingos trazia à mesa um garrafão de vinho, não de sua fabricação, mas comprado num dos empórios do bairro. Renovou o guarda-roupa e deu de sair todas as noites, muito perfumado, com ares bacana.
Certo dia, primo Emílio declarou:
Vou mudar. Estou pensando em comprar uma casa nas Perdizes. Mas levo a banheira. Pago um conto por ela.
- Por um conto você pode comprar algumas banheiras novas - disse meu pai.
- Eu sei, mas sou muito grato a essa banheira. Disse um conto. Pago já.
- Já ?
- Quero dizer, amanhã.
Na manhã seguinte dois homens de chapéu apareceram em casa. Primo Emílio foi recebe-los de braços abertos. Mas não eram compradores. Ambos mostraram um distintivo na parte traseira da lapela e levaram o industrial, juntamente com um maço de rótulos de “Rum das Antilhas”.
Durante três dias primo Emílio permaneceu na Polícia, dando explicações. Consta que o delegado simpatizou com ele, como todo mundo, e o deixou ir em liberdade com a promessa de que nunca mais fabricaria bebidas nacionais ou estrangeiras. Primo Emílio voltou para casa, mas não derrotado, como supúnhamos. Era um homem otimista e cheio de idéias.
Eu dou um jeito - garantiu à mesa, ajeitando a gravata. - Neste mundo só não vence quem não quer. Em seguida, foi ao quintal e olhou demoradamente a banheira.
- Vou vendê-la para o ferro velho - disse meu pai.
- Eu disse que compro a banheira e não voltei atrás.
- Para fabricar bebidas? Isso, não!
- Tive outra ideia - comunicou, misteriosamente, antes de internar-se no quarto para meditar.
No dia seguinte, primo Emílio saiu cedo para comprar um fole. Eu disse um fole. Quando lhe perguntaram para que queria aquilo, não respondeu. O certo é que estava em plena ação. Meu pai descobriu que ele mandara fazer uma grande placa de três metros de comprimento por dois de largura. A banheira arrastou para seu quarto, depois de fazer nela alguns consertos. Andou verificando o encanamento da casa e, sem nenhuma consulta, mandou ladrilhar parte de seu modesto quarto, ao mesmo tempo que trocava os vidros da janela por outros espessos e escuros. Para finalizar, descobriu uma tipografia no bairro e encomendou milhares de impressos.
Todos em casa andávamos preocupados com essa movimentação, mas não foi preciso obriga-lo a falar.
- Agora já posso me abrir, sócio - disse ele a meu pai.
- O que está querendo dizer?
- Preste atenção, sócio.
- Antes me explique porque está me chamando de sócio?
- Vou explicar.
Quando ia explicar, tocaram a campainha. Eram carregadores trazendo a referida placa de três metros por dois. Fomos todos para a porta, curiosos, sabendo que ela explicaria tudo. Foi com assombro que meu pai leu: “Ao SULTÃO DOS BANHOS TURCOS - Reumatismo, artritismo, doenças da coluna, paralisias em geral - Duchas quentes e frias, segundo o moderníssimo processo Emilius”.
- Podem pregar a placa na fachada - ordenou Emílio aos carregadores. E voltando-se a meu pai:
- Pode dar uma gorjeta a eles, sócio?
- De volta à mesa, alegre e realizado, mas ainda com apetite, Emílio falou dos milagres que os banhos turcos realizam na cura das doenças da circulação. Os extremos, o quente e o frio. têm tirado da cama pessoas entrevadas há anos. Ele lera tudo a respeito e não tinha dúvidas. Quanto ao processo Emilius, reconhecia que não passava dum charme, algo diferente, um sopro de ar frio na espinha, aplicado com o fole, que se não fizesse bem, mal também não faria.
- Mas você pretende atender a seus clientes no quartinho do fundo? indagou minha mãe. Os doentes não querem comodidade, querem a cura. Você já fez alguma experiência?
- Eu não, mas os turcos fizeram antes de mim. Séculos de experiência. Vocês já viram algum turco reumático? Digam lá. Já viram?
- Não lembro - admitiu meu pai.
- Então. Se tivesse visto, não esqueceria.
Meu pai ainda resistia à sociedade, a despeito do dinheirão que podia ganhar com a casa de banhos.
- E a licença, Emílio? Tem licença para abrir o estabelecimento?
Primo Emílio levantou-se em meio à sobremesa, lembrando-se que precisava passar na tipografia, para apanhar os reclames, como dizia, para distribui-los pelas casas do bairro.
Emílio sempre acreditou muito na publicidade e foi a primeira pessoa que ouvi dizer que “a propaganda é a alma do negócio”.
Assim que primo Emílio saiu, fui à porta ver mais demoradamente a placa, que causava estranheza aos vizinhos, mesmo porque a falta de água era o grande problema da rua. A tardinha ele voltava, já tendo distribuído a maior parte dos seus folhetos. Devia estar entusiasmado, pois não o vira ainda fumar charuto, o que ele fazia gloriosamente.
Na manhã seguinte, ao contrário do seu hábito, Emílio levantou cedo e pôs-se a andar pela casa, talvez à espera do primeiro cliente. Esperou em vão o dia todo, passeando, impaciente.
Dois dias mais tarde resolveu sair, lembrando que o dono do armazém arrastava penosamente uma perna. Tentou convencê-lo a um tratamento de doze banhos. Embora cada banho fosse baratísismo, o homem preferiu continuar com sua perna paraplégica. Soubemos que o Emílio teve uma briga feia com ele e que só não o esmurrou, para convencê-lo, porque devia uma continha.
Nenhum cliente apareceu na primeira semana. Na segunda apareceu um, mas este mudou de ideia ao ver o enorme fole que produzia jato de ar frio na espinha. Ao completar-se o mes já estávamos todos certos de que o empreendimento de Emílio fracassara. Ele até já cuidava da retirada da tabuleta, quando um carro parou diante de casa e dele desceu sua grande esperança. Desceu não, foi descido. O que eu vi foi um velhinho, carregado pelos braços robustos de dois netos. Largaram-no numa poltrona da sala, o ancião segurando na mão trêmula um dos folhetos do Emílio.
- Por favor, quero ver o dr. Emílio.
Minha mãe, assustada com o estado do enfermo, e para evitar complicações, ia dizendo que o dr. Emílio fora viajar, quando ele irrompeu na sala com um sorriso capaz de incutir confiança e certeza de cura em todos os paraplégicos do mundo.
- Aqui estou eu! - exclamou, como se dissesse: aqui está a salvação. - Qual é seu caso? Ah, as pernas! Arregace as calças para examiná-lo.
- O exame foi breve.
- O que acha do caso, doutor?
- É sopa!
- Sopa?
- Sopa.
Em seguida, carregando-o pelos braços, Emílio levou o cliente ao quarto dos fundos, que se lamuriou e grunhiu durante todo o trajeto. Na sala, à espera, ficaram os netos, meu pai e minha mãe que rezava disfarçadamente. Eu fui até o quintal, perto do quarto, pois com meus doze anos era o único na família que acreditava nos milagres que o Emílio podia realizar com os banhos, o vapor e o fole.
No começo o velhinho parecia estar resistindo bem ao sacrifício. A água quente talvez o confortasse. Mas as coisas pioraram quando chegou do armazém aquela imensa pedra de gelo. Então o idoso cliente passou a gemer cada vez mais alto. Um dos netos bateu à porta, assustado, mas Emílio respondeu que “era assim mesmo e que tudo corria bem”. No entanto, os gemidos transformaram-se em gritos na aplicação ,da ducha de ar frio na espinha. Pensei que o velho bateria as botas, esticaria as canelas, iria para o beleléu. E parece que era essa a impressão de todos, inclusive da vizinhança.
Quando a ambulância chegou, o cliente do Emílio não gritava nem gemia mais, porém estava rígido e gelado. O primo, ainda segurando o fole, garantia aos netos do infeliz que ele resistiria melhor ao segundo banho. E enumerava ilustres paraplégicos que, dizia, frequentavam com bons resultados a sua clínica. Mas eles não quiseram ouvir nada, e, além de não pagar o banho, ainda insultaram o primo Emílio.
- É o que dá quando se lida com ignorantes - lamentou o sultão dos banhos turcos. - Mas se quiserem voltar, que não contem mais comigo!
Nunca vi ninguém mais triste que o primo Emílio como no dia em que retiraram a tabuleta da frente de casa. O mundo desabava para ele, sua última esperança que naufragava. Desiludido, arrumou as malas para voltar ao interior, mas não voltou. Ficou por lá, tentando bolar novas idéias, fundindo a cuca o dia inteiro; Cansada de sua presença, minha mãe lhe pediu a cama, pois a empregada não queria dormir mais no divã. Ele devolveu a cama, dizendo:
- Não faz mal, durmo na banheira.
Devia gostar dela, já que jamais levantava antes do meio dia.
Lembro que foi nas vésperas do Natal, o primo já muito desmoralizado na família, quando chegou pelo correio um cartucho envolto em papel de seda. Eu, que o recebi do carteiro, fui ao seu quarto. O primo roncava dentro da banheira, vestindo algo que já fora um pijama. Como não tinha mais dinheiro para pintar os cabelos, eles haviam embranquecido. Notei que sua velha palheta servia agora de cinzeiro. E a inseparável gravata não tinha mais cor, como o “Rum das Antilhas”. Acordei o primo com dificuldade, e entreguei-lhe o cartucho. Emílio, ainda sonolento, preferiu dormir mais, antes de abri-lo. Íamos nos sentar à mesa para o almoço quando ele surgiu. impetuosamente na sala sorrindo histericamente a brandir o cartucho no ar.
- O meu diploma! Passei nos exames! Sou doutor! Ouviram? Sou doutor!
- Era um belíssimo e solene diploma, nitidamente impresso, escrito com letras góticas, selado, carimbado e cheio de assinaturas dos dois lados.
- Vejam, está tudo em ordem - disse o primo. - Dentro da lei, como sempre exigi as coisas.
Meu pai, que não levava o primo a sério, teve que dar a mão à palmatória.
- É mesmo um turuna esse Emílio! Doutor por correspondência! Quem diria?
- E me formei com boa nota! Nove e meio. Nove e meio é nota e mais alguma coisa, homem!
A alegria do Emílio fez daquele Natal uma data inesquecível. Correu ao mercado e encomendou um peru com dinheiro que meu pai lhe adiantou, o que não tirava o valor do presente. Fez mais: em nossa conta comprou enfeites natalinos e armou uma belíssima árvore num canto da sala. Nem Papai Noel movimentou-se tanto quanto o Emilio naqueles dias. Quanto ao diploma, mandou fazer uma sólida moldura dourada e dependurou-o no corredor para que todos o vissem, quando passassem. A mesma tipografia que imprimiu os volantes de propaganda do “sultão dos banhos turcos” rodou mil cartões de visita: “Dr. Emílio de tal, arquiteto”.
Aquele resto de ano, passou-o fazendo planos, diante duma prancheta de arquiteto que mamãe lhe deu. Achava-se com fôlego suficiente para revolucionar a arquitetura e ganhar ,rios de dinheiro. Alguns desses projetos explicou detalhes, entre eles o de um imenso hospital para a classe média que ele considerava a grande injustiçada. Na festinha de fim de ano, à meia-noite, enquanto as crianças, na rua, martelavam os postes e as sirenes tocavam, fez solenemente uma revelação íntima e comovida: primo Emílio ia casar.
Vocês ignoram, mas há vinte anos sou noivo duma boa moça lá de minha cidade. Suponho que ela esteja um pouco cansada de esperar, mas agora que o dinheiro vai entrar, caso-me com ela. É a hora de criar juízo!
Essa revelação arrancou lágrimas da família e convenceu meu pai a ir comprar às pressas mais algumas garrafas de vinho porque o momento exigia. Nos primeiros dias de janeiro, primo Emílio já com um anelão de doutor no dedo, aconteceu aquilo. Isto é, uma notícia no jornal, na última página, dedicada ao noticiário policial.
A notícia aludia a uma verdadeira fábrica de diplomas do curso superior, localizada no Rio de Janeiro, cujo reitor já se encontrava nas grades. Vinha depois uma lista de diplomandos que haviam caído no conto, incluindo o nome do primo Emílio.
Meu primo foi o último em casa a ler a notícia. Ninguém tinha coragem de mostrar-lhe o jornal. Mas era necessário, antes que ele se empregasse como arquiteto numa construtora e acabasse preso também. Emílio bateu os olhos na página, entendeu e caiu sentado. Permaneceu algum tempo mudo e surdo às palavras de consolo que a família lhe dirigia. Depois, levantou-se e foi para o quarto dos fundos.
- Será que ele vai se matar? - receou minha mãe.
Aliás, era esse o temor de todos. Mas ele não se matou. Tendo encontrado no quarto um resto de pó colorido e uma garrafa de álcool, fabricou em pouco tempo uma quantidade de bebida capaz de obter o efeito desejado. Ao voltar para a sala, onde todos o esperavam, suas pernas cambaleavam e sua cabeça parecia dar giros. Quisemos que sentasse, mas preferiu circular em torno da mesa. Numa das voltas, perdeu o equilíbrio e caiu. Ameaçou vomitar, já sentado no divã. Pusemos um jornal no chão. Ao ver o jornal, não quis mais vomitar. Pediu café. Veio o café, não o tomou. Deu um pontapé na prancheta.
- Adeus, vou embora - disse.
- Você não pode andar assim pela rua - ponderaram.
- Nada mais me segura aqui. Volto para o interior e me caso com Joaninha.
- Joaninha? Só então soubemos o nome da paciente noiva.
- Fique - pediu meu pai.
- Não fico - respondeu, decidido, arrotando o inconfundível “Rum das Antilhas".
- Fique ao menos até amanhã.
- Até amanhã?
- Amanhã você já pode ir.
Emílio concentrou-se para sair de sua indecisão. Depois dum longo silêncio, resolveu:
- Já que insistem, hoje fico, amanhã eu parto.
Primo Emilio era homem de palavra: ficou. Apenas se esqueceu da segunda parte da promessa. Não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia as malas e dizia o seu adeus. Soubemos, mais tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata. O mundo é assim mesmo.
Nota do bloguista : nos anos 60 e 70 eram muito populares os cursos profissionalizantes por correspondencia. Havia cursos prá tudo, corte e costura, eletrônica, programação de computadores, secretariado, contabilidade, musica, etc. O lider deste mercado de educação a distancia era o Instituto Universal Brasileiro, que afirma ter ministrado mais de 1,5 milhões de cursos. Os cursos eram oferecidos em revistas de histórias em quadrinho, e a matricula era feita preenchendo se um cupom. Nada era exigido do matriculando (exceto, é claro, pagamento), bastava saber a ler, não se exigia nenhum pré requisito. Alguns anúncios tinham testemunhais de alunos contando maravilhas, histórias de sucesso e muito dinheiro no bolso.
2 comentários:
Qual é a editora?
Marcos Rey
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