Natal na barca - Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo lembrar aqui porque me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal. A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanha-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
- Tão gelada - estranhei, enxugando a mão.
- Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
- De manhã esse rio é quente - insistiu ela, me encarando.
- Quente?
- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas ?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta: - Mas a senhora mora aqui perto?
- Em Lucena. Já tomei esta
barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais
contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a nina-la com um brando
movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale
preto, mas o rosto era tranquilo.
- Seu filho?- É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre. Mas Deus não vai me abandonar.
- É o caçula?Levantou a cabeça com energia. O
queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
- É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no
muro, estava brincando de mágico, quando de repente avisou, vou voar! E
atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito .
. . Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade,
voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e
fiquei a esfrega-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho
que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
- E esse? Que idade tem?- Vai completar um ano. E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:
- Era um
menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada,
mas era muito engraçado. . . A última mágica que fez foi perfeita, vou voar!
disse abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem
lembrancas, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me
envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças
para rompê-los.
- Seu marido está à sua espera?
- Meu marido me abandonou.
Sentei-me e ,tive vontade de rir, Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema. dos vasos comunicantes.
- Há muito tempo? Que seu marido...
- Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito . Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino .e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do
rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom
de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse
a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o
marido, ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos
braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não,
não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos. Aquelas mãos enérgicas.
Inconsciência? Uma obscura irritação me fez andar.Sentei-me e ,tive vontade de rir, Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema. dos vasos comunicantes.
- Há muito tempo? Que seu marido...
- Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito . Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino .e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
- A senhora é conformada.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro. o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio,. E pude imagina-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
- Tenho fé, dona. Deus nunca me
abandonou.
- Deus - repeti vagamente.
- A
senhora não acredita em Deus?
- Acredito - murmurei. E ao ouvir o som débil da
minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o
segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas.
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:
- Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que sai pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele. . . Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto . . . Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto.. Em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei a olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelace as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a nina-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:
- Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que sai pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele. . . Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto . . . Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto.. Em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei a olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelace as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a nina-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
- Estamos chegando - anunciou.Apanhei depressa minha pasta. O
importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe
daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de
atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
- Chegamos ! . . . Ei ! chegamos!
Aproximei-me evitando
encara-la.
- Acho melhor nos despedirmos aqui - disse atropeladamente, estendendo a mão.
- Acho melhor nos despedirmos aqui - disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
- Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem
nenhuma febre.
- Acordou?!
Ela sorriu.
- Veja.
Inclinei-me. A
criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados tão
definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei
olhando sem conseguir falar.
- Então, bom Natal ! - disse ela, enfiando a sacola no braço.Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro. o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio,. E pude imagina-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
Lygia Fagundes Telles |
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