Roupa no coradouro - José Veiga
Fui com meu pai até depois da ponte e ajudei-o a tocar os dois
cargueiros ladeira acima. Todo o tempo ele ficou falando no que eu devia fazer
enquanto ele estivesse fora, obedecer minha mãe em tudo, não deixá-la carregar
vasilhas pesadas de água, rachar a lenha que fosse necessária, mas ter muito
cuidado para não bater o machado no pé; não demorar na rua quando ela mandasse
dar algum recado ou fazer compra, e principalmente não andar de farrancho na
beira do rio com outros meninos maiores, porque isso assustava muito minha mãe
e ela não podia passar sustos. Eu não dizia nada, só ouvia e batia com a
cabeça, no fundo eu não estava triste com a viagem de meu pai, era a primeira
vez que ele ia ficar longe de nós por algum tempo e eu estava ansioso por ver
como seria a vida em casa sem ele para fiscalizar tudo. Quando passamos a
ladeira depois da ponte e os cargueiros tomaram a estrada carreira eu pedi a
bênção a meu pai, ele pôs a mão na minha cabeça e disse que Deus me abençoasse
e eu voltei quase correndo.
Mamãe estava sentada no banco da varanda ralando cidra com o ralo e a travessa no colo, ela disfarçou mas eu vi que ela andara chorando. Sentei perto para conversar um pouco e esperei que ela começasse mas ela não dizia nada, ficava muito atenta ralando os pedaços de cidra, de vez em quando passava o dedo grande na testa para afastar o cabelo e suspirava. Perguntei quando era que meu pai ia voltar, ela disse que logo que vendesse toda a mercadoria. Perguntei por que era que ele tinha deixado o ofício para ser mascate, ela zangou-se e respondeu que eu não devia chamá-lo de mascate, com certeza isso já era caçoada de outras pessoas, mas eu devia repelir quando ouvisse; ele ia apenas tentar a sorte no comércio, o ofício não estava dando, ninguém queria mais fazer nem reformar casa, era só remendo, e meu pai não podia ficar parado. Quando ele voltasse com a mercadoria toda vendida haveria dinheiro para as despesas até que a situação melhorasse.
Eu não estava muito interessado na volta de meu pai por enquanto, só queria que chegasse de noite para poder brincar na rua até tarde sem ficar com medo de ser repreendido ou mesmo de apanhar; por isso, quando ela perguntou se eu estava com fome eu disse que sim e fui logo para a cozinha, e já que eu estava remexendo nas panelas, para não perder o trabalho fui comendo o que havia - mandioca frita, carne assada e arroz sobrado do almoço, e no armário uma tigela com doce de batata. Quando acabei minha mãe perguntou se eu era capaz de ir em casa de D. Bita ver se ela podia mandar o dinheiro dos frangos que levara fiado desde o mês passado, não me mandou ir como fazia meu pai, perguntou apenas se eu era capaz de ir. Eu disse que ia quando acabasse de consertar a minha arraia, que perdera o rabo embaraçado em um coqueiro; e com aquilo de preparar grude, cortar papel e fazer as argolas passei o resto do dia e me esqueci do dinheiro. No dia seguinte ela falou de novo no assunto, mas aí eu tinha combinado uma pescaria, precisava tirar minhoca e trocar a vara do anzol, e acabei também não indo. Não sei se foi castigo, mas o certo é que passei a tarde inteira com o anzol na água e só peguei uns dois ou três lambarizinhos barrelas, que achei melhor dar para o Ciríaco juntar com os dele que eram mais. Também não me importei, porque assim minha mãe não precisava saber que eu estive pescando.
Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. Eu. ia à cozinha, lavava os pés mais ou menos, às vezes nem lavava, passava um pano, tomava o leite com farinha e ia dormir. Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa e outra pela casa, catando feijão, moendo café para a manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar.
Quando o circo chegou aí é que eu não tinha mesmo tempo para nada, nem para conversar direito com minha mãe. De manhã cedo era aquela correria de lavar o rosto, tomar café e sair depressa para a escola, quando voltava era só engolir a comida e ir ajudar dar água aos animais e depois sair com os outros meninos carregando o quadro negro pelas ruas, tocando buzina e gritando para chamar a atenção do povo. A gente trabalhava para ganhar entrada todas as noites, mas mesmo que não ganhasse eu acho que a gente trabalhava assim mesmo só para poder ver o circo por dentro. Com isso eu não tinha tempo nem para encher as vasilhas de água lá de casa, e muitas vezes quando eu passava com o quadro negro pelo largo eu via minha mãe carregando um balde cheio em cada mão, ou parada com outras mulheres no chafariz esperando a vez. Da primeira vez eu fiquei com vergonha e procurei me esconder atrás do quadro, mas depois me acostumei e não sentia mais nada. Um dia, quando eu estava deitado relembrando tudo o que eu tinha visto no circo, tive pena de minha mãe estar perdendo tudo aquilo e achei que ela devia ir nem que fosse uma vez, ao menos para ver o palhaço e o salto da morte, o palhaço tinha uma cachorrinha chamada Violeta que ele vivia puxando para aqui e para ali, e bastava ele gritar Violeta para todo mundo cair na risada. No dia seguinte eu convidei minha mãe, mas ela disse que era melhor não gastar o pouco dinheiro que meu pai tinha deixado para as despesas. Eu disse que eu podia vender minha galinha para ela não ter que tocar no dinheiro das despesas, ela pensou um pouco, eu vi que estava satisfeita com o convite, mas depois sacudiu a cabeça e disse que se ela fosse ia ficar o tempo todo pensando em meu pai, e quanto mais estivesse gostando mais ia desejar que ele também estivesse lá, e assim era melhor não ir.
Pensei que quando o circo fosse embora eu ia ter mais tempo para ajudar em casa, mas aí inventamos de imitar os trapezistas, assentamos trapézio no quintal de Ciríaco, lá tínha muita corda e laço por causa das vacas que eles criavam para vender leite, e passávamos o tempo todo exercitando, destronquei o pé e andei muitos dias mancando, mas o Marquim foi pior porque quebrou o braço e entortou o pescoço, do braço ficou bom mas do pescoço dizem que não fica. Também ele foi o mais afoito, foi o único que teve coragem de tentar o salto da morte.
Foi logo depois disso que minha mãe adoeceu. Ela estava na cozinha fazendo o almoço mas teve que parar e deitar na rede para descansar, disse que estava com um pouco de febre e tontura, quando pisava não sentia o chão. Ela perguntou se eu podia ir na farmácia comprar umas cápsulas e voltar já, me mandou apanhar o dinheiro no potinho embaixo da santa, eu fui mas no caminho encontrei uns meninos brincando de pião, por sorte eu estava com o meu no bolso, entrei no meio deles e me esqueci da hora. Cheguei em casa arrependido de ter demorado, mas felizmente D. Ana Bessa estava lá, tinha acabado de fazer o almoço para mim e estava dando um chá para mamãe no quarto. Eu pensei que ela gostava de mim, ela estava sempre lá em casa ou mamãe na casa dela, uma vez ela até me deu uma botinha de abotoar. no dia dos meus anos; mas quando acabou de dar o chá para mamãe ela veio à cozinha onde eu estava fazendo o meu prato, ficou me olhando da porta e sem mais nem menos disse que eu tinha feito um papel muito feio, que minha mãe estava muito doente e ela ia me vigiar, se eu não deixasse a vadiação ela ia contar tudo a meu pai quando ele chegasse. Eu fiquei passado, era a primeira vez que ela falava assim comigo, e se a fome não fosse muita eu teria até perdido a vontade de comer.
Depois de almoçar eu achei que devia lavar o prato eu mesmo para D. Ana não ter o que falar, arrumei as panelas no fogão e fui ao quarto ver minha mãe. Ela estava dormindo mas não parava de virar a cabeça de um lado para o outro no travesseiro. Fiquei lá um pouco mas como o quarto estava escuro e quente resolvi ir brincar no quintal, subi na mangueira grande e fiquei lá em cima enganchado numa forquilha descansando. e olhando os outros quintais. Seu Amâncio estava roçando o matinho perto da horta, e quando chegou junto da cerca pegou uma caçamba velha do chão e jogou para o quintal do Seu Aprígio. Eu achei aquilo engraçado porque dias antes eu tinha visto Seu Aprígio jogar aquela mesma caçamba para o quintal de Seu Amâncio; no entanto, quem os visse conversando de tarde em suas janelas não saberia que eles tinham essa picuinha por cima da cerca. D. Ana Bessa ia voltando da horta com um manojo de ervas na mão, parou debaixo de um limoeiro, olhou para os lados, ergueu um poucoa saia na frente fazendo roda, afastou as pernas e ficou lá quieta olhando para o tempo. Imagine se ela soubesse que eu estava vendo.
Pensei em minha mãe sozinha no quarto e resolvi descer para ver se ela queria alguma coisa. Ela estava acordada, brincando com a ponta das tranças. Quando me viu entrar no quarto começou a sorrir mas fechou os olhos e gemeu baixinho; e quando abriu os olhos de novo ficou me olhando demorado, ainda querendo sorrir, depois perguntou se eu já tinha jantado. Achei esquisito porque fazia pouco mais de uma hora que eu tinha almoçado, e também a voz dela saiu diferente. Ela me pediu para sentar na beira da cama, eu sentei, ela pegou a minha mão e ficou alisando. Depois virou o rosto para a parede, a mão dela muito quente na minha, até fazia a minha suar, quando vi ela estava chorando. Fiquei tão assustado que tive vontade de sair correndo para chamar D. Ana, procurei soltar minha mão devagarinho mas não tive coragem, ela me segurava com força. Eu queria dizer muitas coisas para ela, coisas bonitas e carinhosas, mas não achei o que dizer e acabei chorando também.D. Ana entrou sem fazer barulho, e do jeito que me olhou eu vi que ela era de novo minha amiga. Ela sentou na beira da cama de frente para mim, debruçou em cima de minha mãe e pôs a mão na testa dela, depois debaixo do queixo.
- Muita febre, coitadinha - disse ela. - Matei um frango pra fazer um caldinho pra ela. Acho bom você chamar o Dr. Vergílio. Eu fico com ela enquanto você vai. Diz a ele pra fazer o favor de vir logo.
Se eu não tivesse parado na porta da venda para ver o mico comer amendoim eu teria alcançado o Dr. Vergílio ainda em casa. Tinha muita gente em volta olhando e rindo, eu quis ver também, o dono jogava um amendoim o mico pegava, descascava e comia e punha as cascas na cabeça e ficava balançando o corpo como se dançasse. Enquanto eu estava rindo como todo mundo alguém tirou o meu boné e jogou para o mico. Primeiro ele examinou o boné de todo jeito, virou do avesso, esfregou no corpo como se fosse sabão, depois botou na cabeça com o bico para trás. Eu quis tomar o boné mas o mico não deixava, eu esticava a mão ele gritava e ameaçava morder, e isso foi o que o povo achou mais engraçado, só eu é que não ria, eu queria o meu boné para ir chamar o Dr. Vergílio, minha mãe estava doente e não podia esperar, comecei a chorar e as risadas não paravam, apanhei uma pedra pra jogar no mico muitas mãos me seguraram, o dono do mico apanhou o boné e jogou para mim.
Faltavam umas duas casas para chegar na farmácia quando vi o Dr. Vergílio montar o cavalo e sair com a espingarda cruzada nas costas. Eu podia ter corrido e gritado ele que ia depressa mas o susto de não alcançá-lo foi tão grande que na hora não me lembrei, só depois que ele dobrou a esquina da rua que desce para o rio foi que pensei nisso, mas aí não adiantava mais correr.
Cheguei em casa chorando e disse a D. Ana que o doutor tinha ido para a espera. Ela pôs as duas mãos no rosto e disse “Valha-nos Deus!”, depois xingou muito o Dr. Vergílio, e quando se acalmou alisou a minha cabeça e disse que eu não devia chorar que a culpa não era minha mas daquele homem imprestável. Eu parei de chorar e sentei na canastra onde minha mãe guardava a nossa roupa, mas de cada vez que eu lembrava da minha parada na venda eu chorava mais. D'. Ana pensou que era por eu não ter encontrado o doutor mas era porque eu sabia que o imprestável era eu, como meu pai às vezes dizia.
Depois que D. Ana trouxe o caldo para mamãe eu disse que achava bom eu voltar à farmácia para ver se o doutor já tinha voltado. Ela disse que eu ia perder a caminhada, se ele tinha ido esperar só voltaria muito tarde da noite ou de madrugada. Eu quis ir assim mesmo, podia ser que ele tinha esquecido alguma coisa e voltado para apanhar; e antes que ela fizesse qualquer reparo eu fui saindo depressa. Dessa vez não parei em parte nenhuma, e quando cheguei na farmácia fiz de conta que não sabia de nada. D. Rute estava sentada atrás do balcão dando mamar ao filho menor. Perguntei pelo Dr. Vergílio, ela disse que ele tinha ido do outro lado do morro ver um doente. Perguntei se depois de ver o doente será que ele não ia fazer espera, ela disse que não; ele tinha levado a espingarda mas era só por costume, e para o caso de encontrar alguma perdiz no caminho. Então eu disse que era para ele fazer o favor de ir lá em casa logo que chegasse porque mamãe estava muito doente. Ela quis saber qual era a doença, eu disse que era febre; ela perguntou se eu não queria levar umas cápsulas para ir tentando, eu disse que já tinha levado mas que não adiantou.
Eu não saí mais de casa naquele dia nem no outro. Aos poucos a casa foi enchendo de gente, mulheres mais, umas com filhos pequenos, outras com meninos já grandinhos, que ficavam me amolando para brincar. Mulheres que eu só conhecia de vista e achava antipáticas mexiam em nossa cozinha, faziam mingau para os filhos nas vasilhas de mamãe, ou café para as visitas.
Passou a noite inteira e o Dr. Vergílio não apareceu. D. Ana já estava desesperada, e no dia seguinte logo cedo ela mesma foi à farmácia indagar. D. Rute não sabia de nada, achava que de onde estava ele devia ter tido algum outro chamado. D. Ana deixou recado e passamos mais um dia inteiro na mesma aflição. Tarde da noite ele chegou, pôs todas as mulheres para fora do quarto, eu quis ficar ele não deixou. Mais tarde ele chamou D. Ana e tornaram a fechar a porta; e quando finalmente saíram do quarto eu vi que ela estava chorando, muito disfarçado mas estava. O doutor aceitou uma xícara de café que lhe ofereceram, e enquanto. Bebia soprando disse que era bom mandarem chamar meu pai, mas ninguém sabia onde ele estava. Já na porta o doutor disse que precisava de alguém para trazer uns remédios que ele ia preparar na farmácia, eu disse que eu ia, D. Ana não deixou e uma das mulheres se ofereceu. Eu queria ficar sozinho num canto mas havia gente por toda parte, só na rede da varanda tinha três meninas se balançando e rindo espremido, D. Ana teve de ralhar com elas por causa do barulho que faziam.
Eu estava sentado na canastra no quarto de minha mãe, o único lugar que achei para sentar, quando o padre chegou. Que susto eu levei ao vê-lo entrar com o livrinho de mas na mão e já murmurando orações, tive vontade de manda-lo embora mas faltou coragem, eu estava acostumado a ser muito obediente perto dele, e até de pedir a bênção, mas desta vez não pedi. Ele fez sinal para eu sair do quarto eu não liguei, tiveram que levar-me à força, fui chorando alto, sem nenhum acanhamento. Uma vizinha quis me levar para dormir na casa dela, eu gritei que não ia, eu sabia que minha mãe estava morrendo e não queria ficar longe dela. Levaram-me para a cozinha e me deram uma xícara com calmante, mas eu só parei de chorar quando vi que muita gente estava chorando também, principalmente as meninas.
Depois que o padre saiu D. Ana sentou comigo na rede, puxou minha cabeça para o ombro dela e ficou alisando o meu cabelo sem dizer nada, e foi bom porque eu não queria que falasse comigo. Quando acordei eu estava sozinho na rede, meu pai ajoelhado na minha frente, com as mãos nos meus joelhos. Abracei o pescoço dele, ele levantou abraçado comigo e ficamos os dois chorando. Depois ele me soltou no chão e disse que devíamos ir ao quarto despedir de mamãe e pedir perdão a ela. Ela estava com os cabelos soltos no travesseiro, e tão corada e bonita que pensei que não estava mais doente e que ia se levantar quando nos visse; mas chegamos bem perto da cama e parece que ela não nos viu porque continuou alisando a bainha do lençol e falando palavras que não entendi. Chamei-a duas vezes e ela nem me olhou, e quando segurei a mão dela para beijar ela disse:
- Não, não! Meu filho! Chamem meu filho! Coitado de meu filho, vai ficar sozinho.
Meu pai ajoelhou-se no chão e encostou a testa no cabelo de minha mãe, eu ajoelhei também e ficamos lá chorando. Alguém quis nos tirar de lá, D. Ana não deixou e mandou que as outras pessoas saíssem do quarto. Quando dei fé, meu pai tocava o meu braço e dizia:
Mamãe estava sentada no banco da varanda ralando cidra com o ralo e a travessa no colo, ela disfarçou mas eu vi que ela andara chorando. Sentei perto para conversar um pouco e esperei que ela começasse mas ela não dizia nada, ficava muito atenta ralando os pedaços de cidra, de vez em quando passava o dedo grande na testa para afastar o cabelo e suspirava. Perguntei quando era que meu pai ia voltar, ela disse que logo que vendesse toda a mercadoria. Perguntei por que era que ele tinha deixado o ofício para ser mascate, ela zangou-se e respondeu que eu não devia chamá-lo de mascate, com certeza isso já era caçoada de outras pessoas, mas eu devia repelir quando ouvisse; ele ia apenas tentar a sorte no comércio, o ofício não estava dando, ninguém queria mais fazer nem reformar casa, era só remendo, e meu pai não podia ficar parado. Quando ele voltasse com a mercadoria toda vendida haveria dinheiro para as despesas até que a situação melhorasse.
Eu não estava muito interessado na volta de meu pai por enquanto, só queria que chegasse de noite para poder brincar na rua até tarde sem ficar com medo de ser repreendido ou mesmo de apanhar; por isso, quando ela perguntou se eu estava com fome eu disse que sim e fui logo para a cozinha, e já que eu estava remexendo nas panelas, para não perder o trabalho fui comendo o que havia - mandioca frita, carne assada e arroz sobrado do almoço, e no armário uma tigela com doce de batata. Quando acabei minha mãe perguntou se eu era capaz de ir em casa de D. Bita ver se ela podia mandar o dinheiro dos frangos que levara fiado desde o mês passado, não me mandou ir como fazia meu pai, perguntou apenas se eu era capaz de ir. Eu disse que ia quando acabasse de consertar a minha arraia, que perdera o rabo embaraçado em um coqueiro; e com aquilo de preparar grude, cortar papel e fazer as argolas passei o resto do dia e me esqueci do dinheiro. No dia seguinte ela falou de novo no assunto, mas aí eu tinha combinado uma pescaria, precisava tirar minhoca e trocar a vara do anzol, e acabei também não indo. Não sei se foi castigo, mas o certo é que passei a tarde inteira com o anzol na água e só peguei uns dois ou três lambarizinhos barrelas, que achei melhor dar para o Ciríaco juntar com os dele que eram mais. Também não me importei, porque assim minha mãe não precisava saber que eu estive pescando.
Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. Eu. ia à cozinha, lavava os pés mais ou menos, às vezes nem lavava, passava um pano, tomava o leite com farinha e ia dormir. Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa e outra pela casa, catando feijão, moendo café para a manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar.
Quando o circo chegou aí é que eu não tinha mesmo tempo para nada, nem para conversar direito com minha mãe. De manhã cedo era aquela correria de lavar o rosto, tomar café e sair depressa para a escola, quando voltava era só engolir a comida e ir ajudar dar água aos animais e depois sair com os outros meninos carregando o quadro negro pelas ruas, tocando buzina e gritando para chamar a atenção do povo. A gente trabalhava para ganhar entrada todas as noites, mas mesmo que não ganhasse eu acho que a gente trabalhava assim mesmo só para poder ver o circo por dentro. Com isso eu não tinha tempo nem para encher as vasilhas de água lá de casa, e muitas vezes quando eu passava com o quadro negro pelo largo eu via minha mãe carregando um balde cheio em cada mão, ou parada com outras mulheres no chafariz esperando a vez. Da primeira vez eu fiquei com vergonha e procurei me esconder atrás do quadro, mas depois me acostumei e não sentia mais nada. Um dia, quando eu estava deitado relembrando tudo o que eu tinha visto no circo, tive pena de minha mãe estar perdendo tudo aquilo e achei que ela devia ir nem que fosse uma vez, ao menos para ver o palhaço e o salto da morte, o palhaço tinha uma cachorrinha chamada Violeta que ele vivia puxando para aqui e para ali, e bastava ele gritar Violeta para todo mundo cair na risada. No dia seguinte eu convidei minha mãe, mas ela disse que era melhor não gastar o pouco dinheiro que meu pai tinha deixado para as despesas. Eu disse que eu podia vender minha galinha para ela não ter que tocar no dinheiro das despesas, ela pensou um pouco, eu vi que estava satisfeita com o convite, mas depois sacudiu a cabeça e disse que se ela fosse ia ficar o tempo todo pensando em meu pai, e quanto mais estivesse gostando mais ia desejar que ele também estivesse lá, e assim era melhor não ir.
Pensei que quando o circo fosse embora eu ia ter mais tempo para ajudar em casa, mas aí inventamos de imitar os trapezistas, assentamos trapézio no quintal de Ciríaco, lá tínha muita corda e laço por causa das vacas que eles criavam para vender leite, e passávamos o tempo todo exercitando, destronquei o pé e andei muitos dias mancando, mas o Marquim foi pior porque quebrou o braço e entortou o pescoço, do braço ficou bom mas do pescoço dizem que não fica. Também ele foi o mais afoito, foi o único que teve coragem de tentar o salto da morte.
Foi logo depois disso que minha mãe adoeceu. Ela estava na cozinha fazendo o almoço mas teve que parar e deitar na rede para descansar, disse que estava com um pouco de febre e tontura, quando pisava não sentia o chão. Ela perguntou se eu podia ir na farmácia comprar umas cápsulas e voltar já, me mandou apanhar o dinheiro no potinho embaixo da santa, eu fui mas no caminho encontrei uns meninos brincando de pião, por sorte eu estava com o meu no bolso, entrei no meio deles e me esqueci da hora. Cheguei em casa arrependido de ter demorado, mas felizmente D. Ana Bessa estava lá, tinha acabado de fazer o almoço para mim e estava dando um chá para mamãe no quarto. Eu pensei que ela gostava de mim, ela estava sempre lá em casa ou mamãe na casa dela, uma vez ela até me deu uma botinha de abotoar. no dia dos meus anos; mas quando acabou de dar o chá para mamãe ela veio à cozinha onde eu estava fazendo o meu prato, ficou me olhando da porta e sem mais nem menos disse que eu tinha feito um papel muito feio, que minha mãe estava muito doente e ela ia me vigiar, se eu não deixasse a vadiação ela ia contar tudo a meu pai quando ele chegasse. Eu fiquei passado, era a primeira vez que ela falava assim comigo, e se a fome não fosse muita eu teria até perdido a vontade de comer.
Depois de almoçar eu achei que devia lavar o prato eu mesmo para D. Ana não ter o que falar, arrumei as panelas no fogão e fui ao quarto ver minha mãe. Ela estava dormindo mas não parava de virar a cabeça de um lado para o outro no travesseiro. Fiquei lá um pouco mas como o quarto estava escuro e quente resolvi ir brincar no quintal, subi na mangueira grande e fiquei lá em cima enganchado numa forquilha descansando. e olhando os outros quintais. Seu Amâncio estava roçando o matinho perto da horta, e quando chegou junto da cerca pegou uma caçamba velha do chão e jogou para o quintal do Seu Aprígio. Eu achei aquilo engraçado porque dias antes eu tinha visto Seu Aprígio jogar aquela mesma caçamba para o quintal de Seu Amâncio; no entanto, quem os visse conversando de tarde em suas janelas não saberia que eles tinham essa picuinha por cima da cerca. D. Ana Bessa ia voltando da horta com um manojo de ervas na mão, parou debaixo de um limoeiro, olhou para os lados, ergueu um poucoa saia na frente fazendo roda, afastou as pernas e ficou lá quieta olhando para o tempo. Imagine se ela soubesse que eu estava vendo.
Pensei em minha mãe sozinha no quarto e resolvi descer para ver se ela queria alguma coisa. Ela estava acordada, brincando com a ponta das tranças. Quando me viu entrar no quarto começou a sorrir mas fechou os olhos e gemeu baixinho; e quando abriu os olhos de novo ficou me olhando demorado, ainda querendo sorrir, depois perguntou se eu já tinha jantado. Achei esquisito porque fazia pouco mais de uma hora que eu tinha almoçado, e também a voz dela saiu diferente. Ela me pediu para sentar na beira da cama, eu sentei, ela pegou a minha mão e ficou alisando. Depois virou o rosto para a parede, a mão dela muito quente na minha, até fazia a minha suar, quando vi ela estava chorando. Fiquei tão assustado que tive vontade de sair correndo para chamar D. Ana, procurei soltar minha mão devagarinho mas não tive coragem, ela me segurava com força. Eu queria dizer muitas coisas para ela, coisas bonitas e carinhosas, mas não achei o que dizer e acabei chorando também.D. Ana entrou sem fazer barulho, e do jeito que me olhou eu vi que ela era de novo minha amiga. Ela sentou na beira da cama de frente para mim, debruçou em cima de minha mãe e pôs a mão na testa dela, depois debaixo do queixo.
- Muita febre, coitadinha - disse ela. - Matei um frango pra fazer um caldinho pra ela. Acho bom você chamar o Dr. Vergílio. Eu fico com ela enquanto você vai. Diz a ele pra fazer o favor de vir logo.
Se eu não tivesse parado na porta da venda para ver o mico comer amendoim eu teria alcançado o Dr. Vergílio ainda em casa. Tinha muita gente em volta olhando e rindo, eu quis ver também, o dono jogava um amendoim o mico pegava, descascava e comia e punha as cascas na cabeça e ficava balançando o corpo como se dançasse. Enquanto eu estava rindo como todo mundo alguém tirou o meu boné e jogou para o mico. Primeiro ele examinou o boné de todo jeito, virou do avesso, esfregou no corpo como se fosse sabão, depois botou na cabeça com o bico para trás. Eu quis tomar o boné mas o mico não deixava, eu esticava a mão ele gritava e ameaçava morder, e isso foi o que o povo achou mais engraçado, só eu é que não ria, eu queria o meu boné para ir chamar o Dr. Vergílio, minha mãe estava doente e não podia esperar, comecei a chorar e as risadas não paravam, apanhei uma pedra pra jogar no mico muitas mãos me seguraram, o dono do mico apanhou o boné e jogou para mim.
Faltavam umas duas casas para chegar na farmácia quando vi o Dr. Vergílio montar o cavalo e sair com a espingarda cruzada nas costas. Eu podia ter corrido e gritado ele que ia depressa mas o susto de não alcançá-lo foi tão grande que na hora não me lembrei, só depois que ele dobrou a esquina da rua que desce para o rio foi que pensei nisso, mas aí não adiantava mais correr.
Cheguei em casa chorando e disse a D. Ana que o doutor tinha ido para a espera. Ela pôs as duas mãos no rosto e disse “Valha-nos Deus!”, depois xingou muito o Dr. Vergílio, e quando se acalmou alisou a minha cabeça e disse que eu não devia chorar que a culpa não era minha mas daquele homem imprestável. Eu parei de chorar e sentei na canastra onde minha mãe guardava a nossa roupa, mas de cada vez que eu lembrava da minha parada na venda eu chorava mais. D'. Ana pensou que era por eu não ter encontrado o doutor mas era porque eu sabia que o imprestável era eu, como meu pai às vezes dizia.
Depois que D. Ana trouxe o caldo para mamãe eu disse que achava bom eu voltar à farmácia para ver se o doutor já tinha voltado. Ela disse que eu ia perder a caminhada, se ele tinha ido esperar só voltaria muito tarde da noite ou de madrugada. Eu quis ir assim mesmo, podia ser que ele tinha esquecido alguma coisa e voltado para apanhar; e antes que ela fizesse qualquer reparo eu fui saindo depressa. Dessa vez não parei em parte nenhuma, e quando cheguei na farmácia fiz de conta que não sabia de nada. D. Rute estava sentada atrás do balcão dando mamar ao filho menor. Perguntei pelo Dr. Vergílio, ela disse que ele tinha ido do outro lado do morro ver um doente. Perguntei se depois de ver o doente será que ele não ia fazer espera, ela disse que não; ele tinha levado a espingarda mas era só por costume, e para o caso de encontrar alguma perdiz no caminho. Então eu disse que era para ele fazer o favor de ir lá em casa logo que chegasse porque mamãe estava muito doente. Ela quis saber qual era a doença, eu disse que era febre; ela perguntou se eu não queria levar umas cápsulas para ir tentando, eu disse que já tinha levado mas que não adiantou.
Eu não saí mais de casa naquele dia nem no outro. Aos poucos a casa foi enchendo de gente, mulheres mais, umas com filhos pequenos, outras com meninos já grandinhos, que ficavam me amolando para brincar. Mulheres que eu só conhecia de vista e achava antipáticas mexiam em nossa cozinha, faziam mingau para os filhos nas vasilhas de mamãe, ou café para as visitas.
Passou a noite inteira e o Dr. Vergílio não apareceu. D. Ana já estava desesperada, e no dia seguinte logo cedo ela mesma foi à farmácia indagar. D. Rute não sabia de nada, achava que de onde estava ele devia ter tido algum outro chamado. D. Ana deixou recado e passamos mais um dia inteiro na mesma aflição. Tarde da noite ele chegou, pôs todas as mulheres para fora do quarto, eu quis ficar ele não deixou. Mais tarde ele chamou D. Ana e tornaram a fechar a porta; e quando finalmente saíram do quarto eu vi que ela estava chorando, muito disfarçado mas estava. O doutor aceitou uma xícara de café que lhe ofereceram, e enquanto. Bebia soprando disse que era bom mandarem chamar meu pai, mas ninguém sabia onde ele estava. Já na porta o doutor disse que precisava de alguém para trazer uns remédios que ele ia preparar na farmácia, eu disse que eu ia, D. Ana não deixou e uma das mulheres se ofereceu. Eu queria ficar sozinho num canto mas havia gente por toda parte, só na rede da varanda tinha três meninas se balançando e rindo espremido, D. Ana teve de ralhar com elas por causa do barulho que faziam.
Eu estava sentado na canastra no quarto de minha mãe, o único lugar que achei para sentar, quando o padre chegou. Que susto eu levei ao vê-lo entrar com o livrinho de mas na mão e já murmurando orações, tive vontade de manda-lo embora mas faltou coragem, eu estava acostumado a ser muito obediente perto dele, e até de pedir a bênção, mas desta vez não pedi. Ele fez sinal para eu sair do quarto eu não liguei, tiveram que levar-me à força, fui chorando alto, sem nenhum acanhamento. Uma vizinha quis me levar para dormir na casa dela, eu gritei que não ia, eu sabia que minha mãe estava morrendo e não queria ficar longe dela. Levaram-me para a cozinha e me deram uma xícara com calmante, mas eu só parei de chorar quando vi que muita gente estava chorando também, principalmente as meninas.
Depois que o padre saiu D. Ana sentou comigo na rede, puxou minha cabeça para o ombro dela e ficou alisando o meu cabelo sem dizer nada, e foi bom porque eu não queria que falasse comigo. Quando acordei eu estava sozinho na rede, meu pai ajoelhado na minha frente, com as mãos nos meus joelhos. Abracei o pescoço dele, ele levantou abraçado comigo e ficamos os dois chorando. Depois ele me soltou no chão e disse que devíamos ir ao quarto despedir de mamãe e pedir perdão a ela. Ela estava com os cabelos soltos no travesseiro, e tão corada e bonita que pensei que não estava mais doente e que ia se levantar quando nos visse; mas chegamos bem perto da cama e parece que ela não nos viu porque continuou alisando a bainha do lençol e falando palavras que não entendi. Chamei-a duas vezes e ela nem me olhou, e quando segurei a mão dela para beijar ela disse:
- Não, não! Meu filho! Chamem meu filho! Coitado de meu filho, vai ficar sozinho.
Meu pai ajoelhou-se no chão e encostou a testa no cabelo de minha mãe, eu ajoelhei também e ficamos lá chorando. Alguém quis nos tirar de lá, D. Ana não deixou e mandou que as outras pessoas saíssem do quarto. Quando dei fé, meu pai tocava o meu braço e dizia:
- Sua mãe faleceu. Reze por ela.
No dia seguinte depois do enterro nós estávamos na varanda conversando, D. Ana tinha trazido uma bandeja de café com bolo, meu pai só tomou o café e fumava sem parar, suspirando a todo instante. Meu tio Lourenço estava lá, tinha vindo para o enterro, e não parava de falar em sua lavoura, no trabalho que estava tendo com os camaradas, na casa nova que começou a fazer mas teve de parar por falta de um bom carapina, o que arranjou bebia muito e não ligava ao serviço. Aí ele convidou meu pai para passar uns tempos no sítio e ajudar nas obras, seria bom para mim também; meu pai parece que não ouviu, e tio Lourenço teve que repetir o convite. Meu pai fez como quem acorda e disse que ia pensar; mas eu sabia que ele não ia aceitar, eles já tinham brigado uma vez e meu pai disse que, nunca mais trabalhava para tio Lourenço.
Enquanto tio Lourenço falava, e os outros ficavam olhando para o chão ou assoviando baixinho entre os dentes, eu ia pensando como era que ia ser a nossa vida sem mamãe. Eu sabia que ela estava morta, eu tinha visto levarem o caixão com ela dentro, mas não queria acreditar que nunca mais eu ia vê-la. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Repeti as palavras em pensamento, elas doíam dentro de mim mas eu queria sofrer, era só o que eu podia fazer por minha mãe agora. Tio Lourenço deve ter notado que eu estava chorando, porque levantou e começou a falar comigo, perguntou como eu ia na escola, se eu já sabia o que era que ia ser quando crescesse. Baixei a cabeça para não responder, sabia que se respondesse a voz não saía direito. Aí ele disse para meu pai que eu devia ficar o tempo todo pelos cantos pensando em coisas tristes, que era preciso sacudir o corpo; e para mostrar como era que meu pai devia fazer comigo ele me mandou soltar o cavalo dele que estava amarrado no pátio e toca-lo para o quintal.
O cavalo estava amarrado numa argola no pé da escada da cozinha. Levei-o pelo cabresto até o portão do quintal, abri portão, tirei o cabresto e toquei o cavalo com uma palmada na anca para ele saltar o degrauzinho. Fechei o portão com a tranca, enrolei o cabresto e voltei.
Foi aí que eu vi as roupas estendidas na grama, vestidos, blusas e saias de minha mãe que ela mesma deixara ali para corar. O luar batia nas roupas e as clareava com estranha nitidez. A blusa de bordado que minha mãe usava em dias de calor, a saia de rosas que D. Ana achava bonita. Foi como se eu a visse pela casa varrendo e limpando, ou na cozinha mexendo as panelas, sempre empurrando os cabelos para trás com o dedo grande para não toca-los com a mão engordurada. Não pude me demorar mais porque meu pai me chamava da janela e eu não quis contraria-lo logo nesse dia tão triste. Mas quando cheguei no alto da escada olhei mais uma vez a roupa estendida e fechei a porta bem devagar para demorar mais tempo olhando.
No dia seguinte depois do enterro nós estávamos na varanda conversando, D. Ana tinha trazido uma bandeja de café com bolo, meu pai só tomou o café e fumava sem parar, suspirando a todo instante. Meu tio Lourenço estava lá, tinha vindo para o enterro, e não parava de falar em sua lavoura, no trabalho que estava tendo com os camaradas, na casa nova que começou a fazer mas teve de parar por falta de um bom carapina, o que arranjou bebia muito e não ligava ao serviço. Aí ele convidou meu pai para passar uns tempos no sítio e ajudar nas obras, seria bom para mim também; meu pai parece que não ouviu, e tio Lourenço teve que repetir o convite. Meu pai fez como quem acorda e disse que ia pensar; mas eu sabia que ele não ia aceitar, eles já tinham brigado uma vez e meu pai disse que, nunca mais trabalhava para tio Lourenço.
Enquanto tio Lourenço falava, e os outros ficavam olhando para o chão ou assoviando baixinho entre os dentes, eu ia pensando como era que ia ser a nossa vida sem mamãe. Eu sabia que ela estava morta, eu tinha visto levarem o caixão com ela dentro, mas não queria acreditar que nunca mais eu ia vê-la. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Repeti as palavras em pensamento, elas doíam dentro de mim mas eu queria sofrer, era só o que eu podia fazer por minha mãe agora. Tio Lourenço deve ter notado que eu estava chorando, porque levantou e começou a falar comigo, perguntou como eu ia na escola, se eu já sabia o que era que ia ser quando crescesse. Baixei a cabeça para não responder, sabia que se respondesse a voz não saía direito. Aí ele disse para meu pai que eu devia ficar o tempo todo pelos cantos pensando em coisas tristes, que era preciso sacudir o corpo; e para mostrar como era que meu pai devia fazer comigo ele me mandou soltar o cavalo dele que estava amarrado no pátio e toca-lo para o quintal.
O cavalo estava amarrado numa argola no pé da escada da cozinha. Levei-o pelo cabresto até o portão do quintal, abri portão, tirei o cabresto e toquei o cavalo com uma palmada na anca para ele saltar o degrauzinho. Fechei o portão com a tranca, enrolei o cabresto e voltei.
Foi aí que eu vi as roupas estendidas na grama, vestidos, blusas e saias de minha mãe que ela mesma deixara ali para corar. O luar batia nas roupas e as clareava com estranha nitidez. A blusa de bordado que minha mãe usava em dias de calor, a saia de rosas que D. Ana achava bonita. Foi como se eu a visse pela casa varrendo e limpando, ou na cozinha mexendo as panelas, sempre empurrando os cabelos para trás com o dedo grande para não toca-los com a mão engordurada. Não pude me demorar mais porque meu pai me chamava da janela e eu não quis contraria-lo logo nesse dia tão triste. Mas quando cheguei no alto da escada olhei mais uma vez a roupa estendida e fechei a porta bem devagar para demorar mais tempo olhando.
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