quarta-feira, 23 de dezembro de 2015




Viagem aos seios de Duília - Anibal Machado

Nota do bloguista : as vezes, é melhor viver com as boas recordações do passado. O tempo altera as pessoas e os lugares que nos fizeram felizes. Rebuscar o passado pode as vezes reduzir a pó recordações felizes

Durante mais de trinta anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como um burro ensinado em frente à casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e  pontual, o velho funcionário. Um dia, porém, José Maria faltou. O motorneiro batia a  sirene. Os passageiros se impacientavam. Floripes correu aflita a  avisar o patrão. Achou-o de pijama, estirado na poltrona, querendo rir.
    - Seu José Maria, o senhor hoje perdeu a hora! Há muito tempo o motorneiro está a dar sinal.
   
-Diga lhe que não preciso mais.
A velha portuguesa não compreendeu.    - Vá, diga que não vou... Que de hoje em diante não irei mais.
    A criada chegou à janela, gritou o recado. E o bondezinho desceu sem o seu mais antigo passageiro. Floripes voltou ao patrão. Interroga-o com o olhar.
    - Não sabes que estou aposentado ?
    - Uê!...
   
-  Sim, Floripes. Aposentado.      - E que vai fazer agora, patrão?      - Sei lá, Floripes... Sei lá!      - Mas o almoço será sempre servido à mesma hora, pois não?      - Tanto faz. Pode ser às nove e meia, onze, meio dia ou  quando você quiser. Minha vida de hoje em diante vai ser um domingão sem fim...
      Debruçado à janela, José Maria olhava para a cidade embaixo  e achava a vida triste. Saíra na véspera o decreto de aposentadoria. Trinta e seis anos de Repartição. Interrompera da noite para o dia o hábito de esperar o  bondezinho, comprar o jornal da manhã, bebericar o café na  Avenida, e instalar-se à mesa do Ministério, sisudo e calado, até  as dezessete horas.
      Que fazer agora? Não mais informar processos, não mais preocupar-se com o nome e a cara do futuro Ministro. Pela primeira vez fartava a vista no cenário de águas e montanhas que a bruma fundia. Inúmeras vezes o fizera, mas sem perceber o Pão de Açúcar e a baía, as ilhas e os navios, o Corcovado e as praias do Atlântico,  sempre se interpondo entre seus olhos e a paisagem uma reminiscência molesta, lembrança de antigo aborrecimento ou de contrariedades na Repartição. Se algum navio transpunha a barra e vinha crescendo para o porto no ritmo calmo da marcha, seu coração amargava-se contra o sobrinho Beto que embarcara como radiotelegrafista de um navio do Lóide, e nunca mais dera notícias; se o Cristo do Corcovado se erguia de um pedestal de nuvens, vinha -lhe à memória aquele triste fim de tarde, lá em cima, em que pela primeira vez na vida se conduziu de maneira vergonhosa, embriagado que estava, a dizer impropérios contra a República e contra um ato injusto do "Sr. Ministro", até ser detido por um guarda. Aposentado agora, continuava a ligar os diferentes aspectos da natureza a acontecimentos que a deformavam.
      Com os trinta e seis anos perdidos na Repartição, teria perdido também o dom de viver? Muito próximo se achava ainda desse passado para não lhe receber a influência. A manifestação  de despedida fora ontem mesmo. Cobriram-lhe a mesa de flores; saudou-o em nome dos chefes de serviço o diretor mais antigo, seu ex-adversário; falou depois um dos subordinados, estudante de Medicina; por último uma funcionária, a Adélia, que usava decote largo, se referiu a “competência e exemplar austeridade do querido chefe de quem todos se lembrarão com saudade". Uma menina, filha do arquivista, fez-lhe entrega de uma bengala de castão de ouro, com a data e o nome. E o Ministro mandou um telegrama.Foi só, estava encerrada a etapa principal e maior de sua vida.
      Os decênios de trabalho monótono, de "austeridade exemplar" como dizia Adélia, forjaram-lhe uma máscara fria. Atrás dela se escondeu e de si mesmo se perdera. Como fazer desaparecer-lhe os vestígios? Como se reencontrar? Adélia não podia imaginar o que para ele representava a "exemplar austeridade". Adélia jamais saberá o que ocorria na alma do antigo chefe quando os olhos deste passavam como um relâmpago pelo colo branco de sua subordinada; talvez nem ela pressentisse. Austero coisa nenhuma: desajeitado apenas, tímido: gostaria de poder fazer o que censurava nos outros.
      Floripes admirava a bengala procurando decifrar os dizeres do castão de ouro.
      - É o que me resta, Floripes, dos trinta e seis anos. Isso e um telegrama do Ministro!
     - O que me está a dizer, patrão?
     - Nada, Floripes.
     "Ora veja! Estou livre agora, livre!... Mas livre para quê?". Ao clarear do dia seguinte escancarou a janela para a baía. Procurava sentir a manhã de sol como a deviam estar sentindo àquela hora os moradores da bela colina. Mas nada lhe diziam os barcos a vela flutuando longe, nem os castelos de nuvens que se armavam no céu.Ia experimentar a cidade, andar sem destino. E sem chapéu. A ausência do chapéu seria a primeira mudança exterior em seus hábitos, um começo de libertação. Até então, a moda lhe parecera ridícula, além de fonte de resfriados. E se envergasse uma camisa esporte? Poderiam rir-se dele: a pele do pescoço perdera consistência; e a marca circular do colarinho duro lá estava, firme como uma tatuagem.
     Na rua, um colega veio dizer-lhe que os jornais deram a notícia; alguns até com elogios ao velho servidor. O amigo abraçou-o. E logo recuou com certo espanto:
     - O seu chapéu, Zé Maria?     -Ah, não uso mais!...
     - Felizardo! Vai começar a gozar a vida, hein? Já até parece outro homem, disse, interpretando a ausência do chapéu como o primeiro passo para um programa de rejuvenescimento.
     O aposentado livrou-se do importuno. "Livre! Estou livre!"
    Namorou vitrinas, tomou café, repetiu café, tomou chope, foi,  voltou, viu, tomou café outra vez, cumprimentou... O tempo não  passava. Mais lento ainda do que na Repartição. A título de despedir - se de alguns companheiros e de apanhar  uma caneta tinteiro,  lembrou -se de chegar até lá. Na verdade, sentia-se impelido por um desejo ambíguo, como o general  reformado que vai à paisana em visita a seu antigo regimento. Era tarde, porém; o rush se avolumara. Achou melhor voltar para  casa, postar-se na fila do bonde. "Livre! Estou livre!"
     Durante a subida, a brisa fresca fê-lo sentir a falta do chapéu. Via –se como que despido. Floripes serviu-lhe o jantar, deixou tudo arrumado, e retirou-se para dormir no barraco da filha. Mais do que nunca, sentiu José Maria naquela noite a solidão da casa.
     Não tinha amigos, não tinha mulher nem amante. E já lera todos os jornais. Havia o telefone, é verdade. Mas ninguém chamava. Lembrava-se que certa vez, há uns quinze anos, aquela fria coisa,  pendurada e morta, se aquecera à voz de uma mulher desconhecida. A máquina que apenas servia para recados ao armazém e informações do Ministério transformara-se então em instrumento de música: adquirira alma, cantava quase. De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a ser na parede do corredor a aranha de metal, sempre calada. O sussurro da vida, o sangue de suas paixões passavam longe do  telefone de Zé Maria...
     Como vencer a noite que mal começava?
     Fechou o rádio com desespero, virou dois tragos de vinho do Porto, deitou-se. A espaços ouvia o barulho do bondezinho rilhando nas curvas da colina, a explosão de um e outro foguete que subiam da vertente de Aguas Férreas, seguida de latidos de cães e gritos indistintos. Ingeriu outra dose de vinho. E adormeceu.
     O telefone toca. Quem será? Quem se lembraria dele? Algum convite? Trote?
     - Alô, meu bem!
    
- Alô! aqui fala José Maria.     - É engano, proferiu secamente a interlocutora.
     Era engano! Antes não o fosse. A quem estaria destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que dissesse desaforos, que o xingasse. A boca feminina já devia estar dizendo frases de amor na linha procurada. Era um triste aparelho telefônico! Atirou-se de bruços na cama. E sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de há quinze anos...  Foi andando para o passado... Abriu-se -lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas.E sempre para trás -tinha então dezesseis anos - ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem  tímido.
     Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio de sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
     Á medida que os meses passavam, foi tomando horror à expressão "funcionário público aposentado", que lhe cheirava a  atestado de óbito.     Jurou nunca mais freqüentar a "Mão do Salvador", instituição de caridade, cuja sede, com seus móveis severos e gente sem graça, lembrava o ambiente atroz da Repartição. Chamava Floripes a todo momento, queria saber minúcias do passado dela.
     Ia dar início a profundas modificações em sua pessoa. Começaria pelos trajes: roupa clara, moderna, não mais aqueles ternos escuros cobrindo a eventual austeridade. Seu físico de homem empinado e enxuto não parecia de todo desagradável.  Entraria de sócio para algum clube; e se encontrasse um professor discreto, talvez aprendesse a dançar. Essas providências seriam a sua toilette exterior para a nova fase da vida.
     Semanas depois, aliviado do colarinho duro, era visto pelas ruas em trajes mais leves, sorrindo forçado para os conhecidos. Tornou-se sócio de um clube da Lagoa. Sozinho porém nunca punha os pés lá, até que um dia se fez acompanhar pelo Lulu, bom atleta e péssimo funcionário, que o apresentara como "velho servidor do Estado" às principais beldades do bairro. Como  dialogar com elas? Não conhecia futebol nem equitação, não sabia jogar baralho, não guardava nomes de artistas de cinema, ignorava os escândalos da sociedade. Tentou manter conversa, não conseguiu. Parecia lhe que zombavam dele. Se algumas moças lhe dirigiam a palavra era como se lhe atirassem esmola. Acabou a noite só e triste, agarrado ao seu copo de uísque. Quase nunca provava essa bebida; achava-a até ruim. Como fazia parte do rito social, não custava virar o copo. Deixou o Lulu com as moças, e saiu fazendo uma careta. "Velho servidor do Estado...".
     O farol dos automóveis apagava nas águas da Lagoa o reflexo das últimasestrelas. Um casal abraçava-se debaixo de uma amendoeira. Sentiu-se mais só. A vida era para os outros. Antes tivesse ainda algum processo a informar; estaria ocupado em alguma cousa. Não! Um começo de soluço contraiu-lhe a garganta. Chamou um taxi.
     No dia seguinte postou-se, como outros de sua idade, numa das esquinas da Rua Gonçalves Dias, local preferido pelos militares da reserva e aposentados de luxo, gente saudosa do passado. Notou que eles se compraziam em adejar perto dos doces da confeitaria, e ver passar as damas elegantes de outrora. Ali se perfilava, de terno branco, um velho Almirante de suas relações:
     -Olhe, faça como eu: nunca se convença de que é aposentado.
     Adquira algum vício, se já não o tem. Evite os velhos. Um pouco de exercício pela manhã. Hormônios às refeições, não é mau. Quanto a conviver, só com gente moça.
     Ele aprendera na véspera o que era conviver com gente  moça... Para rematar, e como índice de otimismo, contou-lhe o Almirante uma anedota pornográfica. O funcionário riu com esforço, e despediu-se enojado. Entrou numa livraria. Buscaria a solução na leitura dos romances. Pediu um, à escolha do caixeiro. Tentou ler. Impossível passar das primeiras páginas. Não compreendia como tanta gente perde horas lendo mentiras. Ao atravessar, dias depois, o Viaduto, deixou o livro cair lá embaixo, sentiu-se livre daquilo.
     O melhor mesmo era ficar debruçado à janela. E todas as manhãs, enquanto a criada abria a meio as venezianas para deixar sair a poeira da arrumação, José Maria as escancarava para fazer entrar a paisagem. Dali devassava recantos desconhecidos. Ilhas que jamais suspeitara. Acompanhava a evolução das nuvens, começava a distinguir as mutações da luz no céu e sobre as águas. Notava que tinha progredido alguma coisa na percepção dos fenômenos naturais. Começava a sentir realmente a paisagem. E se considerava quase livre da uréia burocrática.
     Esse noivado tardio com a natureza fê-lo voltar às impressões da adolescência.
     Duília!
     Toda vez que pensava nela, o longo e inexpressivo interregno do Ministério, que chegava a confundir -se com a duração definitiva de sua própria vida, apagava-se-lhe de repente da memória. O tempo contraía-se.
     Duília!
     Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de idade, a acompanhar a procissão que ela seguia cantando. Foi nessa festa da igreja, num fim de tarde, que tivera a grande revelação.
     Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça.
    Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas se comprazia na evocação. Não ignorava o que havia de alucinatório nisso. Chegava a envergonhar-se. Como evitá-lo? E por que, se isso lhe fazia bem?
      Era o aforamento súbito da namorada, seus seios reluzindo na memória como duas gemas no fundo d'água. Só agora se dava conta de que, sem querer, transferira para Adélia a imagem remota. Mas Adélia não podia perceber que era apenas a projeção da outra. Mesmo porque, temendo o ridículo, José Maria jamais se deixara trair.
     Disponível, sem jeito de viver no presente, compreendeu que despertara com muitos anos de atraso nos dias de hoje. Não encontraria mais os caminhos do futuro, nem havia mais futuro nenhum. Chegara ao fim da pista. De Beto, não havia mais notícias. Da velha cidade que restava? Onde o Rio de outrora? As casas rentes ao solo, os pregões, o peixeiro à porta? A cada arranha-céu que subia - eles sobem a todo momento - a cidade calma de José Maria ia-se desmanchando. Sentiu que sobrava. Impossível reatar relações com uma cidade irreconhecível.
     Pediu que o cancelassem do clube da Lagoa; desistiu da aula de dança. Só lhe fazia bem desentranhar o passado. Dias e noites o evocava com a cumplicidade da paisagem. E no fundo da contemplação, insistiam os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando.  Odiava recordar-se da Repartição. Nem sabia explicar como, nas tardes de movimento, mais de uma vez suas pernas o largaram nas imediações do Ministério.      Começava a sentir-se livre. Para outra direção o chamava o que havia de mais excitante em sua vida. Ao apelo póstumo, nem tudo de seu passado parecia perdido. Sabia agora o que ia fazer. Trauteando uma canção, tomou o bondezinho. Entrou em casa com o coração palpitando. Reviu-se mais jovem ao espelho.      Quando Floripes chegou de manhã cedo, encontrou-o de pé. Lamentava não ter tempo de encomendar um terno novo para apresentar-se melhor ao seu passado...
     - Floripes, tu tomas conta do apartamento. Eu vou viajar. Meu procurador te dará dinheiro para as despesas. Se Beto aparecer, dirás que eu parti... Dirás também que... Não, não precisas dizer mais nada. Se quiseres, traze para cá tua filha e o netinho.
    
Floripes parou espantada.
    
- Será que o patrão vai-se embora?         - Vou, Floripes.        - Para não voltar mais?
   
- Não sei, Floripes.
    
- E se chegar alguma carta, patrão, para onde devo mandar?
    
- Não haverá cartas para mim. Ninguém me escreve...         - E se alguém telefonar?        - Oh, Floripes, por favor...       O que transpirava de solidão e amargura nessas palavras, compreendeu-o a velha Floripes, que se absteve de novas perguntas.
      Descendo à cidade, José Maria comprou malas, preveniu passagens.
      Outro homem agora, alegre quase. Não precisaria mais fazer esforço para ser o que não era. Difícil coisa querer forçar a alma e o corpo a uma vida a que não se adaptam. Agora, sim, ia ser feliz. E se alvoroçava como o imigrante que se repatria.
      Fazia uma tarde bonita. Pela primeira vez Zé Maria achara agradável estar na rua. Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas. Parecia que a cidade, à última hora, caprichava em exibir-lhe alguns de seus encantos. Assim procede a mulher indiferente, ao ver partir o homem a quem fez sofrer.
      Comprou um mapa do país. Só com apertá-lo ao peito sentiu-se livre e já fora do Rio. Voltou para casa. Abriu-o em cima da cama, seguindo com a ponta do lápis os meandros do coração montanhoso do Brasil.
      - Aqui! marcou.
      Era perto de uma cordilheira no centro-sul. A cidadezinha enchia-lhe o coração, embora insignificante demais para constar na carta.
      Estranhou o apito fanhoso da Diesel à hora da partida. Voz sem autoridade, mais mugido que apito. Tão diferente do grito lírico da locomotiva que há mais de quarenta anos o trouxera do interior. Entristeceu. Muita coisa haveria que encontrar pela frente, modificada pelo progresso: a locomotiva por exemplo; o trem de luxo em que viajava.
      Seu desejo era refazer de volta, pelos meios de antigamente, o mesmo roteiro de outrora. Impossível. Estradas novas vieram substituir-se aos caminhos que levam ao passado. Com o coração inundado de reminiscências, preferia evitar Belo Horizonte. Receava que a visão da cidade nova viesse aumentar-lhe a sensação do envelhecimento pessoal.
      Pela madrugada, o trem parou horas entre duas estações. O viajante despertou com o silêncio. Só ouvia o sussurro do ventilador. Toda a composição de um cargueiro tinha tombado mais adiante, entornando manganês pelo vale. Preparava-se a baldeação.
      José Maria aproveitou para descer, e sentir o cheiro de Minas. O sol vinha esgarçando devagar o véu de bruma que cobria as serras tranqüilas.
      Anoitecia já em Belo Horizonte, quando chegou com atraso. Disseram-lhe que era preciso tomar, no dia seguinte, a "jardineira" para Curvelo.
      A nova Capital, mesquinha cidade poeirenta há quarenta anos, era agora um grande centro onde ninguém se lembraria dele. Para que então sair à rua, ver arranha-céus, caminhar entre as novas gerações de desconhecidos?
      Preferível fechar-se no quarto do hotel até que chegasse a hora da "jardineira Agradável. na manhã seguinte o percurso numa rodovia que não era de seu tempo. Ônibus e caminhões escureciam as estradas de poeira. Ao pé de uma serra calcárea, que conhecera intacta, as chaminés de uma fábrica de cimento emitiam rolos de fumaça escura. Mais adiante, os fornos de uma siderúrgica.
      Cansado, adormeceu. Despertou com um coro longe, de vozes, coro que subitamente cresceu e passou, lançando-lhe no coração um jacto de poesia. Era uma "jardineira" repleta de mocinhas, colegiais de uniforme azul e branco que desciam do sertão para a reabertura do ano letivo na capital.
      No banco ao lado, um passageiro queimado de sol parecia esperar que José Maria acordasse para encetar conversa.
      - Pois é. Estamos em fins de fevereiro e nada de chuva! Em toda a parte agora tem Ceará. Se aquilo lá desaba - apontou para uma nuvem escura - é porque Deus qué me ajudá: tá mesmo em cima de minha roça.
     
Mas não desaba, não!...
     
Olhou fitamente para José Maria. Teria achado nele um tipo estranho à região.
   
- Vosmecê também vai comprá cristá, não é?         - Não, respondeu José Maria.
   
- Tá indo pro Rio S. Francisco?        - Não. Estou indo para um lugar chamado Pouso Triste.
     
- Pra cá de Monjolo? Ah! conheço por demais... Já botei roça lá perto.       - Ouviu por acaso falar em Duília?       - Duília... Duília... Espera aí... Duília... Ah! o senhor queria dizer Dona Dudu, não é? Conheço muito.       José Maria sentiu um estremecimento. Arrependera-se da pergunta. Calou-se. A deformação de um nome tão doce como Duília horrorizava-o. Devia ser outra pessoa. Era melhor não prosseguir na conversa. O homem queimado compreendeu, e calou-se.       Ao entardecer, apitava uma fábrica de tecidos e uma vitrola esganiçava a todo pano, quando a "jardineira" encostou à porta do hotel principal de uma cidade. Era Curvelo, boca do sertão mineiro.       José Maria já se sentia dentro da área do passado.
     
Daí em diante a viagem se faria nas costas de um burro. Tudo como quando tinha dezesseis anos. Tratou um "camarada" que o gerente do hotel lhe indicara. Na manhã seguinte, cedinho, partiu rumo de leste.
     
- Se não cai temporá, nóis chega dereitinho, patrão - disse-lhe o camarada, enquanto Curvelo desaparecia atrás, numa nuvem de poeira.
     
O velho funcionário, ao mesmo tempo que sentia a delícia de montar um animal e respirar o ar puro, receava lhe voltassem aquelas pontadas que o atormentavam na Repartição.
      Soero, o camarada, desconfiava estar seguindo um homem importante; mas não ousava perguntar.       - O Rio das Velhas vem vindo por aí, anunciou depois das primeiras horas de caminhada.       Pouco depois, o rio fiel aparecia ao viajante. - Oh! velho Rio das Velhas! exclamou José Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me esperando!         Achou-o tranqüilo, mas um pouco emagrecido.
     
Soero foi chamar o balseiro, enquanto José Maria, agachado na areia, deixava que o velho rio lhe ficasse correndo longo tempo entre os dedos.       Embarcaram as alimárias, e foram deslizando de balsa para a margem oposta.
     
De pé, o funcionário parecia estar sonhando. A bengala desamarrou-se da mala e caiu na correnteza. Soero quis mergulhar. - Deixa, deixa! Gritou José Maria.    
     
Preferia não perdê-la. Era afinal uma lembrança dos ex-colegas. Mas já que foi para o fundo do rio, que lá ficasse. Almoçaram e retomaram a montaria.  
      
- Agora vem Dumbá. Oito léguas, disse o camarada.
   
- E o Paraúna? reclamou o viajante, recordando-se.
     
- Ainda temos que atravessá.
      Tudo era deslumbramento para o viajante. À medida que ouvia esses nomes quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado.
      As léguas se estiravam, a noite ia longe. Ou porque a escuridão fosse maior com a lua minguante, ou porque a correnteza engrossasse de repente, o Paraúna surgiu mudado e agressivo. Nem parecia o rio que os viajantes atravessam a vau. Soero explicou que devia ter chovido muito nas cabeceiras, daí aquele despropósito de águas; mas baixariam depressa, esses rios magrinhos enfezam por qualquer pancada de chuva, depois se aquietam que nem córrego manso.
      - Se vosmecê não quisé chegá até o arraiá, a gente espaia os burro e arrancha por aqui mesmo.
     
Apearam-se. Soero desceu os arreios e a cangalha, amarrou o cincerro ao pescoço do cavalo-madrinha, e deixou os animais pastando perto.
     
Deitado no couro, José Maria escutava o sussurro das águas. Pouco se lhe dava o corpo moído, a dor nos rins. Nunca se imaginara deitado ao relento, a cabeça quase encostada a um de "seus rios". Ficou a escutá-lo. Era como o primeiro rumor de um passado que vinha se aproximando.
     
Cobrindo-se com a manta, adormeceu. Soero fumava e se persignava, a olhar desconfiado para a outra margem onde um vulto branco parecendo fantasma esperava pelo abaixamento das águas.
      De madrugada o Paraúna voltou ao natural. Soero saudou o vulto de branco com quem cruzou no meio do rio. O homem respondeu em latim.
     
José Maria se espantou ao ouvir frases latinas em cima daquelas águas, naquele ermo... Perguntou o que era aquilo. Soero disse que não sabia, sempre o encontrava bêbado pelos caminhos.
      - Dizem que sabe muito e ficou maluco.       As alimárias seguiam agora em trote mais animado para a Rancharia do Dumbá, onde, a conselho do "camarada", devia o viajante descansar o resto da tarde e passar a noite, antes de encetarem a travessia mais difícil da Serra do Riacho do Vento, na Cordilheira do Espinhaço.       A Rancharia é pouso forçado para quem atravessou ou vai atravessar a Cordilheira. Reconheceu-a de longe o viajante, pelo pé de tamarindo. O mesmo de sempre.      O pernoite ali, enquanto os animais recebiam ração mais forte de sal e capim, ia permitir ao metódico funcionário a recuperação das forças exaundas.
      Viagem violenta demais para um sedentário.
      Ficara-lhe nos ouvidos o Paraúna com o barulho de suas águas. Não era o desconforto da cama nem a pobreza do aposento que lhe tiravam o sono; nem o latido dos cães, nem o relinchar dos burros; nem uma sanfona triste que parecia exprimir toda a solidão lá fora: era o fato de se achar mais perto, dentro quase daquilo que não precisava mais evocar para sentir.
      Mais algumas léguas e tocaria o núcleo de seu sonho.
      O que mais o espantara no gesto de Duília - recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza. Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e, com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse: - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete: - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...
      Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do acontecimento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.
      Custava acreditar que estivesse agora se aproximando dessa fonte de claridade. Sentiu bater mais depressa o coração. E desejou que o dia raiasse logo.
      Puseram-se de novo a caminho. Horas depois, galgavam a serra. Salvo nos capões onde a quaresma e o pequizeiro se destacavam, a vegetação ia-se fazendo mais pobre: canela-de-ema, coqueiro-anão, cacto - enquanto o panorama se ampliava, e a vista abarcava os longes. Por um segundo essa paisagem cruzou no pensamento de José Maria com o panorama de Santa Teresa. Um segundo apenas, pois logo apareceu uma boiada que lhe cobriu o rosto num turbilhão de poeira.
      Faltava o trecho maior para se chegar ao Arraial de Camilinho. Os burros suavam na subida penosa. - Daqui a pouco vem o Chapadão, avisou Soero.
      A essa palavra, José Maria animou-se. Tal como na antevéspera, ao ouvir o nome Rio das Velhas.       Pela altitude, pelas suas léguas de pedra e vento, pelo seu silêncio, esse chapadão do Riacho do Vento lhe surgira como entidade autônoma e orgulhosa, que dava passagem ao homem mas lhe negava abrigo para morar e pastagem para o gado.
      Era o trecho mais imponente e difícil no acesso à região de Duília. Por ali transitara há mais de quatro decênios, fazia uma noite escura, só pelos relâmpagos podia suspeitar o panorama irreal que se desdobrava de dia. Ia então fazer os preparatórios em Ouro Preto, e caminhava cheio de medo para o Futuro; seu pai e um caixeiro-viajante o acompanharam até a primeira estação da Estrada de Ferro. Láo puseram no carro. Foi quando começou a ficar só no mundo, e pela primeira vez chorou o choro da tristeza.
      O velho funcionário não dava uma palavra. Contemplava. À esquerda, as extensões lisas das "gerais" do S. Francisco; à direita, as colinas arranhadas pelas minerações da bacia do alto Jequitinhonha. Estranhava o ar parado numa serra que trazia o nome de Riacho do Vento.
      Entre os trilhos quase apagados que confundiam o viandante, quem dava a direção era o cincerro do cavalo-madrinha. 
      Já o sol deixara de reluzir nos aforamentos de pedra e mica, e ainda havia léguas pela frente. Como fica longe o lugar do passado!       Abatido, o olhar vago, o viajante parecia estar seguindo os caminhos do próprio pensamento. O cansaço aumentava. Onde o fim do Chapadão?
      Imenso Brasil. Era então por esses ermos sem fim que corriam ofícios e papéis da administração pública?! Quantos, ele mesmo, José Maria, fizera despachar sem a mais vaga idéia das distâncias que iam cobrir! Mergulhava em reflexões. Infinita a distância entre a natureza e o papelório! De repente, dirigindo-se ao camarada:
      - Você conhece Duília?
      Soero não ouvira bem, ou não compreendera a pergunta que vinha perfurar um silêncio de horas. Esperou que o patrão a repetisse, mas o grito de um pássaro desmanchou o começo do diálogo. E tudo ficou por isso mesmo.
      Depois de seis léguas de marcha batida, Soero sentiu que o homem misterioso não agüentava mais.       - Acho que de uma vezada só até Camilinho, é um bocado de chão pra vosmecê.
     
Propôs uma pausa. Pouco adiante, descobriu uma grota para o pernoite.
       Num córrego de águas frescas, os animais desarreados mataram a sede. Os dois homens jantaram o que traziam nos bornais. Os couros Foram novamente estendidos. José Maria, amedrontado, perguntou a Soero se havia onças por ali. O camarada tranqüilizou-o. Enquanto para este era aquela uma noite de rotina, para o velho funcionário repetia-se, a céu descoberto, a aventura excitante das margens do Paraúna. Doíam-lhe tanto os membros e era tal o cansaço, que já não podia contemplar por muito tempo as estrelas que cintilavam pertinho. Mergulhou no sono pesado.
      Às onze horas do dia seguinte, entrava no Arraial do Camilinho. Aí se dispunha a refazer as energias para a etapa final.
      Tudo o que vinha percorrendo já era país de Duília. Agora sim, não precisava ter pressa. A bem dizer, do alto do Riacho do Vento para cá, a moça parecia ter-lhe vindo ao encontro. Era como se ela viajasse na garupa do animal.
     O resto da tarde e a noite passou-os José Maria na pensão da Juvência. A velha nem se lembrava de que ele ali estivera, adolescente, ao deixar Pouso Triste: também ela o supunha algum emissário norte-americano atrás de minério para a guerra. José Maria preferiu passar incógnito. Absteve-se de pedir informações.
    Mais seis horas e estaria naquela cidadezinha, face a face com a mulher sonhada. Não imaginava agora fosse tão fácil aproximar-se do que tão longe lhe parecera no tempo ou no espaço.
    Detinha o burro a cada momento; olhava, hesitava. Nem mesmo se inquietara com a nuvem de chuva que vinha avançando do nordeste. Soero estranhou a indiferença do patrão. O aguaceiro caiu, molhou a ambos.
     
José Maria tinha medo de chegar. Passou a chuva, veio o sol, borboletas voejavam sobre a lama recente. E Pouso Triste se aproximando... perfil de colinas conhecidas... o riacho cristalino com um último faiscador... o sítio do Janjão. Agora, o cemitério onde dormem os seus pais... "Estarei sonhando?"
      - Pouso Triste!
    
Olhou confrangido. Era então aquilo!... E a cidade? Trazia na memória a visão de uma cidade: surgiu-lhe um arraial!... Pobre e inaceitável burgo, todo triste e molhado de chuva!...
   
Foi descendo devagar. Passou em frente à igreja, entrou na praça vazia. Fantasmas desdentados conversavam à porta da venda. A brisa agitava as folhas da única árvore gotejante. Tinha sido ali...
   
   A pensão. Parou e entrou. Pediu um banho, mudou de roupa. Sórdido chuveiro. Foi para a janela. Povoado lúgubre! Como compará-lo à cidade luminosa que erguera em pensamento para santuário de Duília? Teve raiva de si mesmo. Nenhum parente, ninguém para reconhecê-lo. Melhor assim.
    Fixou a árvore. Era a mesma... Pelo menos aquilo sobrevivera. Saiu para vê-la de perto; deixou-se ficar debaixo de seus galhos. Reviveu a cena inesquecível...
    Mas não encontrou o mesmo sabor. A árvore parecia indiferente.
    Não se conformava com a falta de claridade. Nem a da luz exterior, nem a outra, subjetiva, que iluminava a cidade ideal onde se dera a aparição da moça.
    Pertinho, bem perto devia estar ela. Tão perto que assustava. Dentro de poucos instantes - o seu rosto, a sua voz, os seios!... Mas aquele marasmo, o torpor das coisas - o envelhecimento da árvore e da paisagem, tudo prenunciava a impossibilidade de Duília.
      Timidamente, pediu notícias à dona da pensão. A velha fez um esforço de memória. E tal como o passageiro da "jardineira", respondeu:
   - Duília?...
     -  Dona Dudu, não é? Uma viúva? Ah! sumiu daqui já faz tempo. Ouvi dizer que está de professora no Monjolo. Ainda que mal lhe pergunte, vosmecê é parente dela?
    - Não, disse José Maria. E para desarmar a curiosidade da velha:
      - Trago-lhe umas encomendas.
     
Deixou passar alguns instantes. Perguntou por perguntar:       - Sabe dizer se tem filhos?       - Filhos? Um horror de netos!... Que Deus me perdoe, o marido era uma peste.
     
Não quis saber do resto.
     
Despediu-se de Soero, o bom camarada; pagou-lhe bem o serviço.  Seguiria sozinho até Monjolo. Conhecia a estrada. Pouco mais de três léguas.  Léguas que se tornaram difíceis, pois a lama era muita, e o burro mal ferrado patinhava.  
   
A viagem se arrastava sem o encantamento da que terminara na véspera. Não desejava que a decepção de Pouso Triste influísse na sua chegada a Duília. Tudo agora parecia pior, o caminho mais estreito, mais aflitiva a ausência de claridade. Sentiu o deserto no coração. Sua alma deixou de viajar. Fazia-lhe falta a presença muda de Soero. Fez parar o animal.       - Será que Duília...
     
Novamente lhe viera o terrível pressentimento. Como aceitar outra imagem dela senão a que guardara consigo: a namorada eterna, fixa? A imaginação delirante não cedia à evidência da razão.
    A poucas horas da amada, José Maria tremia de medo. O burro começou a andar por conta própria. Os últimos quilômetros o viajante os fez como um autômato.      Monjolo se anunciava por um som de sanfona que parecia o gemido constante do fundo do Brasil. Foi surgindo pela frente um arraial ainda menor e mais pobre que Pouso Triste. Os urubus não freqüentavam o céu, quase se deixavam pisar pelas patas da alimária. José Maria engoliu um soluço.      Tomados de espanto, os poucos moradores espiavam o estrangeiro. O letreiro "Escola Rural" aparecia em tinta esmaecida. Uma casinha modesta, com chiqueiro no porão. A sala de espera limpa, com gravuras de santos enfeitados de flores de papel, e que tanto servia à Escola como à residência, nos fundos. As carteiras escolares estavam quebradas. O viajante apeou-se, bateu à porta. Uma senhora, muito pálida, veio atendê-lo em chinelos.      - Eu queria falar com Duília... Dona Duília... corrigiu.      A senhora fê-lo entrar e sentar-se. Pediu licença, deixou a sala. Momentos depois, voltou mais arrumada. Seus cabelos eram grisalhos, a voz meio rouca, o sorriso agradável, apesar dos dentes cariados. Ainda não tinha sessenta anos, e aparentava mais.        - A senhora também é professora?
     
Duas crianças gritaram da porta: - Dona Dudu! Dona Dudu!      Ela respondeu: - Vão brincar lá fora. E virando-se para o estranho:       - Não se pode ficar sossegada um minuto. Esses meninos acabam com a gente.       José Maria sentiu como que uma pancada na nuca. Baixou as pálpebras, confuso. A professora ficou esperando que ele se identificasse. Notou-lhe a fisionomia alterada, um começo de vertigem.
     
- Está-se sentindo mal?
     
Saiu e voltou com um copo d'água.
     
- Não foi nada. O cansaço da viagem. Já passou.
     
Olhava para ela estarrecido. A mulher, aflita por que o desconhecido desse o nome.        - Veio a passeio, não é?
   
- Não. Não vim propriamente a passeio...
     
- Um lugar tão distante... Ultimamente as jazidas têm atraído muitos estrangeiros para cá.       - Eu não sou estrangeiro - respondeu o visitante. Sou brasileiro... E daqui... de bem perto daqui. Sou também de Pouso Triste...       Uma expressão de surpresa e simpatia clareou o rosto da professora. José Maria encarou-a com dolorosa intensidade. Subitamente empalideceu.  Chegara o momento culminante. Fechou os olhos como se não quisesse ver o efeito das próprias palavras. A professora pressentiu que algo de grave trouxera até ali o sombrio visitante. Atordoada, esperou. José Maria principiou a falar:
          - Lembra-se de um rapazinho, há muitos anos, que a viu numa procissão?  A mulher abriu os olhos.
        - Nós tínhamos parado debaixo de uma árvore... lembra-se? Ela ainda está lá... não morreu. Eu olhava como um louco para você, Duília...
     
Ao ouvir pronunciar seu nome com intimidade cúmplice, a professora teve um arrepio. O homem não sabia como continuar. Hesitou um momento.
       - Depois... depois eu larguei Pouso Triste. Nunca mais me esqueci. E só agora...
 
     Parou no meio da frase. Tremia-lhe o queixo.
   
A mulher, assustada, reconhecera nele o rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passou-lhe pelo rosto um lampejo de mocidade. Volvendo a cabeça para o chão, enrubesceu com quarenta anos de atraso...       Quedaram-se por alguns momentos. O vazio do mundo pesava sobre o sossego do povoado. Grunhiam os porcos embaixo. Um cheiro de lavagem e de goiaba madura entrava pela janela, e parecia a exalação do passado.       José Maria suspirou fundo. Aquela mulher, flor de poesia, era agora aquilo! Fantasma da outra, ruína de Duília... Dona Duília... Dudu!  A mulher interrompeu a longa pausa:
    
- Tudo aqui envelheceu tanto ! disse, erguendo a cabeça. Que veio fazer nesse fim de mundo, seu José Maria?
     
Ouvindo-a por sua vez pronunciar-lhe o nome, sentiu-se José Maria menos distante dela. Parecia que davam juntos o mesmo salto no tempo. 
       - Vim à procura de meu passado, respondeu.
    
- Viajar tão longe para se encontrar com uma sombra! E volvendo-se para si mesma: - Veja a que fiquei reduzida.
     
José Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorável acontecimento. Aquilo que ali estava poderia ser a mãe de Duília, da Duília que ele trazia na memória, jamais a própria.       
    - Não devia ter feito isso, advertiu a mulher, como que despertando da profunda cisma.
     
- O quê?      
      - Voltar ao lugar das primeiras ilusões.
     
"Sim, é verdade", pensou o homem, não devia ter vindo. O melhor de seu passado não estava ali, estava dentro dele. A distância alimenta o sonho. Enganara-se. Tal como Fernão Dias com as esmeraldas..." Ergueu-se, chegou à janela. A tarde caía depressa. Os casebres se fundiam na cinza suja. Uma preta entrou e acendeu o lampião de querosene.  Não tinha mais tempo para criar novas ilusões. Nada mais a esperar.  Ficaria por ali mesmo... Floripes fizesse o que entendesse da casinha de Santa Teresa. Felizes os que ainda desejam alguma coisa, os que lutam e morrem por alguma coisa. Felizes aquelas meninas que desceram cantando para Belo Horizonte. A ele, José Maria, só lhe restava encalhar naquele buraco, dissolver-se por ali mesmo, agarrado aos últimos destroços do passado.
   
Sentiu falta de ar. Bem a seu lado se achava alguém que se dizia Duília, espectro da outra. Espectro também, Pouso Triste; e aquele mesquinho arraial lá fora... e tudo o mais que a noite vinha cobrindo!  Súbita raiva transfigurou-lhe as feições. Voltou a ser o estranho, o que invadira a mansão de miséria e paz da velha professora. Teve ímpeto de espancá-la, destruir aquele corpo que ousara ter sido o de Duília. Desse corpo de que só vira um trecho, num relâmpago de esplendor...       Ante o silêncio sombrio do visitante, a professora teve medo. Procurou aliviar-lhe o desespero contido.
    
- Vai voltar para o Rio?
    
Ao ouvir a voz mansa, José Maria enterneceu-se. Sentia-lhe no timbre a ressonância musical da antiga. Sentou-se de novo; e fechando o rosto com as mãos, caiu no pranto. Achou-se ridículo, pediu desculpas. Duília, compassiva, tomou-lhe a mão, procurou consolá-lo. Um sentimento comum aproximava-os.
     
Espantou-se a professora ao se dar conta do que estava fazendo: dar a mão ao quase desconhecido de há pouco.
Por longo tempo, as duas mãos enrugadas se aqueceram uma na outra. Mudos, transidos de emoção, ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste...       O homem não se conteve. Ergueu-se, saiu precipitadamente. A professora correu atrás:       
    - José Maria! Senhor José Maria!...
   
A voz rouca mais parecia soluço do que apelo.
     
- José Maria!
     
Os moradores se alvoroçaram:
       - O que terá havido com a professora?
    
- Foi depois que chegou aquele estrangeiro alto! Quem será esse indivíduo?
    
E já se preparavam para perseguir o intruso, munindo-se de pedras e pedaços de pau. Mas o desconhecido desapareceu na escuridão.  Parada no meio do largo, Duília arquejava. Ninguém lhe ouvia mais a voz nem lhe distinguia o vulto.
   
Alguns soluços cortaram a treva.
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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015


Doutor por correspondência - Marcos Rey


   Minha casa (falo dum tempo muito distante) por muitos anos serviu de hospedaria a parentes, quase desconhecidos, que vinham do interior visitar ou tentar a vida na capital. Uns se alojavam em casa porque não encontravam vagas nos hotéis, alguns por não gostarem deles e outros porque confessavam preferir o convívio familiar. Primo Emílio estava entre estes. Na carta em que nos preveniu de sua vinda, esclareceu que, tinha meios para alugar um belo apartamento no centro ou uma casa confortável num bairro tranquilo, mas temia magoar nosso espírito de hospitalidade. “Morro de saudade”, terminava a carta.
    Nunca um carteiro trouxe uma carta tão surpreendente para minha família. É que Emílio era um primo distante, fora de circulação e completamente esquecido. Eu só o conhecia através dum retrato dele, já amarelado, num álbum de família. O Emílio, com uma palheta na cabeça, gravata borboleta, num jardim público, diante duma jaula de macacos. Bela chapa!    A carta chegou às onze; ao meio-dia  Emilio apertava a campainha de casa com sua mala e sua simpatia. Certamente não usava mais palheta, mas a pretíssima gravata borboleta estava lá, enfeitando seu afinado pescoço.
    - Eh, gente! Aqui estou eu, o Emílio!    Primo Emílio era um homem de estatura mediana, o corpo cilíndrico, o rosto oval e pequeno. Jovem era no espírito, pois dos lados seus cabelos já embranqueciam. Tinha que pintá-los mensalmente, como fiquei sabendo depois. Fumava como um possesso, cigarros Petit Londrino, e cuspia com frequência sem ver onde. Quando estava satisfeito, esfregava as mãos; ríamos muito desse costume. E gostava de dizer “Ora, muito bem!” mesmo quando as coisas não iam bem.
    No dia da chegada, durante todo o almoço, só falou duma coisa: sua aversão. aos hotéis e da multidão de insetos que torturara suas noites de solidão e insônia. Mamãe, comovida, quase derrama uma lágrima  enquanto primo Emílio fazia uma confissão:
    - Mas já fui um ingrato, tia. Que se danem os parentes, dizia. Verdade, eu era assim. Porém o sofrimento me ensinou a estimar os parentes e a rezar para que nunca lhes falte saúde e dinheiro.
    Aí não só minha mãe, todos ficaram comovidos.
    - Você traz algum plano do interior? - perguntou meu pai.
    - Vou construir edifícios. Sabiam que São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo?
    - Empreiteiro?
    - Empreiteiro, eu? Arquiteto!
    - E o diploma?
    - Vou receber em dezembro, se passar nos exames.
    - Em que faculdade você estuda, Emílio?
    - Numa faculdade do Rio de Janeiro.
    - Como é possível, se você não mora lã?!
    Aí ele fez uma pausa inteligente e revelou:
        - Vou me formar por correspondência. - E ante a incredulidade geral, prosseguiu:
       - Hoje em dia apenas os incapazes é que vão à escola. Estamos no século XX, sabiam?   Tudo agora é muito prático. Por isso inventaram esses cursos. Tenho um amigo que estuda até cirurgia por correspondência.
    Meu pai ponderou:
    - Você entregaria sua barriga a um cirurgião que tivesse se formado por correspondência?
    - Entregava. Acho.
    Primo Emílio, justiça se lhe faça, não ficou parado. Levantava cedo, tomava seu café com leite e saia às pressas para a rua. Voltava, às vezes, meia hora depois. No jantar, era o primeiro a chegar à mesa. Em seguida, tornava a sair com a mesma pressa, e o coitado ficava fora até alta madrugada. Imaginávamos que, mesmo antes de receber o diploma, já se lançam ao trabalho de construir, ele que odiava perder tempo.
    Certo dia, no almoço, primo Emílio anunciou:
    - Começo amanhã.
    - Onde vai ser seu primeiro edifício? - indagou mamãe.
    - Edifício? Do que está falando, tia?
   - Não vai ser construtor?
    Primo Emílio riu a valer, sacudindo a cabeça.
    - Já há construtoras demais.
    - Então o que vai fazer? - quis saber meu pai.
    Primo Emílio foi para seu quarto, o dos fundos, donde tivemos que desalojar a empregada, e voltou triunfante com diversos pacotes que colocou sobre a mesa. Era como se trouxera ouro em pó, pois os pacotes continham pó, como logo nos mostrou.
    - Este, sim, é um grande negócio.
   - Que negócio?
   - Vou fabricar bebidas.
    - Bebidas?
    Este pó amarelado é o uísque escocês. Este é um vermute muito saboroso. Este outro é vinho do Rio Grande. Bebidas finas daquelas que se fabricava antes da guerra. Aqui está o melhor negócio do mundo!
    - E a destilaria? Vai precisar de uma, não?
    - Bobagem!
    Apenas na manhã seguinte. que era de sábado, conhecemos com detalhes os planos industriais do primo Emílio. Ele tinha razão, não precisava de destilaria. Bastavam pó, álcool e água. E mais outra coisa: a banheira velha, há anos aposentada num canto do quintal. Esfregando as mãos, com muito otimismo, e nomeando-me seu assistente, partiu para o trabalho.
    Assim que o líquido ganhou cores, pegou uma colher de madeira, mergulhou-a na banheira e levou-a à boca. Retirou-a apressadamente.
    - Mais pó! - exclamou.
    Dei-lhe outro pacote, que imediatamente Emílio despejou na banheira. O líquido que era azul, ficou esverdeado, depois foi amarelando e por fim virou roxo.
    - Bela cor! - admirou-se meu primo.
    A segunda etapa foi encher as garrafas. Primo Emílio comprara algumas dúzias de garrafas vazias. Ajudei-o, interessado, nessa tarefa. Mas o seu dia não acabou aí. Faltavam os rótulos. Tinha um maço deles, coloridos, vistosos, escritos em inglês. Professoralmente, Emílio ensinou-me o sentido de algumas palavras, como made, finest, scotland e muitas outras. Sua pronúncia provavelmente não era boa,  mas ele estava muito feliz.
    Por dois meses ajudei primo. Emílio a fabricar as bebidas e a encher as garrafas, como também a colar os rótulos. As vezes surgia uma cor tão confusa que ninguém em casa conseguia distinguir; aí o Emílio colava nas garrafas o rótulo do “Rum das Antilhas”. Essa bebida tinha muita saída como verifiquei mais tarde.
    Primo Emílio, pelo menos a princípio, deu sorte como industrial. A banheira estava sempre cheia e ele comprou centenas de garrafas vazias. Lembro que até pagou a meu pai o aluguel do quarto dos fundos,. o que causou a todos incrível surpresa. Aos domingos trazia à mesa um garrafão de vinho, não de sua fabricação, mas comprado num dos empórios do bairro. Renovou o guarda-roupa e deu de sair todas as noites, muito perfumado, com ares bacana.
    Certo dia, primo Emílio declarou:
    Vou mudar. Estou pensando em comprar uma casa nas Perdizes. Mas levo a banheira. Pago um conto por ela. 
    - Por um conto você pode comprar algumas banheiras novas - disse meu pai.
    - Eu sei, mas sou muito grato a essa banheira. Disse um conto. Pago já.
    - Já ?
    - Quero dizer, amanhã.
    Na manhã seguinte dois homens de chapéu apareceram em casa. Primo Emílio foi recebe-los de braços abertos. Mas não eram compradores. Ambos mostraram um distintivo na parte traseira da lapela e levaram o industrial, juntamente com um maço de rótulos de “Rum das Antilhas”.
    Durante três dias primo Emílio permaneceu na Polícia, dando explicações. Consta que o delegado simpatizou com ele, como todo mundo, e o deixou ir em liberdade com a promessa de que nunca mais fabricaria bebidas nacionais ou estrangeiras. Primo Emílio voltou para casa, mas não derrotado, como supúnhamos. Era um homem otimista e cheio de idéias.
     Eu dou um jeito - garantiu à mesa, ajeitando a gravata. - Neste mundo só não vence quem não quer. Em seguida, foi ao quintal e olhou demoradamente a banheira.
    - Vou vendê-la para o ferro velho - disse meu pai.
    - Eu disse que compro a banheira e não voltei atrás.
    - Para fabricar bebidas? Isso, não!
    - Tive outra ideia - comunicou, misteriosamente, antes de internar-se no quarto para meditar.
    No dia seguinte, primo Emílio saiu cedo para comprar um fole. Eu disse um fole. Quando lhe perguntaram para que queria aquilo, não respondeu. O certo é que estava em plena ação. Meu pai descobriu que ele mandara fazer uma grande placa de três metros de comprimento por dois de largura. A banheira arrastou para seu quarto, depois de fazer nela alguns consertos. Andou verificando o encanamento da casa e, sem nenhuma consulta, mandou ladrilhar parte de seu modesto quarto, ao mesmo tempo que trocava os vidros da janela por outros espessos e escuros. Para finalizar, descobriu uma tipografia no bairro e encomendou milhares de impressos.
    Todos em casa andávamos preocupados com essa movimentação, mas não foi preciso obriga-lo a falar.
    - Agora já posso me abrir, sócio - disse ele a meu pai.
    - O que está querendo dizer?
    - Preste atenção, sócio.
    - Antes me explique porque está me chamando de sócio?
    - Vou explicar.
    Quando ia explicar, tocaram a campainha. Eram carregadores trazendo a referida placa de três metros por dois. Fomos todos para a porta, curiosos, sabendo que ela explicaria tudo. Foi com assombro que meu pai leu: “Ao SULTÃO DOS BANHOS TURCOS - Reumatismo, artritismo, doenças da coluna, paralisias em geral - Duchas quentes e frias, segundo o moderníssimo processo Emilius”.
    - Podem pregar a placa na fachada - ordenou Emílio aos carregadores. E voltando-se a meu pai:
     - Pode dar uma gorjeta a eles, sócio?
    - De volta à mesa, alegre e realizado, mas ainda com apetite, Emílio falou dos milagres que os banhos turcos realizam na cura das doenças da circulação. Os extremos, o quente e o frio. têm tirado da cama pessoas entrevadas há anos. Ele lera tudo a respeito e não tinha dúvidas. Quanto ao processo Emilius, reconhecia que não passava dum charme, algo diferente, um sopro de ar frio na espinha, aplicado com o fole, que se não fizesse bem, mal também não faria.
    - Mas você pretende atender a seus clientes no quartinho do fundo? indagou minha mãe. Os doentes não querem comodidade, querem a cura. Você já fez alguma experiência?
    - Eu não, mas os turcos fizeram antes de mim. Séculos de experiência. Vocês já viram algum turco reumático? Digam lá. Já viram?
    - Não lembro - admitiu meu pai.
    - Então. Se tivesse visto, não esqueceria.
    Meu pai ainda resistia à sociedade, a despeito do dinheirão que podia ganhar com a casa de banhos.
   - E a licença, Emílio? Tem licença para abrir o estabelecimento?
    Primo Emílio levantou-se em meio à sobremesa, lembrando-se que precisava passar na tipografia, para apanhar os reclames, como dizia, para distribui-los pelas casas do bairro.
    Emílio sempre acreditou muito na publicidade e foi a primeira pessoa que ouvi dizer que “a propaganda é a alma do negócio”.
    Assim que primo Emílio saiu, fui à porta ver mais demoradamente a placa, que causava estranheza aos vizinhos, mesmo porque a falta de água era o grande problema da rua. A tardinha ele voltava, já tendo distribuído a maior parte dos seus folhetos. Devia estar entusiasmado, pois não o vira ainda fumar charuto, o que ele fazia gloriosamente.
    Na manhã seguinte, ao contrário do seu hábito, Emílio levantou cedo e pôs-se a andar pela casa, talvez à espera do primeiro cliente. Esperou em vão o dia todo, passeando, impaciente.
    Dois dias mais tarde resolveu sair, lembrando que o dono do armazém arrastava penosamente uma perna. Tentou convencê-lo a um tratamento de doze banhos. Embora cada banho fosse baratísismo, o homem preferiu continuar com sua perna paraplégica. Soubemos que o Emílio teve uma briga feia com ele e que só não o esmurrou, para convencê-lo, porque devia uma continha.
    Nenhum cliente apareceu na primeira semana. Na segunda apareceu um, mas este mudou de ideia ao ver o enorme fole que produzia jato de ar frio na espinha. Ao completar-se o mes já estávamos todos certos de que o empreendimento de Emílio fracassara. Ele até já cuidava da retirada da tabuleta, quando um carro parou diante de casa e dele desceu sua grande esperança. Desceu não, foi descido. O que eu vi foi um velhinho, carregado pelos braços robustos de dois netos. Largaram-no numa poltrona da sala, o ancião segurando na mão trêmula um dos folhetos do Emílio.
    - Por favor, quero ver o dr. Emílio.
    Minha mãe, assustada com o estado do enfermo, e para evitar complicações, ia dizendo que o dr. Emílio fora viajar, quando ele irrompeu na sala com um sorriso capaz de incutir confiança e certeza de cura em todos os paraplégicos do mundo.
    - Aqui estou eu! - exclamou, como se dissesse: aqui está a salvação. - Qual é seu caso? Ah, as pernas! Arregace as calças para examiná-lo.
    - O exame foi breve.
    - O que acha do caso, doutor?
    - É sopa!
    - Sopa?
    - Sopa.
    Em seguida, carregando-o pelos braços, Emílio levou o cliente ao quarto dos fundos, que se lamuriou e grunhiu durante todo o trajeto. Na sala, à espera, ficaram os netos, meu pai e minha mãe que rezava disfarçadamente. Eu fui até o quintal, perto do quarto, pois com meus doze anos era o único na família que acreditava nos milagres que o Emílio podia realizar com os banhos, o vapor e o fole.
    No começo o velhinho parecia estar resistindo bem ao sacrifício. A água quente talvez o confortasse. Mas as coisas pioraram quando chegou do armazém aquela imensa pedra de gelo. Então o idoso cliente passou a gemer cada vez mais alto. Um dos netos bateu à porta, assustado, mas Emílio respondeu que “era assim mesmo e que tudo corria bem”. No entanto, os gemidos transformaram-se em gritos na aplicação ,da ducha de ar frio na espinha. Pensei que o velho bateria as botas, esticaria as canelas, iria para o beleléu. E parece que era essa a impressão de todos, inclusive da vizinhança.
    Quando a ambulância chegou, o cliente do Emílio não gritava nem gemia mais, porém estava rígido e gelado. O primo, ainda segurando o fole, garantia aos netos do infeliz que ele resistiria melhor ao segundo banho. E enumerava ilustres paraplégicos que, dizia, frequentavam com bons resultados a sua clínica. Mas eles não quiseram ouvir nada, e, além de não pagar o banho, ainda insultaram o primo Emílio.
    - É o que dá quando se lida com ignorantes - lamentou o sultão dos banhos turcos. - Mas se quiserem voltar, que não contem mais comigo!
    Nunca vi ninguém mais triste que o primo Emílio como no dia em que retiraram a tabuleta da frente de casa. O mundo desabava para ele, sua última esperança que naufragava. Desiludido, arrumou as malas para voltar ao interior, mas não voltou. Ficou por lá, tentando bolar novas idéias, fundindo a cuca o dia inteiro; Cansada de sua presença, minha mãe lhe pediu a cama, pois a empregada não queria dormir mais no divã. Ele devolveu a cama, dizendo:
    - Não faz mal, durmo na banheira.
    Devia gostar dela, já que jamais levantava antes do meio dia.
    Lembro que foi nas vésperas do Natal, o primo já muito desmoralizado na família, quando chegou pelo correio um cartucho envolto em papel de seda. Eu, que o recebi do carteiro, fui ao seu quarto. O primo roncava dentro da banheira, vestindo algo que já fora um pijama. Como não tinha mais dinheiro para pintar os cabelos, eles haviam embranquecido. Notei que sua velha palheta servia agora de cinzeiro. E a inseparável gravata não tinha mais cor, como o “Rum das Antilhas”. Acordei o primo com dificuldade, e entreguei-lhe o cartucho. Emílio, ainda sonolento, preferiu dormir mais, antes de abri-lo. Íamos nos sentar à mesa para o almoço quando ele surgiu. impetuosamente na sala sorrindo histericamente a brandir o cartucho no ar. 
    - O meu diploma! Passei nos exames! Sou doutor! Ouviram? Sou doutor!
    - Era um belíssimo e solene diploma, nitidamente impresso, escrito com letras góticas, selado, carimbado e cheio de assinaturas dos dois lados.
    - Vejam, está tudo em ordem - disse o primo. - Dentro da lei, como sempre exigi as coisas.
    Meu pai, que não levava o primo a sério, teve que dar a mão à palmatória.
    - É mesmo um turuna esse Emílio! Doutor por correspondência! Quem diria? 
    - E me formei com boa nota! Nove e meio. Nove e meio é nota e mais alguma coisa, homem!
    A alegria do Emílio fez daquele Natal uma data inesquecível. Correu ao mercado e encomendou um peru com dinheiro que meu pai lhe adiantou, o que não tirava o valor do presente. Fez mais: em nossa conta comprou enfeites natalinos e armou uma belíssima árvore num canto da sala. Nem Papai Noel movimentou-se tanto quanto o Emilio naqueles dias. Quanto ao diploma, mandou fazer uma sólida moldura dourada e dependurou-o no corredor para que todos o vissem, quando passassem. A mesma tipografia que imprimiu os volantes de propaganda do “sultão dos banhos turcos” rodou mil cartões de visita: “Dr. Emílio de tal, arquiteto”.
    Aquele resto de ano, passou-o fazendo planos, diante duma prancheta de arquiteto que mamãe lhe deu.  Achava-se com fôlego suficiente para revolucionar a arquitetura e ganhar ,rios de dinheiro. Alguns desses projetos explicou detalhes, entre eles o de um imenso hospital para a classe média que ele considerava a grande injustiçada. Na festinha de fim de ano, à meia-noite, enquanto as crianças, na rua, martelavam os postes e as sirenes tocavam, fez solenemente uma revelação íntima e comovida: primo Emílio ia casar.
    Vocês ignoram, mas há vinte anos sou noivo duma boa moça lá de minha cidade. Suponho que ela esteja um pouco cansada de esperar, mas agora que o dinheiro vai entrar, caso-me com ela. É a hora de criar juízo!
    Essa revelação arrancou lágrimas da família e convenceu meu pai a ir comprar às pressas mais algumas garrafas de vinho porque o momento exigia. Nos primeiros dias de janeiro, primo Emílio já com um anelão de doutor no dedo, aconteceu aquilo. Isto é, uma notícia no jornal, na última página, dedicada ao noticiário policial.
    A notícia aludia a uma verdadeira fábrica de diplomas do curso superior, localizada no Rio de Janeiro, cujo reitor já se encontrava nas grades. Vinha depois uma lista de diplomandos que haviam caído no conto, incluindo o nome do primo Emílio.
    Meu primo foi o último em casa a ler a notícia. Ninguém tinha coragem de mostrar-lhe o jornal. Mas era necessário, antes que ele se empregasse como arquiteto numa construtora e acabasse preso também. Emílio bateu os olhos na página, entendeu e caiu sentado. Permaneceu algum tempo mudo e surdo às palavras de consolo que a família lhe dirigia. Depois, levantou-se e foi para o quarto dos fundos.
    - Será que ele vai se matar? - receou minha mãe.
    Aliás, era esse o temor de todos. Mas ele não se matou. Tendo encontrado no quarto um resto de pó colorido e uma garrafa de álcool, fabricou em pouco tempo uma quantidade de bebida capaz de obter o efeito desejado. Ao voltar para a sala, onde todos o esperavam, suas pernas cambaleavam e sua cabeça parecia dar giros. Quisemos que sentasse, mas preferiu circular em torno da mesa. Numa das voltas, perdeu o equilíbrio e caiu. Ameaçou vomitar, já sentado no divã. Pusemos um jornal no chão. Ao ver o jornal, não quis mais vomitar. Pediu café. Veio o café, não o tomou. Deu um pontapé na prancheta.
    - Adeus, vou embora - disse.
   - Você não pode andar assim pela rua - ponderaram.
   - Nada mais me segura aqui. Volto para o interior e me caso com Joaninha.
    - Joaninha? Só então soubemos o nome da paciente noiva.
    - Fique - pediu meu pai.
    - Não fico - respondeu, decidido, arrotando o inconfundível “Rum das Antilhas".
    - Fique ao menos até amanhã.
    - Até amanhã?
    - Amanhã você já pode ir.
    Emílio concentrou-se para sair de sua indecisão. Depois dum longo silêncio, resolveu:
    - Já que insistem, hoje fico, amanhã eu parto.
    Primo Emilio era homem de palavra: ficou. Apenas se esqueceu da segunda parte da promessa. Não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia as malas e dizia o seu adeus. Soubemos, mais tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata. O mundo é assim mesmo.

Nota do bloguista : nos anos 60 e 70 eram muito populares os cursos profissionalizantes por correspondencia. Havia cursos prá tudo, corte e costura, eletrônica, programação de computadores, secretariado, contabilidade, musica, etc. O lider deste mercado de educação a distancia era o Instituto Universal Brasileiro, que afirma ter ministrado mais de 1,5 milhões de cursos. Os cursos eram oferecidos em revistas de histórias em quadrinho, e a matricula era feita preenchendo se um cupom. Nada era exigido do matriculando (exceto, é claro, pagamento), bastava saber a ler, não se exigia nenhum pré requisito. Alguns anúncios tinham testemunhais de alunos contando maravilhas, histórias de sucesso e muito dinheiro no bolso.



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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Natal na barca–Lygia Fagundes Telles

Natal na barca - Lygia Fagundes Telles


Não quero nem devo lembrar aqui porque me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

    Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanha-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.


    - Tão gelada - estranhei, enxugando a mão.


    - Mas de manhã é quente. 

   Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

- De manhã esse rio é quente - insistiu ela, me encarando.

- Quente?

- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas ?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:      - Mas a senhora mora aqui perto?

    - Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje... 
    A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a nina-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.
    - Seu filho?
    - É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre. Mas Deus não vai me abandonar.
    - É o caçula?Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
    - É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico, quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito . . . Tinha pouco mais de quatro anos.
    Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfrega-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
       - E esse? Que idade tem?
    - Vai completar um ano.  E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:
    - Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado. . . A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.
    Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembrancas, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los. 
    - Seu marido está à sua espera?

    - Meu marido me abandonou. 
     Sentei-me e ,tive vontade de rir, Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema. dos vasos comunicantes.
     - Há muito tempo? Que seu marido...
    - Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito . Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino .e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos. Aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez andar.
     - A senhora é conformada.
    - Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
    -  Deus - repeti vagamente.
    - A senhora não acredita em Deus? 
    - Acredito - murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas.
    Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:
    - Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que sai pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele. . . Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto . . . Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
    Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto.. Em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei a olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelace as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a nina-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
    - Estamos chegando - anunciou.Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

    - Chegamos ! . . . Ei ! chegamos! 
    Aproximei-me evitando encara-la.
 - Acho melhor nos despedirmos aqui  - disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

- Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
    - Acordou?! 
    Ela sorriu.
    - Veja.
    Inclinei-me. A criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. 
- Então, bom Natal ! - disse ela, enfiando a sacola no braço.
    Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
    Conduzido pelo bilheteiro. o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio,. E pude imagina-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

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Lygia Fagundes Telles


Roupa no coradouro–Jose J. Veiga

Roupa no coradouro - José Veiga


Fui com meu pai até depois da ponte e ajudei-o a tocar os dois cargueiros ladeira acima. Todo o tempo ele ficou falando no que eu devia fazer enquanto ele estivesse fora, obedecer minha mãe em tudo, não deixá-la carregar vasilhas pesadas de água, rachar a lenha que fosse necessária, mas ter muito cuidado para não bater o machado no pé; não demorar na rua quando ela mandasse dar algum recado ou fazer compra, e principalmente não andar de farrancho na beira do rio com outros meninos maiores, porque isso assustava muito minha mãe e ela não podia passar sustos. Eu não dizia nada, só ouvia e batia com a cabeça, no fundo eu não estava triste com a viagem de meu pai, era a primeira vez que ele ia ficar longe de nós por algum tempo e eu estava ansioso por ver como seria a vida em casa sem ele para fiscalizar tudo. Quando passamos a ladeira depois da ponte e os cargueiros tomaram a estrada carreira eu pedi a bênção a meu pai, ele pôs a mão na minha cabeça e disse que Deus me abençoasse e eu voltei quase correndo.
    Mamãe estava sentada no banco da varanda ralando cidra com o ralo e a travessa no colo, ela disfarçou mas eu vi que ela andara chorando. Sentei perto para conversar um pouco e esperei que ela começasse mas ela não dizia nada, ficava muito atenta ralando os pedaços de cidra, de vez em quando passava o dedo grande na testa para afastar o cabelo e suspirava. Perguntei quando era que meu pai ia voltar, ela disse que logo que vendesse toda a mercadoria. Perguntei por que era que ele tinha deixado o ofício para ser mascate, ela zangou-se  e respondeu que eu não devia chamá-lo de mascate, com certeza isso já era caçoada de outras pessoas, mas eu devia repelir quando ouvisse; ele ia apenas tentar a sorte no comércio, o ofício não estava dando, ninguém queria mais fazer nem reformar casa, era só remendo, e meu pai não podia ficar parado. Quando ele voltasse com a mercadoria toda vendida haveria dinheiro para as despesas até que a situação melhorasse.
    Eu não estava muito interessado na volta de meu pai por enquanto, só queria que chegasse de noite para poder brincar na rua até tarde sem ficar com medo de ser repreendido ou mesmo de apanhar; por isso, quando ela perguntou se eu estava com fome eu disse que sim e fui logo para a cozinha, e já que eu estava remexendo nas panelas, para não perder o trabalho fui comendo o que havia - mandioca frita, carne assada e arroz sobrado do almoço, e no armário uma tigela com doce de batata. Quando acabei minha mãe perguntou se eu era capaz de ir em casa de D. Bita ver se ela podia mandar o dinheiro dos frangos que levara fiado desde o mês passado, não me mandou ir como fazia meu pai, perguntou apenas se eu era capaz de ir. Eu disse que ia quando acabasse de consertar a minha arraia, que perdera o rabo embaraçado em um coqueiro; e com aquilo de preparar grude, cortar papel e fazer as argolas passei o resto do dia e me esqueci do dinheiro. No dia seguinte ela falou de novo no assunto, mas aí eu tinha combinado uma pescaria, precisava tirar minhoca e trocar a vara do anzol, e acabei também não indo. Não sei se foi castigo, mas o certo é que passei a tarde inteira com o anzol na água e só peguei uns dois ou três lambarizinhos barrelas, que achei melhor dar para o Ciríaco juntar com os dele que eram mais. Também não me importei, porque assim minha mãe não precisava saber que eu estive pescando.
    Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. Eu. ia à cozinha, lavava os pés mais ou menos, às vezes nem lavava, passava um pano, tomava o leite com farinha e ia dormir. Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa e outra pela casa, catando feijão, moendo café para a manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar.
    Quando o circo chegou aí é que eu não tinha mesmo tempo para nada, nem para conversar direito com minha mãe. De manhã cedo era aquela correria de lavar o rosto, tomar café e sair depressa para a escola, quando voltava era só engolir a comida e ir ajudar dar água aos animais e depois sair com os outros meninos carregando o quadro negro pelas ruas, tocando buzina e gritando para chamar a atenção do povo. A gente trabalhava para ganhar entrada todas as noites, mas mesmo que não ganhasse eu acho que a gente trabalhava assim mesmo só para poder ver o circo por dentro. Com isso eu não tinha tempo nem para encher as vasilhas de água lá de casa, e muitas vezes quando eu passava com o quadro negro pelo largo eu via minha mãe carregando um balde cheio em cada mão, ou parada com outras mulheres no chafariz esperando a vez. Da primeira vez eu fiquei com vergonha e procurei me esconder atrás do quadro, mas depois me acostumei e não sentia mais nada. Um dia, quando eu estava deitado relembrando tudo o que eu tinha visto no circo, tive pena de minha mãe estar perdendo tudo aquilo e achei que ela devia ir nem que fosse uma vez, ao menos para ver o palhaço e o salto da morte, o palhaço tinha uma cachorrinha chamada Violeta que ele vivia puxando para aqui e para ali, e bastava ele gritar Violeta para todo mundo cair na risada. No dia seguinte eu convidei minha mãe, mas ela disse que era melhor não gastar o pouco dinheiro que meu pai tinha deixado para as despesas. Eu disse que eu podia vender minha galinha para ela não ter que tocar no dinheiro das despesas, ela pensou um pouco, eu vi que estava satisfeita com o convite, mas depois sacudiu a cabeça e disse que se ela fosse ia ficar o tempo todo pensando em meu pai, e quanto mais estivesse gostando mais ia desejar que ele também estivesse lá, e assim era melhor não ir.
    Pensei que quando o circo fosse embora eu ia ter mais tempo para ajudar em casa, mas aí inventamos de imitar os trapezistas, assentamos trapézio no quintal de Ciríaco, lá tínha muita corda e laço por causa das vacas que eles criavam para vender leite, e passávamos o tempo todo exercitando, destronquei o pé e andei muitos dias mancando, mas o Marquim foi pior porque quebrou o braço e entortou o pescoço, do braço ficou bom mas do pescoço dizem que não fica. Também ele foi o mais afoito, foi o único que teve coragem de tentar o salto da morte.
    Foi logo depois disso que minha mãe adoeceu. Ela estava na cozinha fazendo o almoço mas teve que parar e deitar na rede para descansar, disse que estava com um pouco de febre e tontura, quando pisava não sentia o chão. Ela perguntou se eu podia ir na farmácia comprar umas cápsulas e voltar já, me mandou apanhar o dinheiro no potinho embaixo da santa, eu fui mas no caminho encontrei uns meninos brincando de pião, por sorte eu estava com o meu no bolso, entrei no meio deles e me esqueci da hora. Cheguei em casa arrependido de ter demorado, mas felizmente D. Ana Bessa estava lá, tinha acabado de fazer o almoço para mim e estava dando um chá para mamãe no quarto. Eu pensei que ela gostava de mim, ela estava sempre lá em casa ou mamãe na casa dela, uma vez ela até me deu uma botinha de abotoar. no dia dos meus anos; mas quando acabou de dar o chá para mamãe ela veio à cozinha onde eu estava fazendo o meu prato, ficou me olhando da porta e sem mais nem menos disse que eu tinha feito um papel muito feio, que minha mãe estava muito doente e ela ia me vigiar, se eu não deixasse a vadiação ela ia contar tudo a meu pai quando ele chegasse. Eu fiquei passado, era a primeira vez que ela falava assim comigo, e se a fome não fosse muita eu teria até perdido a vontade de comer.
Depois de almoçar eu achei que devia lavar o prato eu mesmo para D. Ana não ter o que falar, arrumei as panelas no fogão e fui ao quarto ver minha mãe. Ela estava dormindo mas não parava de virar a cabeça de um lado para o outro no travesseiro. Fiquei lá um pouco mas como o quarto estava escuro e quente resolvi ir brincar no quintal, subi na mangueira grande e fiquei lá em cima enganchado numa forquilha descansando. e olhando os outros quintais. Seu Amâncio estava roçando o matinho perto da horta, e quando chegou junto da cerca pegou uma caçamba velha do chão e jogou para o quintal do Seu Aprígio. Eu achei aquilo engraçado porque dias antes eu tinha visto Seu Aprígio jogar aquela mesma caçamba para o quintal de Seu Amâncio; no entanto, quem os visse conversando de tarde em suas janelas não saberia que eles tinham essa picuinha por cima da cerca. D. Ana Bessa ia voltando da horta com um manojo de ervas na mão, parou debaixo de um limoeiro, olhou para os lados, ergueu um poucoa saia na frente fazendo roda, afastou as pernas e ficou lá quieta olhando para o tempo. Imagine se ela soubesse que eu estava vendo.
    Pensei em minha mãe sozinha no quarto e resolvi descer para ver se ela queria alguma coisa. Ela estava acordada, brincando com a ponta das tranças. Quando me viu entrar no quarto começou a sorrir mas fechou os olhos e gemeu baixinho; e quando abriu os olhos de novo ficou me olhando demorado, ainda querendo sorrir, depois perguntou se eu já tinha jantado. Achei esquisito porque fazia pouco mais de uma hora que eu tinha almoçado, e também a voz dela saiu diferente. Ela me pediu para sentar na beira da cama, eu sentei, ela pegou a minha mão e ficou alisando. Depois virou o rosto para a parede, a mão dela muito quente na minha, até fazia a minha suar, quando vi ela estava chorando. Fiquei tão assustado que tive vontade de sair correndo para chamar D. Ana, procurei soltar minha mão devagarinho mas não tive coragem, ela me segurava com força. Eu queria dizer muitas coisas para ela, coisas bonitas e carinhosas, mas não achei o que dizer e acabei chorando também.D. Ana entrou sem fazer barulho, e do jeito que me olhou eu vi que ela era de novo minha amiga. Ela sentou na beira da cama de frente para mim, debruçou em cima de minha mãe e pôs a mão na testa dela, depois debaixo do queixo.
    - Muita febre, coitadinha - disse ela. - Matei um frango pra fazer um caldinho pra ela. Acho bom você chamar o Dr. Vergílio. Eu fico com ela enquanto você vai. Diz a ele pra fazer o favor de vir logo.
    Se eu não tivesse parado na porta da venda para ver o mico comer amendoim eu teria alcançado o Dr. Vergílio ainda em casa. Tinha muita gente em volta olhando e rindo, eu quis ver também, o dono jogava um amendoim o mico pegava, descascava e comia e punha as cascas na cabeça e ficava balançando o corpo como se dançasse. Enquanto eu estava rindo como todo mundo alguém tirou o meu boné e jogou para o mico. Primeiro ele examinou o boné de todo jeito, virou do avesso, esfregou no corpo como se fosse sabão, depois botou na cabeça com o bico para trás. Eu quis tomar o boné mas o mico não deixava, eu esticava a mão ele gritava e ameaçava morder, e isso foi o que o povo achou mais engraçado, só eu é que não ria, eu queria o meu boné para ir chamar o Dr. Vergílio, minha mãe estava doente e não podia esperar, comecei a chorar e as risadas não paravam, apanhei uma pedra pra jogar no mico muitas mãos me seguraram, o dono do mico apanhou o boné e jogou para mim.
     Faltavam umas duas casas para chegar na farmácia quando vi o Dr. Vergílio montar o cavalo e sair com a espingarda cruzada nas costas. Eu podia ter corrido e gritado ele que ia depressa mas o susto de não alcançá-lo foi tão grande que na hora não me lembrei, só depois que ele dobrou a esquina da rua que desce para o rio foi que pensei nisso, mas aí não adiantava mais correr.
    Cheguei em casa chorando e disse a D. Ana que o doutor tinha ido para a espera. Ela pôs as duas mãos no rosto e disse “Valha-nos Deus!”, depois xingou muito o Dr. Vergílio, e quando se acalmou alisou a minha cabeça e disse que eu não devia chorar que a culpa não era minha mas daquele homem imprestável. Eu parei de chorar e sentei na canastra onde minha mãe guardava a nossa roupa, mas de cada vez que eu lembrava da minha parada na venda eu chorava mais. D'. Ana pensou que era por eu não ter encontrado o doutor mas era porque eu sabia que o imprestável era eu, como meu pai às vezes dizia.
    Depois que D. Ana trouxe o caldo para mamãe eu disse que achava bom eu voltar à farmácia para ver se o doutor já tinha voltado. Ela disse que eu ia perder a caminhada, se ele tinha ido esperar só voltaria muito tarde da noite ou de madrugada. Eu quis ir assim mesmo, podia ser que ele tinha esquecido alguma coisa e voltado para apanhar; e antes que ela fizesse qualquer reparo eu fui saindo depressa. Dessa vez não parei em parte nenhuma, e quando cheguei na farmácia fiz de conta que não sabia de nada. D. Rute estava sentada atrás do balcão dando mamar ao filho menor. Perguntei pelo Dr. Vergílio, ela disse que ele tinha ido do outro lado do morro ver um doente. Perguntei se depois de ver o doente será que ele não ia fazer espera, ela disse que não; ele tinha levado a espingarda mas era só por costume, e para o caso de encontrar alguma perdiz no caminho. Então eu disse que era para ele fazer o favor de ir lá em casa logo que chegasse porque mamãe estava muito doente. Ela quis saber qual era a doença, eu disse que era febre; ela perguntou se eu não queria levar umas cápsulas para ir tentando, eu disse que já tinha levado mas que não adiantou.
    Eu não saí mais de casa naquele dia nem no outro. Aos poucos a casa foi enchendo de gente, mulheres mais, umas com filhos pequenos, outras com meninos já grandinhos, que ficavam me amolando para brincar. Mulheres que eu só conhecia de vista e achava antipáticas mexiam em nossa cozinha, faziam mingau para os filhos nas vasilhas de mamãe, ou café para as visitas.
    Passou a noite inteira e o Dr. Vergílio não apareceu. D. Ana já estava desesperada, e no dia seguinte logo cedo ela mesma foi à farmácia indagar. D. Rute não sabia de nada, achava que de onde estava ele devia ter tido algum outro chamado. D. Ana deixou recado e passamos mais um dia inteiro na mesma aflição. Tarde da noite ele chegou, pôs todas as mulheres para fora do quarto, eu quis ficar ele não deixou. Mais tarde ele chamou D. Ana e tornaram a fechar a porta; e quando finalmente saíram do quarto eu vi que ela estava chorando, muito disfarçado mas estava. O doutor aceitou uma xícara de café que lhe ofereceram, e enquanto. Bebia soprando disse que era bom mandarem chamar meu pai, mas ninguém sabia onde ele estava. Já na porta o doutor disse que precisava de alguém para trazer uns remédios que ele ia preparar na farmácia, eu disse que eu ia, D. Ana não deixou e uma das mulheres se ofereceu. Eu queria ficar sozinho num canto mas havia gente por toda parte, só na rede da varanda tinha três meninas se balançando e rindo espremido, D. Ana teve de ralhar com elas por causa do barulho que faziam.
    Eu estava sentado na canastra no quarto de minha mãe, o único lugar que achei para sentar, quando o padre chegou. Que susto eu levei ao vê-lo entrar com o livrinho de mas na mão e já murmurando orações, tive vontade de manda-lo embora mas faltou coragem, eu estava acostumado a ser muito obediente perto dele, e até de pedir a bênção, mas desta vez não pedi. Ele fez sinal para eu sair do quarto eu não liguei, tiveram que levar-me à força, fui chorando alto, sem nenhum acanhamento. Uma vizinha quis me levar para dormir na casa dela, eu gritei que não ia, eu sabia que minha mãe estava morrendo e não queria ficar longe dela. Levaram-me para a cozinha e me deram uma xícara com calmante, mas eu só parei de chorar quando vi que muita gente estava chorando também, principalmente as meninas.
Depois que o padre saiu D. Ana sentou comigo na rede, puxou minha cabeça para o ombro dela e ficou alisando o meu cabelo sem dizer nada, e foi bom porque eu não queria que falasse comigo. Quando acordei eu estava sozinho na rede, meu pai ajoelhado na minha frente, com as mãos nos meus joelhos. Abracei o pescoço dele, ele levantou abraçado comigo e ficamos os dois chorando. Depois ele me soltou no chão e disse que devíamos ir ao quarto despedir de mamãe e pedir perdão a ela. Ela estava com os cabelos soltos no travesseiro, e tão corada e bonita que pensei que não estava mais doente e que ia se levantar quando nos visse; mas chegamos bem perto da cama e parece que ela não nos viu porque continuou alisando a bainha do lençol e falando palavras que não entendi. Chamei-a duas vezes e ela nem me olhou, e quando segurei a mão dela para beijar ela disse:
    - Não, não! Meu filho! Chamem meu filho! Coitado de meu filho, vai ficar sozinho.
    Meu pai ajoelhou-se no chão e encostou a testa no cabelo de minha mãe, eu ajoelhei também e ficamos lá chorando. Alguém quis nos tirar de lá, D. Ana não deixou e mandou que as outras pessoas saíssem do quarto. Quando dei fé, meu pai tocava o meu braço e dizia:

     - Sua mãe faleceu. Reze por ela.
    No dia seguinte depois do enterro nós estávamos na varanda conversando, D. Ana tinha trazido uma bandeja de café com bolo, meu pai só tomou o café e fumava sem parar, suspirando a todo instante. Meu tio Lourenço estava lá, tinha vindo para o enterro, e não parava de falar em sua lavoura, no trabalho que estava tendo com os camaradas, na casa nova que começou a fazer mas teve de parar por falta de um bom carapina, o que arranjou bebia muito e não ligava ao serviço. Aí ele convidou meu pai para passar uns tempos no sítio e ajudar nas obras, seria bom para mim também; meu pai parece que não ouviu, e tio Lourenço teve que repetir o convite. Meu pai fez como quem acorda e disse que ia pensar; mas eu sabia que ele não ia aceitar, eles já tinham brigado uma vez e meu pai disse que, nunca mais trabalhava para tio Lourenço.
    Enquanto tio Lourenço falava, e os outros ficavam olhando para o chão ou assoviando baixinho entre os dentes, eu ia pensando como era que ia ser a nossa vida sem mamãe. Eu sabia que ela estava morta, eu tinha visto levarem o caixão com ela dentro, mas não queria acreditar que nunca mais eu ia vê-la. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Repeti as palavras em pensamento, elas doíam dentro de mim mas eu queria sofrer, era só o que eu podia fazer por minha mãe agora. Tio Lourenço deve ter notado que eu estava chorando, porque levantou e começou a falar comigo, perguntou como eu ia na escola, se eu já sabia o que era que ia ser quando crescesse. Baixei a cabeça para não responder, sabia que se respondesse a voz não saía direito. Aí ele disse para meu pai que eu devia ficar o tempo todo pelos cantos pensando em coisas tristes, que era preciso sacudir o corpo; e para mostrar como era que meu pai devia fazer comigo ele me mandou soltar o cavalo dele que estava amarrado no pátio e toca-lo para o quintal.
    O cavalo estava amarrado numa argola no pé da escada da cozinha. Levei-o pelo cabresto até o portão do quintal, abri portão, tirei o cabresto e toquei o cavalo com uma palmada na anca para ele saltar o degrauzinho. Fechei o portão com a tranca, enrolei o cabresto e voltei.
    Foi aí que eu vi as roupas estendidas na grama, vestidos, blusas e saias de minha mãe que ela mesma deixara ali para corar. O luar batia nas roupas e as clareava com estranha nitidez. A blusa de bordado que minha mãe usava em dias de calor, a saia de rosas que D. Ana achava bonita. Foi como se eu a visse pela casa varrendo e limpando, ou na cozinha mexendo as panelas, sempre empurrando os cabelos para trás com o dedo grande para não toca-los com a mão engordurada. Não pude me demorar mais porque meu pai me chamava da janela e eu não quis contraria-lo logo nesse dia tão triste. Mas quando cheguei no alto da escada olhei mais uma vez a roupa estendida e fechei a porta bem devagar para demorar mais tempo olhando.


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Jose J. Veiga

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