segunda-feira, 21 de dezembro de 2015


Doutor por correspondência - Marcos Rey


   Minha casa (falo dum tempo muito distante) por muitos anos serviu de hospedaria a parentes, quase desconhecidos, que vinham do interior visitar ou tentar a vida na capital. Uns se alojavam em casa porque não encontravam vagas nos hotéis, alguns por não gostarem deles e outros porque confessavam preferir o convívio familiar. Primo Emílio estava entre estes. Na carta em que nos preveniu de sua vinda, esclareceu que, tinha meios para alugar um belo apartamento no centro ou uma casa confortável num bairro tranquilo, mas temia magoar nosso espírito de hospitalidade. “Morro de saudade”, terminava a carta.
    Nunca um carteiro trouxe uma carta tão surpreendente para minha família. É que Emílio era um primo distante, fora de circulação e completamente esquecido. Eu só o conhecia através dum retrato dele, já amarelado, num álbum de família. O Emílio, com uma palheta na cabeça, gravata borboleta, num jardim público, diante duma jaula de macacos. Bela chapa!    A carta chegou às onze; ao meio-dia  Emilio apertava a campainha de casa com sua mala e sua simpatia. Certamente não usava mais palheta, mas a pretíssima gravata borboleta estava lá, enfeitando seu afinado pescoço.
    - Eh, gente! Aqui estou eu, o Emílio!    Primo Emílio era um homem de estatura mediana, o corpo cilíndrico, o rosto oval e pequeno. Jovem era no espírito, pois dos lados seus cabelos já embranqueciam. Tinha que pintá-los mensalmente, como fiquei sabendo depois. Fumava como um possesso, cigarros Petit Londrino, e cuspia com frequência sem ver onde. Quando estava satisfeito, esfregava as mãos; ríamos muito desse costume. E gostava de dizer “Ora, muito bem!” mesmo quando as coisas não iam bem.
    No dia da chegada, durante todo o almoço, só falou duma coisa: sua aversão. aos hotéis e da multidão de insetos que torturara suas noites de solidão e insônia. Mamãe, comovida, quase derrama uma lágrima  enquanto primo Emílio fazia uma confissão:
    - Mas já fui um ingrato, tia. Que se danem os parentes, dizia. Verdade, eu era assim. Porém o sofrimento me ensinou a estimar os parentes e a rezar para que nunca lhes falte saúde e dinheiro.
    Aí não só minha mãe, todos ficaram comovidos.
    - Você traz algum plano do interior? - perguntou meu pai.
    - Vou construir edifícios. Sabiam que São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo?
    - Empreiteiro?
    - Empreiteiro, eu? Arquiteto!
    - E o diploma?
    - Vou receber em dezembro, se passar nos exames.
    - Em que faculdade você estuda, Emílio?
    - Numa faculdade do Rio de Janeiro.
    - Como é possível, se você não mora lã?!
    Aí ele fez uma pausa inteligente e revelou:
        - Vou me formar por correspondência. - E ante a incredulidade geral, prosseguiu:
       - Hoje em dia apenas os incapazes é que vão à escola. Estamos no século XX, sabiam?   Tudo agora é muito prático. Por isso inventaram esses cursos. Tenho um amigo que estuda até cirurgia por correspondência.
    Meu pai ponderou:
    - Você entregaria sua barriga a um cirurgião que tivesse se formado por correspondência?
    - Entregava. Acho.
    Primo Emílio, justiça se lhe faça, não ficou parado. Levantava cedo, tomava seu café com leite e saia às pressas para a rua. Voltava, às vezes, meia hora depois. No jantar, era o primeiro a chegar à mesa. Em seguida, tornava a sair com a mesma pressa, e o coitado ficava fora até alta madrugada. Imaginávamos que, mesmo antes de receber o diploma, já se lançam ao trabalho de construir, ele que odiava perder tempo.
    Certo dia, no almoço, primo Emílio anunciou:
    - Começo amanhã.
    - Onde vai ser seu primeiro edifício? - indagou mamãe.
    - Edifício? Do que está falando, tia?
   - Não vai ser construtor?
    Primo Emílio riu a valer, sacudindo a cabeça.
    - Já há construtoras demais.
    - Então o que vai fazer? - quis saber meu pai.
    Primo Emílio foi para seu quarto, o dos fundos, donde tivemos que desalojar a empregada, e voltou triunfante com diversos pacotes que colocou sobre a mesa. Era como se trouxera ouro em pó, pois os pacotes continham pó, como logo nos mostrou.
    - Este, sim, é um grande negócio.
   - Que negócio?
   - Vou fabricar bebidas.
    - Bebidas?
    Este pó amarelado é o uísque escocês. Este é um vermute muito saboroso. Este outro é vinho do Rio Grande. Bebidas finas daquelas que se fabricava antes da guerra. Aqui está o melhor negócio do mundo!
    - E a destilaria? Vai precisar de uma, não?
    - Bobagem!
    Apenas na manhã seguinte. que era de sábado, conhecemos com detalhes os planos industriais do primo Emílio. Ele tinha razão, não precisava de destilaria. Bastavam pó, álcool e água. E mais outra coisa: a banheira velha, há anos aposentada num canto do quintal. Esfregando as mãos, com muito otimismo, e nomeando-me seu assistente, partiu para o trabalho.
    Assim que o líquido ganhou cores, pegou uma colher de madeira, mergulhou-a na banheira e levou-a à boca. Retirou-a apressadamente.
    - Mais pó! - exclamou.
    Dei-lhe outro pacote, que imediatamente Emílio despejou na banheira. O líquido que era azul, ficou esverdeado, depois foi amarelando e por fim virou roxo.
    - Bela cor! - admirou-se meu primo.
    A segunda etapa foi encher as garrafas. Primo Emílio comprara algumas dúzias de garrafas vazias. Ajudei-o, interessado, nessa tarefa. Mas o seu dia não acabou aí. Faltavam os rótulos. Tinha um maço deles, coloridos, vistosos, escritos em inglês. Professoralmente, Emílio ensinou-me o sentido de algumas palavras, como made, finest, scotland e muitas outras. Sua pronúncia provavelmente não era boa,  mas ele estava muito feliz.
    Por dois meses ajudei primo. Emílio a fabricar as bebidas e a encher as garrafas, como também a colar os rótulos. As vezes surgia uma cor tão confusa que ninguém em casa conseguia distinguir; aí o Emílio colava nas garrafas o rótulo do “Rum das Antilhas”. Essa bebida tinha muita saída como verifiquei mais tarde.
    Primo Emílio, pelo menos a princípio, deu sorte como industrial. A banheira estava sempre cheia e ele comprou centenas de garrafas vazias. Lembro que até pagou a meu pai o aluguel do quarto dos fundos,. o que causou a todos incrível surpresa. Aos domingos trazia à mesa um garrafão de vinho, não de sua fabricação, mas comprado num dos empórios do bairro. Renovou o guarda-roupa e deu de sair todas as noites, muito perfumado, com ares bacana.
    Certo dia, primo Emílio declarou:
    Vou mudar. Estou pensando em comprar uma casa nas Perdizes. Mas levo a banheira. Pago um conto por ela. 
    - Por um conto você pode comprar algumas banheiras novas - disse meu pai.
    - Eu sei, mas sou muito grato a essa banheira. Disse um conto. Pago já.
    - Já ?
    - Quero dizer, amanhã.
    Na manhã seguinte dois homens de chapéu apareceram em casa. Primo Emílio foi recebe-los de braços abertos. Mas não eram compradores. Ambos mostraram um distintivo na parte traseira da lapela e levaram o industrial, juntamente com um maço de rótulos de “Rum das Antilhas”.
    Durante três dias primo Emílio permaneceu na Polícia, dando explicações. Consta que o delegado simpatizou com ele, como todo mundo, e o deixou ir em liberdade com a promessa de que nunca mais fabricaria bebidas nacionais ou estrangeiras. Primo Emílio voltou para casa, mas não derrotado, como supúnhamos. Era um homem otimista e cheio de idéias.
     Eu dou um jeito - garantiu à mesa, ajeitando a gravata. - Neste mundo só não vence quem não quer. Em seguida, foi ao quintal e olhou demoradamente a banheira.
    - Vou vendê-la para o ferro velho - disse meu pai.
    - Eu disse que compro a banheira e não voltei atrás.
    - Para fabricar bebidas? Isso, não!
    - Tive outra ideia - comunicou, misteriosamente, antes de internar-se no quarto para meditar.
    No dia seguinte, primo Emílio saiu cedo para comprar um fole. Eu disse um fole. Quando lhe perguntaram para que queria aquilo, não respondeu. O certo é que estava em plena ação. Meu pai descobriu que ele mandara fazer uma grande placa de três metros de comprimento por dois de largura. A banheira arrastou para seu quarto, depois de fazer nela alguns consertos. Andou verificando o encanamento da casa e, sem nenhuma consulta, mandou ladrilhar parte de seu modesto quarto, ao mesmo tempo que trocava os vidros da janela por outros espessos e escuros. Para finalizar, descobriu uma tipografia no bairro e encomendou milhares de impressos.
    Todos em casa andávamos preocupados com essa movimentação, mas não foi preciso obriga-lo a falar.
    - Agora já posso me abrir, sócio - disse ele a meu pai.
    - O que está querendo dizer?
    - Preste atenção, sócio.
    - Antes me explique porque está me chamando de sócio?
    - Vou explicar.
    Quando ia explicar, tocaram a campainha. Eram carregadores trazendo a referida placa de três metros por dois. Fomos todos para a porta, curiosos, sabendo que ela explicaria tudo. Foi com assombro que meu pai leu: “Ao SULTÃO DOS BANHOS TURCOS - Reumatismo, artritismo, doenças da coluna, paralisias em geral - Duchas quentes e frias, segundo o moderníssimo processo Emilius”.
    - Podem pregar a placa na fachada - ordenou Emílio aos carregadores. E voltando-se a meu pai:
     - Pode dar uma gorjeta a eles, sócio?
    - De volta à mesa, alegre e realizado, mas ainda com apetite, Emílio falou dos milagres que os banhos turcos realizam na cura das doenças da circulação. Os extremos, o quente e o frio. têm tirado da cama pessoas entrevadas há anos. Ele lera tudo a respeito e não tinha dúvidas. Quanto ao processo Emilius, reconhecia que não passava dum charme, algo diferente, um sopro de ar frio na espinha, aplicado com o fole, que se não fizesse bem, mal também não faria.
    - Mas você pretende atender a seus clientes no quartinho do fundo? indagou minha mãe. Os doentes não querem comodidade, querem a cura. Você já fez alguma experiência?
    - Eu não, mas os turcos fizeram antes de mim. Séculos de experiência. Vocês já viram algum turco reumático? Digam lá. Já viram?
    - Não lembro - admitiu meu pai.
    - Então. Se tivesse visto, não esqueceria.
    Meu pai ainda resistia à sociedade, a despeito do dinheirão que podia ganhar com a casa de banhos.
   - E a licença, Emílio? Tem licença para abrir o estabelecimento?
    Primo Emílio levantou-se em meio à sobremesa, lembrando-se que precisava passar na tipografia, para apanhar os reclames, como dizia, para distribui-los pelas casas do bairro.
    Emílio sempre acreditou muito na publicidade e foi a primeira pessoa que ouvi dizer que “a propaganda é a alma do negócio”.
    Assim que primo Emílio saiu, fui à porta ver mais demoradamente a placa, que causava estranheza aos vizinhos, mesmo porque a falta de água era o grande problema da rua. A tardinha ele voltava, já tendo distribuído a maior parte dos seus folhetos. Devia estar entusiasmado, pois não o vira ainda fumar charuto, o que ele fazia gloriosamente.
    Na manhã seguinte, ao contrário do seu hábito, Emílio levantou cedo e pôs-se a andar pela casa, talvez à espera do primeiro cliente. Esperou em vão o dia todo, passeando, impaciente.
    Dois dias mais tarde resolveu sair, lembrando que o dono do armazém arrastava penosamente uma perna. Tentou convencê-lo a um tratamento de doze banhos. Embora cada banho fosse baratísismo, o homem preferiu continuar com sua perna paraplégica. Soubemos que o Emílio teve uma briga feia com ele e que só não o esmurrou, para convencê-lo, porque devia uma continha.
    Nenhum cliente apareceu na primeira semana. Na segunda apareceu um, mas este mudou de ideia ao ver o enorme fole que produzia jato de ar frio na espinha. Ao completar-se o mes já estávamos todos certos de que o empreendimento de Emílio fracassara. Ele até já cuidava da retirada da tabuleta, quando um carro parou diante de casa e dele desceu sua grande esperança. Desceu não, foi descido. O que eu vi foi um velhinho, carregado pelos braços robustos de dois netos. Largaram-no numa poltrona da sala, o ancião segurando na mão trêmula um dos folhetos do Emílio.
    - Por favor, quero ver o dr. Emílio.
    Minha mãe, assustada com o estado do enfermo, e para evitar complicações, ia dizendo que o dr. Emílio fora viajar, quando ele irrompeu na sala com um sorriso capaz de incutir confiança e certeza de cura em todos os paraplégicos do mundo.
    - Aqui estou eu! - exclamou, como se dissesse: aqui está a salvação. - Qual é seu caso? Ah, as pernas! Arregace as calças para examiná-lo.
    - O exame foi breve.
    - O que acha do caso, doutor?
    - É sopa!
    - Sopa?
    - Sopa.
    Em seguida, carregando-o pelos braços, Emílio levou o cliente ao quarto dos fundos, que se lamuriou e grunhiu durante todo o trajeto. Na sala, à espera, ficaram os netos, meu pai e minha mãe que rezava disfarçadamente. Eu fui até o quintal, perto do quarto, pois com meus doze anos era o único na família que acreditava nos milagres que o Emílio podia realizar com os banhos, o vapor e o fole.
    No começo o velhinho parecia estar resistindo bem ao sacrifício. A água quente talvez o confortasse. Mas as coisas pioraram quando chegou do armazém aquela imensa pedra de gelo. Então o idoso cliente passou a gemer cada vez mais alto. Um dos netos bateu à porta, assustado, mas Emílio respondeu que “era assim mesmo e que tudo corria bem”. No entanto, os gemidos transformaram-se em gritos na aplicação ,da ducha de ar frio na espinha. Pensei que o velho bateria as botas, esticaria as canelas, iria para o beleléu. E parece que era essa a impressão de todos, inclusive da vizinhança.
    Quando a ambulância chegou, o cliente do Emílio não gritava nem gemia mais, porém estava rígido e gelado. O primo, ainda segurando o fole, garantia aos netos do infeliz que ele resistiria melhor ao segundo banho. E enumerava ilustres paraplégicos que, dizia, frequentavam com bons resultados a sua clínica. Mas eles não quiseram ouvir nada, e, além de não pagar o banho, ainda insultaram o primo Emílio.
    - É o que dá quando se lida com ignorantes - lamentou o sultão dos banhos turcos. - Mas se quiserem voltar, que não contem mais comigo!
    Nunca vi ninguém mais triste que o primo Emílio como no dia em que retiraram a tabuleta da frente de casa. O mundo desabava para ele, sua última esperança que naufragava. Desiludido, arrumou as malas para voltar ao interior, mas não voltou. Ficou por lá, tentando bolar novas idéias, fundindo a cuca o dia inteiro; Cansada de sua presença, minha mãe lhe pediu a cama, pois a empregada não queria dormir mais no divã. Ele devolveu a cama, dizendo:
    - Não faz mal, durmo na banheira.
    Devia gostar dela, já que jamais levantava antes do meio dia.
    Lembro que foi nas vésperas do Natal, o primo já muito desmoralizado na família, quando chegou pelo correio um cartucho envolto em papel de seda. Eu, que o recebi do carteiro, fui ao seu quarto. O primo roncava dentro da banheira, vestindo algo que já fora um pijama. Como não tinha mais dinheiro para pintar os cabelos, eles haviam embranquecido. Notei que sua velha palheta servia agora de cinzeiro. E a inseparável gravata não tinha mais cor, como o “Rum das Antilhas”. Acordei o primo com dificuldade, e entreguei-lhe o cartucho. Emílio, ainda sonolento, preferiu dormir mais, antes de abri-lo. Íamos nos sentar à mesa para o almoço quando ele surgiu. impetuosamente na sala sorrindo histericamente a brandir o cartucho no ar. 
    - O meu diploma! Passei nos exames! Sou doutor! Ouviram? Sou doutor!
    - Era um belíssimo e solene diploma, nitidamente impresso, escrito com letras góticas, selado, carimbado e cheio de assinaturas dos dois lados.
    - Vejam, está tudo em ordem - disse o primo. - Dentro da lei, como sempre exigi as coisas.
    Meu pai, que não levava o primo a sério, teve que dar a mão à palmatória.
    - É mesmo um turuna esse Emílio! Doutor por correspondência! Quem diria? 
    - E me formei com boa nota! Nove e meio. Nove e meio é nota e mais alguma coisa, homem!
    A alegria do Emílio fez daquele Natal uma data inesquecível. Correu ao mercado e encomendou um peru com dinheiro que meu pai lhe adiantou, o que não tirava o valor do presente. Fez mais: em nossa conta comprou enfeites natalinos e armou uma belíssima árvore num canto da sala. Nem Papai Noel movimentou-se tanto quanto o Emilio naqueles dias. Quanto ao diploma, mandou fazer uma sólida moldura dourada e dependurou-o no corredor para que todos o vissem, quando passassem. A mesma tipografia que imprimiu os volantes de propaganda do “sultão dos banhos turcos” rodou mil cartões de visita: “Dr. Emílio de tal, arquiteto”.
    Aquele resto de ano, passou-o fazendo planos, diante duma prancheta de arquiteto que mamãe lhe deu.  Achava-se com fôlego suficiente para revolucionar a arquitetura e ganhar ,rios de dinheiro. Alguns desses projetos explicou detalhes, entre eles o de um imenso hospital para a classe média que ele considerava a grande injustiçada. Na festinha de fim de ano, à meia-noite, enquanto as crianças, na rua, martelavam os postes e as sirenes tocavam, fez solenemente uma revelação íntima e comovida: primo Emílio ia casar.
    Vocês ignoram, mas há vinte anos sou noivo duma boa moça lá de minha cidade. Suponho que ela esteja um pouco cansada de esperar, mas agora que o dinheiro vai entrar, caso-me com ela. É a hora de criar juízo!
    Essa revelação arrancou lágrimas da família e convenceu meu pai a ir comprar às pressas mais algumas garrafas de vinho porque o momento exigia. Nos primeiros dias de janeiro, primo Emílio já com um anelão de doutor no dedo, aconteceu aquilo. Isto é, uma notícia no jornal, na última página, dedicada ao noticiário policial.
    A notícia aludia a uma verdadeira fábrica de diplomas do curso superior, localizada no Rio de Janeiro, cujo reitor já se encontrava nas grades. Vinha depois uma lista de diplomandos que haviam caído no conto, incluindo o nome do primo Emílio.
    Meu primo foi o último em casa a ler a notícia. Ninguém tinha coragem de mostrar-lhe o jornal. Mas era necessário, antes que ele se empregasse como arquiteto numa construtora e acabasse preso também. Emílio bateu os olhos na página, entendeu e caiu sentado. Permaneceu algum tempo mudo e surdo às palavras de consolo que a família lhe dirigia. Depois, levantou-se e foi para o quarto dos fundos.
    - Será que ele vai se matar? - receou minha mãe.
    Aliás, era esse o temor de todos. Mas ele não se matou. Tendo encontrado no quarto um resto de pó colorido e uma garrafa de álcool, fabricou em pouco tempo uma quantidade de bebida capaz de obter o efeito desejado. Ao voltar para a sala, onde todos o esperavam, suas pernas cambaleavam e sua cabeça parecia dar giros. Quisemos que sentasse, mas preferiu circular em torno da mesa. Numa das voltas, perdeu o equilíbrio e caiu. Ameaçou vomitar, já sentado no divã. Pusemos um jornal no chão. Ao ver o jornal, não quis mais vomitar. Pediu café. Veio o café, não o tomou. Deu um pontapé na prancheta.
    - Adeus, vou embora - disse.
   - Você não pode andar assim pela rua - ponderaram.
   - Nada mais me segura aqui. Volto para o interior e me caso com Joaninha.
    - Joaninha? Só então soubemos o nome da paciente noiva.
    - Fique - pediu meu pai.
    - Não fico - respondeu, decidido, arrotando o inconfundível “Rum das Antilhas".
    - Fique ao menos até amanhã.
    - Até amanhã?
    - Amanhã você já pode ir.
    Emílio concentrou-se para sair de sua indecisão. Depois dum longo silêncio, resolveu:
    - Já que insistem, hoje fico, amanhã eu parto.
    Primo Emilio era homem de palavra: ficou. Apenas se esqueceu da segunda parte da promessa. Não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia as malas e dizia o seu adeus. Soubemos, mais tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata. O mundo é assim mesmo.

Nota do bloguista : nos anos 60 e 70 eram muito populares os cursos profissionalizantes por correspondencia. Havia cursos prá tudo, corte e costura, eletrônica, programação de computadores, secretariado, contabilidade, musica, etc. O lider deste mercado de educação a distancia era o Instituto Universal Brasileiro, que afirma ter ministrado mais de 1,5 milhões de cursos. Os cursos eram oferecidos em revistas de histórias em quadrinho, e a matricula era feita preenchendo se um cupom. Nada era exigido do matriculando (exceto, é claro, pagamento), bastava saber a ler, não se exigia nenhum pré requisito. Alguns anúncios tinham testemunhais de alunos contando maravilhas, histórias de sucesso e muito dinheiro no bolso.



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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Natal na barca–Lygia Fagundes Telles

Natal na barca - Lygia Fagundes Telles


Não quero nem devo lembrar aqui porque me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

    Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanha-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.


    - Tão gelada - estranhei, enxugando a mão.


    - Mas de manhã é quente. 

   Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

- De manhã esse rio é quente - insistiu ela, me encarando.

- Quente?

- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas ?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:      - Mas a senhora mora aqui perto?

    - Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje... 
    A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a nina-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.
    - Seu filho?
    - É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre. Mas Deus não vai me abandonar.
    - É o caçula?Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
    - É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico, quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito . . . Tinha pouco mais de quatro anos.
    Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfrega-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
       - E esse? Que idade tem?
    - Vai completar um ano.  E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:
    - Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado. . . A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.
    Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembrancas, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los. 
    - Seu marido está à sua espera?

    - Meu marido me abandonou. 
     Sentei-me e ,tive vontade de rir, Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema. dos vasos comunicantes.
     - Há muito tempo? Que seu marido...
    - Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito . Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino .e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos. Aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez andar.
     - A senhora é conformada.
    - Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
    -  Deus - repeti vagamente.
    - A senhora não acredita em Deus? 
    - Acredito - murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas.
    Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:
    - Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que sai pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele. . . Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto . . . Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
    Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto.. Em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei a olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelace as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a nina-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
    - Estamos chegando - anunciou.Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

    - Chegamos ! . . . Ei ! chegamos! 
    Aproximei-me evitando encara-la.
 - Acho melhor nos despedirmos aqui  - disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

- Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
    - Acordou?! 
    Ela sorriu.
    - Veja.
    Inclinei-me. A criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. 
- Então, bom Natal ! - disse ela, enfiando a sacola no braço.
    Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
    Conduzido pelo bilheteiro. o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio,. E pude imagina-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

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Lygia Fagundes Telles


Roupa no coradouro–Jose J. Veiga

Roupa no coradouro - José Veiga


Fui com meu pai até depois da ponte e ajudei-o a tocar os dois cargueiros ladeira acima. Todo o tempo ele ficou falando no que eu devia fazer enquanto ele estivesse fora, obedecer minha mãe em tudo, não deixá-la carregar vasilhas pesadas de água, rachar a lenha que fosse necessária, mas ter muito cuidado para não bater o machado no pé; não demorar na rua quando ela mandasse dar algum recado ou fazer compra, e principalmente não andar de farrancho na beira do rio com outros meninos maiores, porque isso assustava muito minha mãe e ela não podia passar sustos. Eu não dizia nada, só ouvia e batia com a cabeça, no fundo eu não estava triste com a viagem de meu pai, era a primeira vez que ele ia ficar longe de nós por algum tempo e eu estava ansioso por ver como seria a vida em casa sem ele para fiscalizar tudo. Quando passamos a ladeira depois da ponte e os cargueiros tomaram a estrada carreira eu pedi a bênção a meu pai, ele pôs a mão na minha cabeça e disse que Deus me abençoasse e eu voltei quase correndo.
    Mamãe estava sentada no banco da varanda ralando cidra com o ralo e a travessa no colo, ela disfarçou mas eu vi que ela andara chorando. Sentei perto para conversar um pouco e esperei que ela começasse mas ela não dizia nada, ficava muito atenta ralando os pedaços de cidra, de vez em quando passava o dedo grande na testa para afastar o cabelo e suspirava. Perguntei quando era que meu pai ia voltar, ela disse que logo que vendesse toda a mercadoria. Perguntei por que era que ele tinha deixado o ofício para ser mascate, ela zangou-se  e respondeu que eu não devia chamá-lo de mascate, com certeza isso já era caçoada de outras pessoas, mas eu devia repelir quando ouvisse; ele ia apenas tentar a sorte no comércio, o ofício não estava dando, ninguém queria mais fazer nem reformar casa, era só remendo, e meu pai não podia ficar parado. Quando ele voltasse com a mercadoria toda vendida haveria dinheiro para as despesas até que a situação melhorasse.
    Eu não estava muito interessado na volta de meu pai por enquanto, só queria que chegasse de noite para poder brincar na rua até tarde sem ficar com medo de ser repreendido ou mesmo de apanhar; por isso, quando ela perguntou se eu estava com fome eu disse que sim e fui logo para a cozinha, e já que eu estava remexendo nas panelas, para não perder o trabalho fui comendo o que havia - mandioca frita, carne assada e arroz sobrado do almoço, e no armário uma tigela com doce de batata. Quando acabei minha mãe perguntou se eu era capaz de ir em casa de D. Bita ver se ela podia mandar o dinheiro dos frangos que levara fiado desde o mês passado, não me mandou ir como fazia meu pai, perguntou apenas se eu era capaz de ir. Eu disse que ia quando acabasse de consertar a minha arraia, que perdera o rabo embaraçado em um coqueiro; e com aquilo de preparar grude, cortar papel e fazer as argolas passei o resto do dia e me esqueci do dinheiro. No dia seguinte ela falou de novo no assunto, mas aí eu tinha combinado uma pescaria, precisava tirar minhoca e trocar a vara do anzol, e acabei também não indo. Não sei se foi castigo, mas o certo é que passei a tarde inteira com o anzol na água e só peguei uns dois ou três lambarizinhos barrelas, que achei melhor dar para o Ciríaco juntar com os dele que eram mais. Também não me importei, porque assim minha mãe não precisava saber que eu estive pescando.
    Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. Eu. ia à cozinha, lavava os pés mais ou menos, às vezes nem lavava, passava um pano, tomava o leite com farinha e ia dormir. Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa e outra pela casa, catando feijão, moendo café para a manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar.
    Quando o circo chegou aí é que eu não tinha mesmo tempo para nada, nem para conversar direito com minha mãe. De manhã cedo era aquela correria de lavar o rosto, tomar café e sair depressa para a escola, quando voltava era só engolir a comida e ir ajudar dar água aos animais e depois sair com os outros meninos carregando o quadro negro pelas ruas, tocando buzina e gritando para chamar a atenção do povo. A gente trabalhava para ganhar entrada todas as noites, mas mesmo que não ganhasse eu acho que a gente trabalhava assim mesmo só para poder ver o circo por dentro. Com isso eu não tinha tempo nem para encher as vasilhas de água lá de casa, e muitas vezes quando eu passava com o quadro negro pelo largo eu via minha mãe carregando um balde cheio em cada mão, ou parada com outras mulheres no chafariz esperando a vez. Da primeira vez eu fiquei com vergonha e procurei me esconder atrás do quadro, mas depois me acostumei e não sentia mais nada. Um dia, quando eu estava deitado relembrando tudo o que eu tinha visto no circo, tive pena de minha mãe estar perdendo tudo aquilo e achei que ela devia ir nem que fosse uma vez, ao menos para ver o palhaço e o salto da morte, o palhaço tinha uma cachorrinha chamada Violeta que ele vivia puxando para aqui e para ali, e bastava ele gritar Violeta para todo mundo cair na risada. No dia seguinte eu convidei minha mãe, mas ela disse que era melhor não gastar o pouco dinheiro que meu pai tinha deixado para as despesas. Eu disse que eu podia vender minha galinha para ela não ter que tocar no dinheiro das despesas, ela pensou um pouco, eu vi que estava satisfeita com o convite, mas depois sacudiu a cabeça e disse que se ela fosse ia ficar o tempo todo pensando em meu pai, e quanto mais estivesse gostando mais ia desejar que ele também estivesse lá, e assim era melhor não ir.
    Pensei que quando o circo fosse embora eu ia ter mais tempo para ajudar em casa, mas aí inventamos de imitar os trapezistas, assentamos trapézio no quintal de Ciríaco, lá tínha muita corda e laço por causa das vacas que eles criavam para vender leite, e passávamos o tempo todo exercitando, destronquei o pé e andei muitos dias mancando, mas o Marquim foi pior porque quebrou o braço e entortou o pescoço, do braço ficou bom mas do pescoço dizem que não fica. Também ele foi o mais afoito, foi o único que teve coragem de tentar o salto da morte.
    Foi logo depois disso que minha mãe adoeceu. Ela estava na cozinha fazendo o almoço mas teve que parar e deitar na rede para descansar, disse que estava com um pouco de febre e tontura, quando pisava não sentia o chão. Ela perguntou se eu podia ir na farmácia comprar umas cápsulas e voltar já, me mandou apanhar o dinheiro no potinho embaixo da santa, eu fui mas no caminho encontrei uns meninos brincando de pião, por sorte eu estava com o meu no bolso, entrei no meio deles e me esqueci da hora. Cheguei em casa arrependido de ter demorado, mas felizmente D. Ana Bessa estava lá, tinha acabado de fazer o almoço para mim e estava dando um chá para mamãe no quarto. Eu pensei que ela gostava de mim, ela estava sempre lá em casa ou mamãe na casa dela, uma vez ela até me deu uma botinha de abotoar. no dia dos meus anos; mas quando acabou de dar o chá para mamãe ela veio à cozinha onde eu estava fazendo o meu prato, ficou me olhando da porta e sem mais nem menos disse que eu tinha feito um papel muito feio, que minha mãe estava muito doente e ela ia me vigiar, se eu não deixasse a vadiação ela ia contar tudo a meu pai quando ele chegasse. Eu fiquei passado, era a primeira vez que ela falava assim comigo, e se a fome não fosse muita eu teria até perdido a vontade de comer.
Depois de almoçar eu achei que devia lavar o prato eu mesmo para D. Ana não ter o que falar, arrumei as panelas no fogão e fui ao quarto ver minha mãe. Ela estava dormindo mas não parava de virar a cabeça de um lado para o outro no travesseiro. Fiquei lá um pouco mas como o quarto estava escuro e quente resolvi ir brincar no quintal, subi na mangueira grande e fiquei lá em cima enganchado numa forquilha descansando. e olhando os outros quintais. Seu Amâncio estava roçando o matinho perto da horta, e quando chegou junto da cerca pegou uma caçamba velha do chão e jogou para o quintal do Seu Aprígio. Eu achei aquilo engraçado porque dias antes eu tinha visto Seu Aprígio jogar aquela mesma caçamba para o quintal de Seu Amâncio; no entanto, quem os visse conversando de tarde em suas janelas não saberia que eles tinham essa picuinha por cima da cerca. D. Ana Bessa ia voltando da horta com um manojo de ervas na mão, parou debaixo de um limoeiro, olhou para os lados, ergueu um poucoa saia na frente fazendo roda, afastou as pernas e ficou lá quieta olhando para o tempo. Imagine se ela soubesse que eu estava vendo.
    Pensei em minha mãe sozinha no quarto e resolvi descer para ver se ela queria alguma coisa. Ela estava acordada, brincando com a ponta das tranças. Quando me viu entrar no quarto começou a sorrir mas fechou os olhos e gemeu baixinho; e quando abriu os olhos de novo ficou me olhando demorado, ainda querendo sorrir, depois perguntou se eu já tinha jantado. Achei esquisito porque fazia pouco mais de uma hora que eu tinha almoçado, e também a voz dela saiu diferente. Ela me pediu para sentar na beira da cama, eu sentei, ela pegou a minha mão e ficou alisando. Depois virou o rosto para a parede, a mão dela muito quente na minha, até fazia a minha suar, quando vi ela estava chorando. Fiquei tão assustado que tive vontade de sair correndo para chamar D. Ana, procurei soltar minha mão devagarinho mas não tive coragem, ela me segurava com força. Eu queria dizer muitas coisas para ela, coisas bonitas e carinhosas, mas não achei o que dizer e acabei chorando também.D. Ana entrou sem fazer barulho, e do jeito que me olhou eu vi que ela era de novo minha amiga. Ela sentou na beira da cama de frente para mim, debruçou em cima de minha mãe e pôs a mão na testa dela, depois debaixo do queixo.
    - Muita febre, coitadinha - disse ela. - Matei um frango pra fazer um caldinho pra ela. Acho bom você chamar o Dr. Vergílio. Eu fico com ela enquanto você vai. Diz a ele pra fazer o favor de vir logo.
    Se eu não tivesse parado na porta da venda para ver o mico comer amendoim eu teria alcançado o Dr. Vergílio ainda em casa. Tinha muita gente em volta olhando e rindo, eu quis ver também, o dono jogava um amendoim o mico pegava, descascava e comia e punha as cascas na cabeça e ficava balançando o corpo como se dançasse. Enquanto eu estava rindo como todo mundo alguém tirou o meu boné e jogou para o mico. Primeiro ele examinou o boné de todo jeito, virou do avesso, esfregou no corpo como se fosse sabão, depois botou na cabeça com o bico para trás. Eu quis tomar o boné mas o mico não deixava, eu esticava a mão ele gritava e ameaçava morder, e isso foi o que o povo achou mais engraçado, só eu é que não ria, eu queria o meu boné para ir chamar o Dr. Vergílio, minha mãe estava doente e não podia esperar, comecei a chorar e as risadas não paravam, apanhei uma pedra pra jogar no mico muitas mãos me seguraram, o dono do mico apanhou o boné e jogou para mim.
     Faltavam umas duas casas para chegar na farmácia quando vi o Dr. Vergílio montar o cavalo e sair com a espingarda cruzada nas costas. Eu podia ter corrido e gritado ele que ia depressa mas o susto de não alcançá-lo foi tão grande que na hora não me lembrei, só depois que ele dobrou a esquina da rua que desce para o rio foi que pensei nisso, mas aí não adiantava mais correr.
    Cheguei em casa chorando e disse a D. Ana que o doutor tinha ido para a espera. Ela pôs as duas mãos no rosto e disse “Valha-nos Deus!”, depois xingou muito o Dr. Vergílio, e quando se acalmou alisou a minha cabeça e disse que eu não devia chorar que a culpa não era minha mas daquele homem imprestável. Eu parei de chorar e sentei na canastra onde minha mãe guardava a nossa roupa, mas de cada vez que eu lembrava da minha parada na venda eu chorava mais. D'. Ana pensou que era por eu não ter encontrado o doutor mas era porque eu sabia que o imprestável era eu, como meu pai às vezes dizia.
    Depois que D. Ana trouxe o caldo para mamãe eu disse que achava bom eu voltar à farmácia para ver se o doutor já tinha voltado. Ela disse que eu ia perder a caminhada, se ele tinha ido esperar só voltaria muito tarde da noite ou de madrugada. Eu quis ir assim mesmo, podia ser que ele tinha esquecido alguma coisa e voltado para apanhar; e antes que ela fizesse qualquer reparo eu fui saindo depressa. Dessa vez não parei em parte nenhuma, e quando cheguei na farmácia fiz de conta que não sabia de nada. D. Rute estava sentada atrás do balcão dando mamar ao filho menor. Perguntei pelo Dr. Vergílio, ela disse que ele tinha ido do outro lado do morro ver um doente. Perguntei se depois de ver o doente será que ele não ia fazer espera, ela disse que não; ele tinha levado a espingarda mas era só por costume, e para o caso de encontrar alguma perdiz no caminho. Então eu disse que era para ele fazer o favor de ir lá em casa logo que chegasse porque mamãe estava muito doente. Ela quis saber qual era a doença, eu disse que era febre; ela perguntou se eu não queria levar umas cápsulas para ir tentando, eu disse que já tinha levado mas que não adiantou.
    Eu não saí mais de casa naquele dia nem no outro. Aos poucos a casa foi enchendo de gente, mulheres mais, umas com filhos pequenos, outras com meninos já grandinhos, que ficavam me amolando para brincar. Mulheres que eu só conhecia de vista e achava antipáticas mexiam em nossa cozinha, faziam mingau para os filhos nas vasilhas de mamãe, ou café para as visitas.
    Passou a noite inteira e o Dr. Vergílio não apareceu. D. Ana já estava desesperada, e no dia seguinte logo cedo ela mesma foi à farmácia indagar. D. Rute não sabia de nada, achava que de onde estava ele devia ter tido algum outro chamado. D. Ana deixou recado e passamos mais um dia inteiro na mesma aflição. Tarde da noite ele chegou, pôs todas as mulheres para fora do quarto, eu quis ficar ele não deixou. Mais tarde ele chamou D. Ana e tornaram a fechar a porta; e quando finalmente saíram do quarto eu vi que ela estava chorando, muito disfarçado mas estava. O doutor aceitou uma xícara de café que lhe ofereceram, e enquanto. Bebia soprando disse que era bom mandarem chamar meu pai, mas ninguém sabia onde ele estava. Já na porta o doutor disse que precisava de alguém para trazer uns remédios que ele ia preparar na farmácia, eu disse que eu ia, D. Ana não deixou e uma das mulheres se ofereceu. Eu queria ficar sozinho num canto mas havia gente por toda parte, só na rede da varanda tinha três meninas se balançando e rindo espremido, D. Ana teve de ralhar com elas por causa do barulho que faziam.
    Eu estava sentado na canastra no quarto de minha mãe, o único lugar que achei para sentar, quando o padre chegou. Que susto eu levei ao vê-lo entrar com o livrinho de mas na mão e já murmurando orações, tive vontade de manda-lo embora mas faltou coragem, eu estava acostumado a ser muito obediente perto dele, e até de pedir a bênção, mas desta vez não pedi. Ele fez sinal para eu sair do quarto eu não liguei, tiveram que levar-me à força, fui chorando alto, sem nenhum acanhamento. Uma vizinha quis me levar para dormir na casa dela, eu gritei que não ia, eu sabia que minha mãe estava morrendo e não queria ficar longe dela. Levaram-me para a cozinha e me deram uma xícara com calmante, mas eu só parei de chorar quando vi que muita gente estava chorando também, principalmente as meninas.
Depois que o padre saiu D. Ana sentou comigo na rede, puxou minha cabeça para o ombro dela e ficou alisando o meu cabelo sem dizer nada, e foi bom porque eu não queria que falasse comigo. Quando acordei eu estava sozinho na rede, meu pai ajoelhado na minha frente, com as mãos nos meus joelhos. Abracei o pescoço dele, ele levantou abraçado comigo e ficamos os dois chorando. Depois ele me soltou no chão e disse que devíamos ir ao quarto despedir de mamãe e pedir perdão a ela. Ela estava com os cabelos soltos no travesseiro, e tão corada e bonita que pensei que não estava mais doente e que ia se levantar quando nos visse; mas chegamos bem perto da cama e parece que ela não nos viu porque continuou alisando a bainha do lençol e falando palavras que não entendi. Chamei-a duas vezes e ela nem me olhou, e quando segurei a mão dela para beijar ela disse:
    - Não, não! Meu filho! Chamem meu filho! Coitado de meu filho, vai ficar sozinho.
    Meu pai ajoelhou-se no chão e encostou a testa no cabelo de minha mãe, eu ajoelhei também e ficamos lá chorando. Alguém quis nos tirar de lá, D. Ana não deixou e mandou que as outras pessoas saíssem do quarto. Quando dei fé, meu pai tocava o meu braço e dizia:

     - Sua mãe faleceu. Reze por ela.
    No dia seguinte depois do enterro nós estávamos na varanda conversando, D. Ana tinha trazido uma bandeja de café com bolo, meu pai só tomou o café e fumava sem parar, suspirando a todo instante. Meu tio Lourenço estava lá, tinha vindo para o enterro, e não parava de falar em sua lavoura, no trabalho que estava tendo com os camaradas, na casa nova que começou a fazer mas teve de parar por falta de um bom carapina, o que arranjou bebia muito e não ligava ao serviço. Aí ele convidou meu pai para passar uns tempos no sítio e ajudar nas obras, seria bom para mim também; meu pai parece que não ouviu, e tio Lourenço teve que repetir o convite. Meu pai fez como quem acorda e disse que ia pensar; mas eu sabia que ele não ia aceitar, eles já tinham brigado uma vez e meu pai disse que, nunca mais trabalhava para tio Lourenço.
    Enquanto tio Lourenço falava, e os outros ficavam olhando para o chão ou assoviando baixinho entre os dentes, eu ia pensando como era que ia ser a nossa vida sem mamãe. Eu sabia que ela estava morta, eu tinha visto levarem o caixão com ela dentro, mas não queria acreditar que nunca mais eu ia vê-la. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Repeti as palavras em pensamento, elas doíam dentro de mim mas eu queria sofrer, era só o que eu podia fazer por minha mãe agora. Tio Lourenço deve ter notado que eu estava chorando, porque levantou e começou a falar comigo, perguntou como eu ia na escola, se eu já sabia o que era que ia ser quando crescesse. Baixei a cabeça para não responder, sabia que se respondesse a voz não saía direito. Aí ele disse para meu pai que eu devia ficar o tempo todo pelos cantos pensando em coisas tristes, que era preciso sacudir o corpo; e para mostrar como era que meu pai devia fazer comigo ele me mandou soltar o cavalo dele que estava amarrado no pátio e toca-lo para o quintal.
    O cavalo estava amarrado numa argola no pé da escada da cozinha. Levei-o pelo cabresto até o portão do quintal, abri portão, tirei o cabresto e toquei o cavalo com uma palmada na anca para ele saltar o degrauzinho. Fechei o portão com a tranca, enrolei o cabresto e voltei.
    Foi aí que eu vi as roupas estendidas na grama, vestidos, blusas e saias de minha mãe que ela mesma deixara ali para corar. O luar batia nas roupas e as clareava com estranha nitidez. A blusa de bordado que minha mãe usava em dias de calor, a saia de rosas que D. Ana achava bonita. Foi como se eu a visse pela casa varrendo e limpando, ou na cozinha mexendo as panelas, sempre empurrando os cabelos para trás com o dedo grande para não toca-los com a mão engordurada. Não pude me demorar mais porque meu pai me chamava da janela e eu não quis contraria-lo logo nesse dia tão triste. Mas quando cheguei no alto da escada olhei mais uma vez a roupa estendida e fechei a porta bem devagar para demorar mais tempo olhando.


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Jose J. Veiga

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domingo, 29 de novembro de 2015

Minha estação de mar-Domingos Pellegrini Jr.


Minha estação de mar - Domingos Pellegrini



Quando eu tinha 10 anos, o ano tinha mais de quatro estações, e todas elas ficavam nas minhas mãos. A estação dos piões deixava um anel caloso no fura-bolo, onde a fieira apertava, e um furo na unha do dedão, onde o prego do pião girava até esquentar. A estação das búricas marcava o nó do dedão, com um calo grosso, rachado igual terra seca. Logo começava a estação das rolimãs, e as rachaduras desse calo enchiam de graxa, ficavam ali entupidas até a estação das mangas. Então crescia na mão o limo das mangueiras, uma placa visguenta. Depois, a mão fedia: na estação dos papagaios eu vivia com alho no bolso; era só esfregar no dedo e segurar linha de papagaio alheio, dali a pouco despencava com a linha roída. Na estação do "bafo" a mão criava calos nas bordas, e acabava com cheiro de pena queimada, de tanta cuspida pra grudar as figurinhas. Depois a estação do "bete", a das tampinhas, a dos saquinhos de areia, todas lavrando cortes, calos e cheiros nas mãos, além do calo que uma caneta deixa no pai-de-todos quando tem que copiar, na escola, duzentas vezes uma frase.

Naquele tempo a escola era a única prisão que eu conhecia. Mas o pai comprou um carro e,

depois do passeio inaugural com minha mão avisando de todas as placas e esquinas, ele anunciou na janta:

— Este ano vamos tirar um mês na praia.

Eu conhecia o mar como uma lagoa grande, distante e sem graça nas figurinhas, onde aparecia às vezes verde e às vezes azul. Agora íamos conhecer o mar em pessoa, ia começar uma nova estação onde entravam todos — o pai, a mãe,Alice, eu e a Linalva, nossa empregada que já vira o mar de passagem quando viera do Norte. A estação do mar me encheu a cabeça. O pai começou a falar de ondas que rebentavam e a gente mergulhava dentro. Eu não conseguia imaginar mas comecei a achar ótimo. A mãe ia tirando a mesa e, a cada vez que vinha da cozinha, lembrava os perigos do mar e dava conselhos. Sim, o mar devia ser uma coisa ótima. E o pai avisou, bicando a xícara quente de café: partida dali a três dias, todo mundo que se preparasse.

Não me preparei, mas me acordaram no dia marcado, às cinco da madrugada, com tudo preparado para mim. Nem tive tempo de perguntar por que levantar tão cedo se íamos passear; a mãe e o pai distribuíam ordens. Eu devia levantar logo e me lavar, escovar os dentes e trazer a escova. Devia comer pão com manteiga, café com leite, um ovo cozido e uma banana, mesmo que não tivesse fome. Ninguém ia ficar parando na estrada pra eu comer. E ninguém ia ficar parando antes de Ibiporã pra eu urinar, então fui urinar e quase durmo de novo na privada. Mas ninguém ia ficar esperando a vida inteira, bateram na porta, batiam portas de armários, fechavam malas, enchiam sacolas. Coma logo isso que seu pai já levou as malas. Cadê a bolsa, alguém viu a bolsa? Você tem certeza de que esse carro agüenta? Desliga esse rádio, moleque, rádio de carro só com o motor funcionando. Enfia esta blusa que ainda é madrugada; não quero saber, enfia logo. Não vamos esquecer de desligar a luz.Não seria melhor fechar também o registro da água? Vai pro teu lugar, moleque, lá atrás, sim senhor.Tira o pé do banco, não abre o vidro que dá dor de ouvido.

E assim partimos para o mar.

Dormi e acordei com o sol, as pernas querendo esticar e uma zoeira no ouvido. Alice acordou logo e brigamos nem lembro por quê, então ela passou para o banco da frente, junto da mãe, e eu fiquei sem ter o que fazer. Passavam os mais compridos canaviais e cafezais do mundo, comecei a empurrar os bancos da frente com os pés, mas não podia. Comecei a tirar fiapos do cochinil, mas não podia. Examinei o cinzeiro por dentro e por fora várias vezes, comi ovos cozidos e chupei laranjas, descascadas pela Linalva porque eu podia me cortar com a faca. Quando lembrei do rádio, a mãe falou logo que não suportava rádio em viagem, e o pai avisou que não ia parar pra erguer a antena, de modo que chupei mais umas laranjas e descobri que o tapete de borracha podia virar um megafone, mas não podia; de modo que descasquei mais um ovo com todo cuidado pra não triscar a clara e comi só a gema. Descobri tudo que não se pode fazer num carro. Ler chapas, por exemplo.

Quando li a chapa do primeiro carro na frente, a mãe aproveitou pra testar minha visão em comparação com a da Alice. Depois de umas duas ou três chapas, achou que eu e a Alice

enxergávamos a mesma coisa na mesma distância, e que devíamos ter puxado os olhos do pai dela, que já estava caduco sem nunca usar óculos. Continuei a ler as placas em voz alta, repetindo a mesma placa enquanto o pai não podava o carro da frente, até que falou que aquilo já tinha enchido e sugeriu que eu lesse uma vez cada placa, e só. Não passou muito tempo e aquilo também encheu todo mundo, mas a Linalva sugeriu que eu podia ler as placas mentalmente quantas vezes quisesse. Mas isso logo me encheu.

Quando descobri que só podia ficar ali sentado, também descobri que estava na segunda prisão da vida, com a mãe no lugar da professora apontando as paisagens e outras coisas bonitas que o mundo tem mas ninguém para pra ver direito. O pai só foi parar quando a Alice realmente se irmanou comigo pela primeira vez na vida. Ficamos os dois com uma coceira que a mãe logo identificou como formiga na bunda ou foguinho no rabo.

Esticamos as pernas, urinamos e tomamos guaraná num bar de posto de gasolina, o pai botou gasolina e voltamos à prisão. Demônios devem rondar os postos de gasolina, porque naquela viagem a mãe garantia que eu sempre ficava com o demônio no corpo depois que parávamos num posto.

Quando a situação ficou infernal dentro do carro tive que reconhecer: realmente o pai pararia para dar um jeito em mim se eu continuasse encapetado. De maneira que resolvi comer mais um ovo, mas não podia porque estava chegando a hora do almoço. Laranjas ainda podia, até que o pai ficou cheio de abrir o vidro pra eu jogar fora os bagaços e as sementes, e a mãe falou que eu não tinha tampa, parecia um buraco sem fundo e acabaram-se as laranjas. Quando comecei a estalar a boca, o pai falou que a mãe devia fazer alguma coisa porque aquilo era a coisa mais irritante do mundo, e ela falou que estalando a boca pelo menos eu ficava quieto com o rosto, aí ele falou, que ela sempre estava de acordo com qualquer coisa quando era pra contrariar uma opinião dele, aí ela falou, ele falou, de repente estavam discutindo os hábitos e defeitos um do outro, e depois não falaram mais até a hora de escolher onde almoçar. A mãe achava que devíamos entrar numa cidade, mas o pai achava que um restaurante de beira de estrada seria ótimo. Ela falou em higiene, perigo de uma intoxicação e talheres sujos, e ele falou de preço e distância, gasolina e tempo perdido, e ela mandou que ele parasse onde quisesse e fizesse o que quisesse porque ela já tinha mesmo perdido o gosto de viajar e — aliás — nem sabia mesmo porque tinha vindo naquela viagem e — quer saber duma coisa? — por ela, podiam voltar dali mesmo. Aí o pai também falou — quer saber duma coisa você também? — e fez meia volta. Eu senti que nunca ia ver o mar.

O motor foi rodando enfezado naquele silêncio, cada vez mais enfezado, até que o pai teve que brecar numa curva e o carro dançou pra lá e pra cá. A mãe não abriu a boca mas todo mundo ficou ouvindo o silêncio dela, tão pesado que o carro começou a andar devagar, tão devagar que dava agonia. Até que o pai parou num posto de gasolina com churrascaria. Como o posto era do outro lado da estrada, ele teve que fazer outra meia-volta, de jeito que ficamos de novo na direção do mar. O pai freou o carro e falou: essa mulher não vê que onde tem muito carro parado é porque a comida é boa, mas eu sei o que ela está querendo. Mas na verdade só tinha o nosso carro parado ali, fora uns trinta caminhões, e a mãe falou com uma cara que o pai chama de cara de mártir: descem vocês, meus filhos, vai com eles, Linalva, hoje vocês vão comer comida de motorista de caminhão. Aí o pai falou: isso, meus filhos, vamos que decerto o pai de vocês vai envenenar vocês. A Linalva saiu com a gente e a mãe falou: cuidado, Linalva, olha bem essas carnes e não deixa eles nem chegarem perto de maionese, fruta só lavada e água só mineral.

Comi carne com maionese com o pai olhando agradecido, mas quando pedi um gole de cerveja ele não deixou. A Linalva, depois que encheu o prato de ossos, começou a apertar as mãos e suspirar de agonia, até que o pai falou pra ela levar uma coxa de frango, um pão e um copo de leite pra mãe lá no carro. E completou que não existia comida que a mãe mais gostava do que coxa com pão e leite. Falei que nunca tinha visto a mãe comer coxa com pão e leite, e ele respondeu que foi antes deles casarem, e que ela ia lembrar. Realmente a mãe lembrou, porque o copo voltou vazio e, quando voltamos pro carro, ela não estava mais com uma cara tão perto da morte. E, como o carro já estava na direção do mar, o pai tocou em frente e passamos pela mesma paisagem até o ponto de onde tínhamos voltado.

A mãe perguntou ao pai se ele tinha bebido, ele disse que só uma cervejinha, aí começaram a falar de novo das paisagens, o pai perguntou se o frango estava bom, a mãe disse que sim e eu aproveitei pra elogiar a maionese. Aí a mãe azedou, virou a cabeça e ficou olhando a paisagem, passamos um túnel e ela continuou olhando a paisagem dentro do túnel. Depois avisou que não ia mexer uma palha se a gente ficasse com o intestino solto, e que eu podia cagar até as tripas que ela não ia nem se incomodar.

O pai lembrou que eu tinha misturado laranja e ovo na barriga a manhã inteira, comparou que maionese é mistura de ovos com limão e portanto quase a mesma coisa, portanto eu já estava cheio de maionese antes mesmo de almoçar.Mas a mãe não falou mais nada até que começou a chover.

O diabo, como disse a Linalva, é que a maionese começou a fazer efeito justamente quando o pai mandou fechar todos os vidros por causa da chuva. A primeira vez em que o cheiro ficou preso junto com a gente no carro, o pai perguntou quem foi, a mãe perguntou pra Alice se tinha sido ela, depois pra mim, e concluiu logo que tinha sido eu, embora eu lembrasse que a Linalva também tinha misturado ovos com laranja. De modo que ficou sendo eu mesmo e no começo foi até engraçado, o pai disse que eu parecia usina de cana, que mastiga o doce mas deixa o ar azedo, e a Linalva completou que lá no Norte uma comida que empesteia muito os intestinos é mistura de carne de bode com uma frutinha que ela não lembrava o nome.

Na segunda vez o pai falou que a usina estava a todo vapor, a Alice riu e ficou olhando mecanismos e mistérios na minha barriga, e a mãe falou pro pai que, do jeito que ele falava, eu podia até acabar achando que aquilo era uma coisa muito bonita. Na terceira vez o pai não fez mais graça nenhuma e deu a caixa de fósforos pra mãe acender um. Na quarta vez o pai falou que agora já chegava e que eu parasse de gracinha porque não tinha graça nenhuma, mas aí a mãe falou que aquilo era uma coisa natural e ele não podia forçar o menino a segurar. Discutiram um pouco os intestinos e a natureza, a minha sem-vergonhice ou o mal que faz a maionese de restaurante. O pai começou a falar que a maionese de restaurante ainda nem me tinha chegado no intestino, mas teve que pedir pra mãe acender outro fósforo. Depois falou que tanto fósforo e tudo mais estava esquentando o ar e embaçando os vidros demais, abriu um pouco a janela mas a mãe lembrou que estava chovendo e era melhor sufocar do que arriscar um resfriado. Quando acabou a caixa de fósforo o pai falou que, por ele, eu podia até pegar pneumonia, abriu o vidro um minuto e fechou porque molhava até o ombro dele mesmo, e continuamos assim, a mãe dizendo que aquele cheiro dava vontade de vomitar o almoço e o pai abrindo e fechando o vidro de vez em quando.

Em São Paulo a maionese parou de fazer efeito, estava anoitecendo e a Alice resmungava o tempo todo no colo da mãe, até que ela passou a ser uma menina cheia de nove-horas e eu menino quieto que devia ser imitado. Acontece que eu estava com sono ou qualquer coisa desse tipo, já nem tinha mais vontade de que o pai parasse ou de que os postos de gasolina tivessem confeitaria. Não sentia fome nem sede, tinha vontade de afundar mas, quando afundava a cabeça no colo da Linalva, dava vontade de levantar — até que acabei ficando de novo um moleque encapetado, a mãe falando que aquele carro estava um inferno e que ela não ia aguentar mais meia hora.

Quando apareceram as luzes o pai falou — Eh São Paulo que não pára de crescer!… — e a mãe perguntou se ele ia saber dirigir na cidade. Ele falou que não precisava andar muito pra achar um hotelzinho mais ou menos, e conhecia a entrada como a palma da mão. A mãe lembrou que ele não ia a São Paulo desde solteiro, e que ninguém ia dormir em nenhum muquifo… Aí o pai falou bem compreensivo e devagar que a gente não precisava gastar um dinheirão pagando hotel de primeira pra dormir uma noite só, e a mãe falou que ninguém dorme mais de uma noite cada vez. Aí ele falou que numa noite de hotel em São Paulo a gente ia gastar mais que uma semana de aluguel de uma casa na praia. A Linalva começou a falar — vocês podem me deixar numa pensão mais barata e amanhã… — mas a mãe mandou calar a boca que de hotel quem entendia ela. O pai quis perder a paciência mas já estava numa rua com mais carro do que eu tinha visto na vida inteira. Começaram a buzinar e a mãe falou que estavam buzinando pra nós, a Alice perguntou como é que sabiam que a gente ia chegar e o pai mandou todo mundo calar a boca porque tinha que se concentrar. A primeira placa de hotel que apareceu fui eu quem leu primeiro e dizia Hotel Paraíso, mas a mãe achou que não enganava ninguém só pelo jeito do prédio. Buzinaram pra nós e o pai continuou, mas aí já não sabia se contornava um tal de viaduto ou se ia em frente, de maneira que acabou virando antes do tal viaduto e acabamos numas ruas escuras onde disseram que hotel, do jeito que a mãe queria, o mais perto era do lado do tal viaduto. Quando o pai conseguiu achar de novo uma rua movimentada, buzinaram pra nós e ele perguntou se aqueles filhos da puta não podiam parar um minuto.A mãe falou que ele é que devia parar duma vez e perguntar pra um guarda. Discutir m isso uma meia hora com o carro andando mas, quando o pai parou e ela abriu a janela e botou a cara pra fora, o guarda apitou e mandou tocar em frente, tocar em frente, passamos de novo em frente o Hotel Paraíso e o pai xingou a mãe, São Paulo, os ônibus e o lazarento do espelho retrovisor que entortava toda hora.

Quando passamos pela terceira vez pelo Hotel Paraíso o pai falou — quer saber duma coisa? — e enfiou o carro no estacionamento. Depois, na portaria, o homem falou que dois quartos, do jeito que minha mãe queria, não tinha, mas desocupavam no outro dia de manhã. Ela perguntou mas que hotel é este que não tem nem pia nos quartos, mas meu pai falou que servia sem pia mesmo e o homem disse que pra qualquer coisa o banheiro era no fim do corredor e muito asseado. O homem subiu com a gente e a mãe reclamando da escada e dizendo que já estava sentindo o cheiro nojento do banheiro. Aí o homem abriu uma porta e ela falou que o cheiro de mofo do quarto só faltava derrubar a gente, meu pai falou para o homem desculpar que ela era assim mesmo. Aí ela empurrou a gente pra dentro e fechou a porta, dali a pouco o pai e a Linalva entraram com as malas, o pai abriu a janela e ficou olhando pra fora e ouvindo as buzinas e a mãe, abrindo as malas e reclamando que ela não era vaca pra ser "assim mesmo".

O pai saiu e trouxe pastéis, empadinhas com azeitonas dentro, quibe e um leite que vinha em saquinhos de papel. A mãe falou que pelo menos uma coisa ele tinha acertado porque assim não precisava usar nenhum copo imundo de hotel, lavou um saquinho na pia, enxugou com uma das toalhas que a gente tinha levado, rasgou a ponta do saquinho e me deu, e aquilo foi a grande coisa que conheci naquele dia de viagem.

Depois de vazios eu e a Alice quisemos guardar nossos saquinhos,mas a mãe falou que só serviam pra chamar baratas de noite. Quando o pai sentou na cama com um jornal que falava do Palmeiras, a mãe falou que ele tinha que mandar o homem trazer logo o tal berço pra Alice, e tinha que buscar um travesseiro pra mim no quarto da Linalva. O pai saiu parecendo que ia explodir ou então murchar até virar um rato no chão, e a mãe ficou reclamando da falta de cabides.

Quando o berço já estava no nosso quarto e a Linalva no quarto dela, eu e a Alice de pijama já deitando, a mãe falou pro pai fechar a janela que ia entrar pernilongo. Ele disse que se ela quisesse morrer abafada ele ia dormir em outro quarto, mas acabou fechando a janela e dizendo que ia sair. Ela falou que ele podia voltar bem tarde e ele falou que ia era pra um lugar onde mulher sabe tratar um homem, ela disse que ele podia ficar lá pra sempre e ele saiu batendo a porta.

Ela acendeu um abajur no criado-mudo e falou que aquilo parecia quarto não sei do quê, tinha até abajur cor-de-rosa. Eu perguntei quarto do quê, ela disse que eu devia era ficar quieto e dormir que a Alice já estava no segundo sono.

No dia seguinte buzinaram não sei pra quem e eu acordei. A mãe estava sentada na cama de casal com um mata-mosquito na mão, tão igual ao de casa que fui ver e era ele mesmo com as marcas que eu tinha feito pra cada mosquito que matei numa tarde de castigo na despensa.

Quando entramos no carro o pai e a mãe ainda discutiam a questão dos pernilongos, ele dizendo

que de luz acesa não dormia e ela que não dormia com pernilongo no ouvido. Ele dizendo que, agora, se você pensa que vamos encontrar casa pra alugar com ar-condicionado, pode tirar o cavalo da chuva. E ela respondendo que é só você não ficar abrindo janela que não entra pernilongo. E ele dizendo que esse negócio de pernilongo você pegou de uns tempos pra cá, porque na viagem de casamento, por exemplo, sempre dormi de janela aberta e nunca ouvi reclamação. E ela respondendo que acontece que naquele tempo era besta feito Jó, teve dia de amanhecer com o corpo empipocado de coceira, o braço em carne viva de tanto coçar. E ele dizendo que, se fosse assim, esse povo da roça já tinha morrido de pernilongo, borrachudo, mutuca, muriçoca. E ela respondendo que, bom, eu nunca vivi na roça nem tenho o couro grosso da sua família.

De modo que começaram a discutir os hábitos e os defeitos das famílias de cada um, as sogras e os cunhados e cunhadas, e aproveitei pra tirar fiapos do cochinil até abrir uma clareira do tamanho de um palmo. A Alice também começou a esfiapar lá na frente e a mãe disse que não podia, mas a Alice disse que podia porque eu também estava esfiapando atrás. Aí o pai e a mãe pararam de discutir pra examinar os estragos e concordaram que eu era mesmo um capeta e que, no fim de contas, era eu que infernizava a vida de todo mundo. Falei que não infernizava a vida de ninguém, que eu só queria viajar na frente e não deixavam, e que a Alice ia sempre no melhor lugar, e acabei convencendo todo mundo que aquele era meu dia de ir na frente.

Quando a Alice parou de chorar no banco de trás, fui descobrindo que ali na frente havia tanta coisa a fazer como lá atrás, e que todos os botões do painel eram perigosos, não podiam ser puxados nem apertados nem tocados e eu devia esquecer aqueles botões para o resto da vida, de modo que abri o porta-luvas e a mãe quase se enfiou lá dentro como se o carro tivesse brecado de repente, tirou de lá um revólver e começou a abrir depressa a janela, o pai foi brecando e encostou o carro, ela jogou o revólver na ribanceira e falou que ele não abrisse a boca, que ele nem pensasse em abrir a boca, e eu aproveitei pra enfiar a mão no porta-luvas antes que ela pegasse a chave e fechasse.

O pai abriu a boca quando o carro já estava rodando de novo: o revólver tinha custado não sei quantos cruzeiros não sei quantos anos atrás, e agora ele queria ver se aparecesse um ladrão na casa da praia. A mãe falou que era preferível entregar tudo pra um ladrão do que arriscar uma criança dessas com uma arma na mão, e começou a contar pra Linalva como tinha morrido um menino perto da casa dela quando era solteira, com um tiro na boca brincando com um revólver. Depois que ela acabou de contar o caso, perguntou o que eu tinha na boca e falei que era uma bala. A Alice falou que também queria bala e o pai garantiu que não tinha comprado bala pra ninguém no bar onde a gente tinha tomado café. Aí a mãe me abriu a boca na marra e tirou a bala, e foram discutindo se uma bala tem ou não tem perigo de explodir na boca de uma criança, e eu comecei a dizer que era muito bonito viajar no banco da frente porque assim a Alice não ia perceber como era muito melhor no banco de trás.

Entramos em Aparecida e o pai rodou até a mãe escolher um restaurante de cara boa. Mas acabou não servindo porque os copos estavam manchados e um guardanapo tinha uma mancha amarela que a mãe logo desconfiou. Voltamos para o carro e aproveitei pra passar pro banco de trás, a Alice sentou na frente e ficou procurando as vantagens que eu tinha falado. O pai deu a partida, tocou o carro mas a mãe achou que o restaurante do lado, ali mesmo, servia bem pra nós, então o pai tornou a estacionar no mesmo lugar, descemos e comemos uma comida intragável conforme o pai, muito limpinha e é isso que interessa conforme a mãe. Alice e eu aproveitamos pra descobrir que num restaurante a gente podia ler o cardápio e pedir o que quisesse, desde que fosse a mesma coisa que o pai e a mãe iam pedir depois. Descobri que camarão devia ser comida mais perigosa que maionese, e no entanto vinha do mar para onde a gente ia, e o mar me parecia uma coisa cada vez mais ótima.

Quando o pai pediu café, eu e a Alice pedimos pra ir numa praça que tinha em frente, Linalva ficou sem café pra ir cuidar da gente e, quando eu descobri dois moleques com um jogo de palitos que eu nunca tinha visto, o pai já entrou de novo no carro e começou a buzinar. Fomos entrando no carro e encostou um homem vendendo lembranças de Aparecida, tinha chaveiro de montes, binóculos de fotografia, santinho, crucifixo, terço, tudo pendurado num cabo de vassoura e a Alice escolheu um espelhinho que era santinho do outro lado. O pai falou que aquilo era bobagem mas a mãe falou que não ia contrariar um gosto sagrado da menina, eu falei que já tinha visto um daqueles espelhinhos mas com mulher pelada do outro lado. A mãe virou pro pai e perguntou o que ele preferia, uma filha iludida com bobagem de religião ou um filho depravado desde cedo. O pai falou que preferia um filho depravado e ficou rindo, aí a mãe falou que eu também devia escolher uma lembrança de Aparecida, e fui apontando e o homem desamarrando do pau e dizendo o preço, até que escolhi o mais caro, uma estátua de Nossa Senhora em porcelana opaca conforme o homem, de gesso vagabundo conforme o pai. Aí o homem falou que o que valia era a devoção, o pai respondeu que então não valia nada mesmo. A Alice falou que a avó tinha falado que o pai ia morrer sofrendo porque não tinha religião. O pai perguntou que vó, mãe dele ou da mãe, e virou pra mãe dizendo que só podia sair da mãe dela uma besteira daquelas.

E foi assim que voltamos pra estrada discutindo religião, até o pai falar que nunca mais deu peixe no rio onde pescaram a santa, aí a Linalva falou Deus me livre, credo em cruz, e o pai falou que a comida tinha dado azia nele e a Linalva garantiu que era castigo de Deus. A mãe não deixou o pai falar mais nada porque se falasse também tratasse de arranjar outra empregada, e continuamos estrada afora.

Alice teve enjôo e vomitou no colo da mãe, o pai teve que parar numa paisagem muito bonita de umas montanhas com um rio lá embaixo se entortando feito uma cobra.Tinha uma mina de água que saía das pedras e a mãe falou que ali, na natureza sem ninguém cuidar, nascia avenca e samambaia mais bonita que em estufa de rico. O pai falou que preferia ser rico e não ter avencas nem samambaias, mas um carro que nem um que passou e ia chegar muito antes da gente conforme o pai, ia acabar se matando numa curva conforme a mãe.

Alice melhorou tão depressa fora do carro, que quase despenca na ribanceira uma hora que a mãe descuidou, queria ver o que tinha lá embaixo. Aí o pai falou pra ela que lá embaixo tinha o mar, vamos lá ver o mar — e já foi entrando de novo no carro e continuamos estrada afora na direção do mar lá embaixo torto feito uma cobra.

O pai saía duma curva e entrava em outra naquelas montanhas,Alice vomitou no colo da Linalva e a mãe falou — agora vai assim mesmo —, e fomos com o vestido grudando na coxa da Linalva e um cheirinho azedo que o vento não carregava. Quando as montanhas acabaram, veio de novo a estrada de sempre, tão igual que até a mãe perguntou se a gente não estava voltando. O pai riu e falou que, se a gente não parasse mais nem uma vez, tal hora essas crianças vão conhecer o mar. Aí eu perguntei se ele tinha algum compromisso no mar, porque ele sempre falava em tal hora, hora tal sem falta, quando tinha algum compromisso com alguém. Ele falou que eu não entendia essas coisas, que em viagem a gente tem que fazer o tempo render, porque a menos de 80 por hora gasta muita gasolina, e eu empurrei o banco dele com o pé e fui descobrindo de novo tudo que não podia fazer dentro de um carro. Mas já não tinha graça e acabei dormindo com o diabo no corpo, conforme a mãe, e com os ossos meio doendo conforme eu mesmo.

Quando acordei o pai tinha acabado de parar o carro e estava conversando com um homem na frente duma casa, numa rua de areia com muitas latas vazias. A mãe olhou pra mim e falou: esse moleque está com alguma coisa. Me botou a mão na testa, me avisou que ficasse quieto que estava queimando de febre, ficou ensinando a Linalva a fazer chá de alho contra resfriado. A Linalva perguntou se eu não ia ver médico, a mãe falou que era um resfriado à toa, culpou o pai porque apanhei chuva da janela, disse que era só eu guardar em casa o dia seguinte e pronto. Perguntei se a gente não ia no mar, o pai veio vindo e enfiou a cabeça na janela, disse todo alegrão que o aluguel da casa era um absurdo mas a mãe achou que pelo menos tinha tela na janela contra pernilongos. De modo que a Linalva começou a descarregar as malas com o pai, a mãe foi botar roupa numa cama pra eu dormir e ninguém me dizia onde estava o mar. A mãe me enfiou um comprimido na boca, o pai disse que a mãe ainda ia viciar esse moleque com esses calmantes, dormi e acordei no outro dia com cheiro de café.

A Linalva estava na cozinha fazendo café igual em casa, até o bule era o mesmo e a garrafa térmica. Eu e a Alice passamos o dia no jardim e na rua, com a mãe ou a Linalva olhando da janela todo minuto. O pai montava e desmontava cama, arrumava descarga de privada, consertava tela de janela, a mãe arrumava as roupas no guarda-roupa, a Linalva emprestou uma vassoura da casa vizinha e um rodinho com pano de chão, e o pai desentupia pia, a mãe fez lista de compras e ele saiu pra comprar, mas foi sozinho porque disse que senão nem comprava as coisas nem cuidava de mim no supermercado, e a Linalva passou pano dentro dos armários e guarda-roupas, amontoou as baratas mortas num canto, e a mãe desinfetava tudo e reclamava como é que puderam deixar uma casa naquele estado, e só sei que no fim do dia a mãe falou que tinha trabalhado mais que numa mudança, e o pai falou que nem sabia porque tinha inventado aqueles dias na praia.

Alice e eu conhecemos todos os formigueiros da redondeza e perdemos muito tempo esperando sair da toca um bichinho, siri conforme a mãe, caranguejo conforme a Linalva e pituí conforme o pai. O bicho botava duas anteninhas pra fora do buraco, pareciam olhos saindo fora do corpo, via se eu e a Alice estávamos bem escondidos e então saía. A gente ia chegando perto, ele parava na areia, mexia as anteninhas e voltava pro buraco, sem pedra que conseguisse acertar o desgraçado no caminho.

Não vimos crianças, só umas de outra casa, que chegaram pro almoço e saíram depois, todo mundo de maiô, os homens com as costas vermelhas e as mulheres com o corpo inteiro melecado de creme, as crianças com bóias e pés-de-pato e máscaras.

No outro dia o pai pegou a gente logo cedo, viramos a esquina e lá na frente, no fim da rua, apareceu uma coisa azul. Fomos andando e a coisa foi mexendo e às vezes embranquecia, o pai falou olha as ondas. Quando a rua acabou e aquilo já era a maior água que eu já tinha visto, entramos numa areia onde era preciso cuidado pra não pisar nos anteninhas, todos andando fora dos buracos, tão grandes que a Alice achou que eles podiam perfeitamente ficar dentro dos buracos em vez de ficar saindo.

E de repente erguemos a cabeça na frente do mar, Alice desandou num choro que só parou no colo do pai. O coração batia junto com as ondas, não sei quanto tempo ficamos ali, o mundo estrondando, até que Alice foi acalmando e continuamos ali, o coração batendo junto com as ondas e um vento que parecia subir da água, molhado e cheiroso.

A mãe chegou e estendeu uma toalha na areia, começou a tirar coisas da sacola e encheu a toalha. A Linalva ficou esquisita de vestido e calça comprida por baixo, foi molhar os pés e eu fui junto, mas a mãe foi me buscar pra passar creme, o pai começou a me avisar dos perigos do mar, a mãe concordando e dizendo escuta teu pai, escuta bem o que o teu pai está dizendo.

Quatro dias depois eu tinha conhecido o mar. Tinha horário de entrar e de sair da água, horário de sol e horário de sombra, hora de passar creme e hora de tomar água, a fundura onde eu podia ir com a Linalva e a fundura até onde podia ir com o pai. A Alice descobriu um arroio cheio de conchinhas, mas a mãe desconfiou de onde devia vir aquela água e a Alice teve que acabar se conformando com as conchas quebradas da praia. Em casa não podia ficar tela aberta, de janela ou de porta, e à noite as casas afundavam na escuridão, a rua não tinha lâmpadas e a criançada não podia brincar fora de casa.

Um velho me mostrou como se pesca com linha, garrafa e anzol, mas levei um dia sem pegar nada, só um beliscão forte no fim da tarde. O velho falou que no dia seguinte eu decerto ia tirar peixe, mas de noite o pai falou:

— Uma semana de praia enjoa qualquer um.

A mãe deu a idéia de visitar uns parentes numa cidade perto, assim a viagem de volta não vai cansar tanto essas crianças, a gente sai cedo pra pegar o almoço e… O pai se entusiasmou e deu a idéia de passarmos também não sei onde, e começaram os dois a riscar a mesa com uma faca: a gente pára aqui, dorme aqui, almoça aqui, dorme mais um dia aqui e visita fulano, depois para uns três dias na casa da tia fulana; e um ficava tirando a faca do outro pra riscar a mesa enquanto falavam, até que deixaram na madeira um mapa, parecia uma espinha de peixe. A mãe levantou e começou a dar ordens. Linalva pega aquilo, arruma isso, cadê a mala menor, e o pai saiu pra trocar o óleo do carro.

Na varanda a gente ouvia, no vento, os anteninhas roendo as costelas do mar, ondas estrondando no lombo de mar, espuma em cima e todos os peixes e mistérios lá embaixo. O vento continuava com um cheiro molhado e quente, tão forte que parecia que o mar rebentava logo depois da varanda, e meu peito foi inchando cheio de sal, siris e conchas, bóias de cortiça, areia, até que desatei a chorar e o peito tornou a ficar pequeno depois.

No dia seguinte, às cinco horas da manhã, alguém começou a me sacudir. A mãe andava pela casa perguntando se ninguém estava esquecendo alguma coisa, e o pai já estava lá fora, esquentando o motor.

E a estação de mar acabou sendo a única que, nas mãos, não me deixou marca.

 
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Domingos Pellegrini Jr.
























Antologia lingua portuguesa Domingos Pelegrini Jr Minha estação de mar