A execução de Tiradentes(João Ribeiro)
Extraído de Historia do Brasil, 1901João RibeiroNota do bloguista : foi feita atualização ortográfica do texto.
Extraido de “Memórias”, 1935
Humberto de Campos
Certa vez uma senhora que alimentava paixão pela farda, reminiscência de um cadete do Ceará que lhe ficara no pensamento, abriu diante dos meus olhos espantados o futuro que me aguardava, e que se tornaria realidade se eu seguisse a carreira militar.
Com uma vivacidade atordoante, descreveu-me ela o meu destino vitorioso e seguro, a minha ascensão através dos postos, com o braço enrolado em galões de ouro e o quépi enfeitado de folhas de loureiro, na indumentária oficial dos heróis. Viu-me alferes, aos dezenove anos. tenente, aos vinte e dois. e capitão, e major, e tenente-coronel, e coronel, e, finalmente, general.
— General, como Artur Oscar! — lembrou-me, com o pensamento ainda na campanha de Canudos.
Foi isso por ocasião de uma visita, em companhia de minha mãe. Era à noite. De regresso, arranjei, em caminho, com um antigo alferes, aluno desligado da Escola Militar do Ceará, uma álgebra. E, chegando em casa, comecei a estudar. A lousa pousada na mesa, a cabeça apoiada na mão esquerda, buscava, com simples auxílio do raciocínio, interpretar as regras formuladas literariamente no livro. E já me imaginava no meu uniforme vistoso, marchando à frente das minhas tropas, quando minha mãe, vendo que se aproximava a madrugada, saiu do seu quarto mansamente. À claridade lúgubre do lampião de querosene, eu meditava, cabeceando de sono, diante do método de Trajano. Minha mãe aproximou-se docemente, e pôs a mão, meiga, em minha testa.
— Em que pensas, meu filho?
— Na Escola Militar, mamãe... No princípio do ano que vem vou a Teresina tirar os preparatórios. Depois, sigo para o Rio de Janeiro, e me matriculo na Escola Militar.
Minha mãe sorriu com amargura. Beijou-me a cabeça:
— Com que dinheiro, meu filho?
Fechei o livro. E o futuro general brasileiro viu-se, de repente, degradado, e reduzido, de novo, à sua condição real, e irremediável, de humilde, pequeno e obscuro fabricante de meias na cidade piauiense de Parnaíba...
------ FIM -------
Extraido de Fogo Morto
Jose Lins do Rego
Camumbembe : homem de baixa condição, homem vadio
O bater do martelo do mestre José Amaro cobria os rumores do dia que cantava nos passarinhos, que bulia nas árvores, açoitadas pelo vento. Uma vaca mugia por longe. O martelo do mestre era forte, mais alto que tudo. O pintor Laurentino foi saindo. E o mestre, de cabeça baixa, ficara no ofício. Ouvia o gemer da filha. Batia com mais força na sola.
Aquele Laurentino sairia falando da casa dele. Tinha aquela filha triste, aquela Sinhá de língua solta. Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo como batia naquela sola. A filha continuava chorando como se fosse uma menina. O que era que tinha aquela moça de trinta anos? Por que chorava, sem que lhe batessem? Bem que podia ter tido um filho, um rapaz como aquele Alípio, que fosse um homem macho, de sangue quente, de força no braço. Um filho do mestre José Amaro que não lhe desse o desgosto daquela filha. Por que chorava daquele jeito? Sempre chorava assim sem que lhe batessem. Bastava uma palavra, bastava um carão para que aquela menina ficasse assim.
Um bode parou bem junto do mestre. O animal era manso. O mestre levantou se, sacudiu milho no chão para a cria comer. Depois voltou para o seu tamborete e começou o serviço outra vez. Pela estrada gemia um carro de boi, carregado de lã. O carreiro parou para conversar com o mestre. Estava precisando de correame para os bois. O coronel mandara encomendar no Pilar. Ele gostava mais do trabalho do mestre Amaro.
O mestre olhou para o homem. E ele lhe falou, com voz mansa, como se não estivesse com a alma pesada de mágoa.
- É encomenda do Santa Rosa? Pois, meu negro, para aquela gente não faço ― nada. Todo mundo sabe que não corto uma tira para o coronel José Paulino. Você me desculpe. É juramento que fiz.
― Me desculpe, seu mestre – respondeu o carreiro, meio perturbado. – O homem é bom. Não sabia da diferença de vosmecê com ele.
― Pois fique sabendo. Se fosse para você, dava de graça. Para ele nem a peso de libra. É o que digo a todo mundo. Não agüento grito. Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um lambe-sola, mas grito não leva.
O carreiro saiu. O carro cantava nos coções de aroeira, com o peso das sacas. Foi de estrada afora. O mestre José Amaro sacudiu o ferro na sola úmida. Mais uma vez as rolinhas voaram com medo, mais uma vez o silencio da terra se perturbava com o seu martelo enraivecido. Voltava outra vez a sua magoa latente: o filho que lhe não viera, a filha que era uma manteiga derretida. Sinhá, sua mulher, era a culpada de tudo. O sol estava mais para o poente. Agora soprava uma brisa que agitava a pitombeira e os galhos de pinhão-roxo, que mexia nos bogaris floridos. Um cheiro ativo de arruda recendia no ar. O mestre cortava material para os arreios do tengerino do Gurinhém. Estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía. O pai fizera sela para o Imperador montar. E ele aí, naquela beira de estrada, fazendo rédea para um sujeito desconhecido.
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N. do blogger : Publicada em 1838, a peça teatral O Juiz de Paz na Roça era uma comédia, explorando os costumes das classes sociais humildes, retratando situações jocosas, hilárias.
Cena XI
JUIZ - Escrivão, leia outro requerimento.
ESCRIVÃO - (lendo) "O baixo-assinado vem dar os parabéns a V.S.a Por ter entrado com saúde no ano financeiro. Eu, Ilmo. Sr. Juiz de paz, sou senhor de um sítio que está na beira do rio, aonde dá muito boas bananas e laranjas e cimo vem de encaixa, peço a V.S.a o favor de aceitar um cestinho das mesmas que eu mandarei hoje à tarde. Mas, como ia dizendo, o dito sítio foi comprado com o dinheiro que minha mulher ganhou nas costuras e outras cousas mais; e, vai senão quando, um meu vizinho, homem de raça de Judas, diz que metade do sítio é dêle. E então, que lhe parece, Sr. Juiz, não é desafôro? Mas, como ia dizendo, peço a V. S.a. para vir assistir à marcação do sítio. Manuel André? E.R.M. (Espera Receber Mercê)”
JUIZ - Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é o meu compadre Pantaleão.
MANUEL ANDRÉ - Mas, Sr. Juiz, êle também está ocupado com uma plantação.
JUIZ - Você replica? Olhe que o mando para a cadeia.
MANUEL ANDRÉ - Vossa senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda;
JUIZ - A constituição!... Está bem!... Eu, o Juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome têrmo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender êste homem;
MANUEL ANDRÉ - Isto é uma injustiça!
JUIZ - Ainda fala? Suspendo-lhe as garantias...
MANUEL ANDRÉ - é desafôro...
JUIZ - (levantando-se) Brejeiro!...(MANUEL ANDRÉ CORRE; O JUIZ VAI ATRÁS.) Pega.. Pega... Lá se foi... Que o leve a breca. (ASSENTA-SE) Vamos às outras partes.
ESCRIVÃO - ( lendo) Diz João de Sampaio que, sendo êle "senhor absoluto de um leitão que teve a porca mais velha da casa, aconteceu que o dito acima referido leitão furasse a cêrca do Sr. Tomás pela parte de trás, e com sem-ceremônia que tem todo o porco, fossasse a horta do mesmo senhor. Vou a respeito de dizer, Sr. Juiz, que o leitão, carece agora advertir, não tem culpa, porque nunca vi um porco pensar como o cão, que é outra qualidade de alimária (animal) e que pensa às vezes como um homem. Para V. S.a não pensar que minto, lhe conto uma história: aminha cadela Tróia, aquela mesma que escapou de morder a V. S.a naquela noite, depois que lhe dei uma tunda (surra) nunca mais comeu na cuia com os pequenos. Mas vou a respeito de dizer que o Sr. Tomás não tem razão em querer ficar com o leitão só porque comeu três ou quatro cabeças de nabo. Assim, peço a V. S.a que mande entregar-me o leitão. E.R.M."
JUIZ - É verdade, Sr. Tomás, o que o Sr. Sampaio diz?
TOMÁS - É verdade que o leitão era dêle, porém agora é meu.
SAMPAIO - Mas se era meu, e o senhor nem mo comprou, nem eu lho dei, como pode ser seu?
TOMÁS - É meu, tenho dito.
SAMPAIO - Pois não é, não senhor. (AGARAM AMBOS NO LEITÃO E PUXAM, CADA UM PARA SUA BANDA. )
JUIZ - (levantando-se) Larguem o pobre animal, não o matem!
TOMÁS - Deixe-me, senhor!
JUIZ - Sr. Escrivão, chame o meirinho (oficial de justiça). (OS DOUS APARTAM-SE) Espere, Sr. Escrivão, não é preciso. (ASSENTA-SE) Meus senhores, só vejo um modo de conciliar esta contenda, que é darem os senhores êste leitão de presente a alguma pessoa. Não digo com isso que mo dêem.
TOMÁS - Lembra Vossa Senhoria bem. Peço licença a Vossa Senhoria para lhe oferecer.
JUIZ - Muito obrigado. É o senhor um homem de bem, que não gosta de demandas. E que diz o Sr. Sampaio?
SAMPAIO - Vou a respeito de dizer que se Vossa Senhoria aceita, fico contente.
JUIZ - Muito obrigado, muito obrigado! Faça o favor de deixar ver. Ó homem, está gordo, tem toucinho de quatro dedos! Com efeito! Ora, Sr. Tomás, eu que gosto tanto de porco com ervilha!
TOMÁS - Se Vossa quer, posso mandar algumas.
JUIZ - Faz-me muito favor. Tome o leitão e bote no chiqueiro quando passar. Sabe aonde é?
TOMÁS - (TOMANDO O LEITÃO) Sim senhor.
JUIZ - Podem se retirar, estão CONCILIADOS.
SAMPAIO - Tenho ainda um requerimento que fazer.
JUIZ - Então, qual é?
SAMPAIO - Desejava que Vossa Senhoria mandasse citar a Assembléia Provincial.
JUIZ - Ó homem! Citar a assembléia Provincial? Para quê?
SAMPIO - Pra mandar fazer cercado de espinhos em tôdas as hortas.
JUIZ - Isto é impossível! A Assembléia Provincial (Antigas assembleias legislativas) não pode ocupar-se com estas insignificâncias.
TOMÁS - Insignificâncias, bem! Mas os votos que Vossa Senhoria pediu-me para aquêles sujeitos não era Insignificância. Então me prometeu mundos e fundos.
JUIZ - Está bem, veremos o que poderei fazer. Queiram-se retirar. Estão conciliados; tenho mais que fazer. (SAEM OS DOIS.) Sr. Escrivão, faça o favor de... (LEVANTA-SE APRESSADO E, CHEGANDO À PORTA, GRITA PARA FORA: ) Ó Sr. Tomás! Não se esqueça de deixar o leitão no chiqueiro!
TOMÁS - (AO LONGE) Sim senhor.
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Camilo Castelo Branco
Extraído de “Doze casamentos felizes”
Entraram na sala, onde D. Tomásia de Noronha, refestelada numa otomana (tipo de sofá), cruzando os braços sobre os empinados seios, bamboava uma perna sobre a outra.
- Ela aqui está - disse Maria-, Vossa Excelência pergunte-lhe o que quiser, porque eu não tomei bem sentido no que me disse.
- Disse-lhe - interrompeu com veemência D. Tomásia - que sua filha, esquecida da humildade e modéstia com que devia receber e agradecer a esmola da consideração que lhe demos, ousou aceitar a corte do primo Roboredo.
Ângela levantou os olhos e fitou-os embaciados de lágrimas nos olhos interrogadores de sua mãe.
- Que respondes, filha?
- Que hei-de eu responder, minha mãe?! A senhora D. Tomásia está enganada – disse Ângela com brandura.
- Estou enganada!? Enganada está você! Cuidou que vinha lograr-me lá do mato?! Talvez não saiba o que é aceitar a corte?!
- Não sei, minha senhora.
- Não sabe!? Olha a inocência em pessoa! Que lhe tem dito meu primo?
- O que Vossa Excelência e mais as meninas têm ouvido.
- E não lhe escreveu?
- Escreveu, sim, minha senhora.
- Vê, Srª Maria! -exclamou a fidalga, erguendo-se de salto. - Vê como ela confessa? Quer ainda a cousa mais clara?
- Pois esse senhor escreveu-te, Ângela!? - disse Maria, pálida e convulsa.
- Escreveu, sim, minha mãe.
- O mariola! O patife! O sedutor! - bradou D. Tomásia gesticulando furiosa. - Que lhe diz ele na carta?
- Não sei, minha senhora. A carta, que me deram há meia hora, não a abri ainda. Ela aqui está: pode Vossa Excelência lê-la. A minha intenção era mandar-lha fechada logo que tivesse por quem; mas, se a senhora quer ler, leia.
Ficou enleada a nobre dama de Guimarães. A brandura de Ângela, oferecendolhe a carta, era já como um castigo. Mais indignada contra o primo que contra a moça, tomou a carta com bom modo e disse:
- Eu responderei ao tratante: a menina não tem culpa, que é inocente.
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Maria Jose Leandro Dupre |