Extraido de Fogo Morto
Jose Lins do Rego
Camumbembe : homem de baixa condição, homem vadio
O bater do martelo do mestre José Amaro cobria os rumores do dia que cantava nos passarinhos, que bulia nas árvores, açoitadas pelo vento. Uma vaca mugia por longe. O martelo do mestre era forte, mais alto que tudo. O pintor Laurentino foi saindo. E o mestre, de cabeça baixa, ficara no ofício. Ouvia o gemer da filha. Batia com mais força na sola.
Aquele Laurentino sairia falando da casa dele. Tinha aquela filha triste, aquela Sinhá de língua solta. Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo como batia naquela sola. A filha continuava chorando como se fosse uma menina. O que era que tinha aquela moça de trinta anos? Por que chorava, sem que lhe batessem? Bem que podia ter tido um filho, um rapaz como aquele Alípio, que fosse um homem macho, de sangue quente, de força no braço. Um filho do mestre José Amaro que não lhe desse o desgosto daquela filha. Por que chorava daquele jeito? Sempre chorava assim sem que lhe batessem. Bastava uma palavra, bastava um carão para que aquela menina ficasse assim.
Um bode parou bem junto do mestre. O animal era manso. O mestre levantou se, sacudiu milho no chão para a cria comer. Depois voltou para o seu tamborete e começou o serviço outra vez. Pela estrada gemia um carro de boi, carregado de lã. O carreiro parou para conversar com o mestre. Estava precisando de correame para os bois. O coronel mandara encomendar no Pilar. Ele gostava mais do trabalho do mestre Amaro.
O mestre olhou para o homem. E ele lhe falou, com voz mansa, como se não estivesse com a alma pesada de mágoa.
- É encomenda do Santa Rosa? Pois, meu negro, para aquela gente não faço ― nada. Todo mundo sabe que não corto uma tira para o coronel José Paulino. Você me desculpe. É juramento que fiz.
― Me desculpe, seu mestre – respondeu o carreiro, meio perturbado. – O homem é bom. Não sabia da diferença de vosmecê com ele.
― Pois fique sabendo. Se fosse para você, dava de graça. Para ele nem a peso de libra. É o que digo a todo mundo. Não agüento grito. Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um lambe-sola, mas grito não leva.
O carreiro saiu. O carro cantava nos coções de aroeira, com o peso das sacas. Foi de estrada afora. O mestre José Amaro sacudiu o ferro na sola úmida. Mais uma vez as rolinhas voaram com medo, mais uma vez o silencio da terra se perturbava com o seu martelo enraivecido. Voltava outra vez a sua magoa latente: o filho que lhe não viera, a filha que era uma manteiga derretida. Sinhá, sua mulher, era a culpada de tudo. O sol estava mais para o poente. Agora soprava uma brisa que agitava a pitombeira e os galhos de pinhão-roxo, que mexia nos bogaris floridos. Um cheiro ativo de arruda recendia no ar. O mestre cortava material para os arreios do tengerino do Gurinhém. Estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía. O pai fizera sela para o Imperador montar. E ele aí, naquela beira de estrada, fazendo rédea para um sujeito desconhecido.
---- F I M -----------------------------------------
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