Eramos seis - Maria Jose Leandro Dupré
Trecho final de “Eramos seis”
Nota do blogger : “Eramos seis” é a história de dona Lola, contada pela própria, em primeira pessoa. É uma mulher batalhadora que tudo faz pela felicidade dos filhos. Júlio, seu marido, vendedor, falece precocemente. O casal teve quatro filhos, Carlos, Alfredo, Julinho e Isabel.
Dona Lola narra a infância das crianças, a luta do marido Júlio para pagar as prestações da casa onde moram, na cidade de São Paulo. Narra a passagem dos filhos para fase adulta.
O filho Carlos, o mais apegado a mãe, falece vitima de doença. Alfredo some pelo mundo e acaba envolvido em combates na Segunda Guerra Mundial. Isabel se casa com um homem violento, que bate nela, e passa por dificuldades financeiras. Julinho consegue ganhar muito dinheiro, e se casa com um moça rica, mora no Rio de Janeiro, longe da mãe.
Dona Lola acaba numa casa de repouso dirigida pela Igreja Católica, onde escreve suas memórias. ´
Apesar da simplicidade da história é um livro comovente, tocante, sem ser apelativo. Somente, e somente um sentimento poderia produzir uma obra grandiosa dessa : o amor materno.
“Eramos seis” foi um grande sucesso editorial nos anos 60 e 70. Teve três versões em novela, na Tv.
Julinho tem duas meninas; Maria Laura e ele já me visitaram duas vezes. Gosto de Maria Laura; é boa e amável. As meninas são fortes e uma delas é muito parecida com o pai. Às vezes escrevem convidando para passar uma temporada com eles no Rio; prometo, digo que sim, um dia irei, mas não tenho coragem. Moram com os pais de Maria Laura num palacete em Copacabana; tenho a impressão de que vou ser demais entre eles. Não quero que a carga da minha pobreza vá empanar o brilho da riqueza de meu filho; seria toldar um céu brilhante com nuvens sombrias. Prefiro sempre meu quartinho obscuro.
Sinto-me quase feliz; estou perto de Carlos, visito-o todos os domingos, levo-lhe rosas e ao lado do seu túmulo, recordo nossa vida numa rápida recapitulação.
Penso que cada um dos meus filhos está feliz porque seguiu o caminho escolhido. Desde pequeno, Julinho gostou do dinheiro; os outros nem lembravam que se podia vender alguma coisa, caixinhas, jornais, garrafas. Julinho vendia tudo e tinha sempre dinheiro guardado. Quando, na mesa, para nos agradar, dizia que ia estudar engenharia, Júlio (o pai) nunca acreditava e respondia: "Você tem a alma do negócio, deve ser negociante". E Julinho é negociante. Ganha bastante dinheiro, já tem automóvel, mora numa bela casa e com certeza será rico, muito rico. É feliz.
Alfredo tem o que quer; sem responsabilidades, sem pensar no futuro, sem se preocupar com o que ficou para trás, vive ao sabor da aventura, de terra em terra, de mar em mar, de cidade em cidade procurando o ideal. De vez em quando, lembra-se que ainda tem mãe num canto qualquer da terra; toma então um cartãozinho e escreve: "Mamãe, vou bem. Abraços do filho Alfredo". É feliz.
Isabel casou com o homem que escolheu; não houve nada; nem conselhos, nem ameaças, nem lágrimas que a demovessem. Trabalha e luta; auxilia o marido ganhando a vida, adora os filhos. Está mais alta e mais forte, parece mais mulher. Já não é a menina despreocupada e alegre. Tem agora rugas de apreensões na testa, pensa no futuro dos filhos, economiza e trabalha, mas está bem. É feliz.
Carlos foi o único que não escolheu, foi escolhido. Mas tenho certeza que é o mais feliz dos quatro. Tem tudo. Não vivo só; tenho os quatro rostos risonhos sobre a mesa do meu quarto. Sorriem para mim todos os dias.
Tenho também uma carta de Alfredo desde a semana passada, a primeira carta longa que me escreveu desde muitos anos.
Está na guerra; diz assim:
Mamãe:
Estou no Pacífico Sul desde 5 deste mês. Se algum dia eu disse que a vida era dura para mim, menti, porque foi um mar de rosas. Rosas como as do nosso jardinzinho, aquelas que chamávamos de Bela Helena, lembra-se?
Pois minha vida era suave como uma Bela Helena em comparação com a de agora. Estou combatendo. Sabe o que quer dizer isso? Não. Nunca poderá saber. Estamos nas Ilhas Salomão e há três dias atacamos um comboio japonês que navegava ao largo da Austrália. Os caças japoneses foram repelidos e derrubamos seis deles ali na batata. Tomamos o aeródromo de Cucun na ilha de Guadalcanal e vamos avançar agora na base nipônica de Tulagi. Estou no elemento, lutando. Eu não dizia sempre que preferia água corrente à água parada? Pois estou agora na correnteza, nem é mais água corrente. É uma correnteza que vai a muitos quilômetros a hora e não há tempo nem de respirar. Tomamos Gavatu e Mocambo em dois dias; foi uma chuva de balas, bombas e gritos durante horas seguidas. Se a senhora me visse, diria: Eu, mãe desse demônio? Impossível. E não me reconheceria. Tudo no meio da fumaça e do horror. Os japs recuam cada vez mais para o interior das Ilhas; a Austrália pode ficar sossegada porque o perigo amarelo já não paira sobre ela. Dias atrás os inimigos receberam reforços no setor de Cocada e temos combatido numa passagem estreita na cordilheira de Stanley, é importante a conquista por causa do Porto Moresbi. Vencemos sempre e nosso lema é este: combater para vencer!
Não sei quando escreverei de novo; este agosto tem sido o mês mais longo da minha vida. Nem sei se receberá esta carta, vai por acaso. Lembre-se que luto pelo ideal que sempre desejei e depois desta guerra o mundo vai mudar, sempre para melhor. Muita coisa cairá, mas nossa idéia ficará de pé. Felicidades a todos.
ALFREDO.
Reli essa carta muitas e muitas vezes; tinha certas palavras que eu não compreendia muito bem, mas era uma carta de Alfredo, do meu rebelde. Dormi com ela sob o travesseiro; acordei altas horas, acendi a luz, tornei a ler e tornei a chorar. Meu coração me avisou no momento da despedida que Alfredo não voltaria mais.
Deus o abençoe!
Vejo-o nos meus sonhos se debatendo entre as ondas pesadas e negras e sinto que seu último pensamento é para mim. Ouço sua voz chamando: “Mamãe!”
* * *
A manhã que estava radiosa e alegre, transformou-se. Vejo através da vidraça a chuva cair no jardim da pensão; cai em gotas barulhentas todas as plantas estão inclinadas para o solo, pesadas de água. Por toda parte a desolação, a tristeza e o silêncio; só a chuva e o vento dançam juntos a sarabanda do outono; cobrem o chão de folhas amarelas desfolhadas. Entre o ruído da chuva e do vento ouço também o violão e a voz de Carlos cantando, cantando.
O céu está sombrio e escuro, cinzento-escuro. O que foi a vida em todos esses anos ? Sacrifício e devotamento. É como ver numa tarde assim de chuva, pesada de tristezas. Mas não sei lamentar; se fosse preciso recomeçar novamente, novamente faria minha vida a mesma que foi, de sacrifício e devotamento. Devo ser feliz porque cada filho seguiu o caminho escolhido.
No meu último aniversário, recebi um pacote de minha irmã vindo de Itapetininga; abri com curiosidade. Havia "uma" caixa de figos cristalizados, "uma" lata de goiabada em calda e "um" tijolo de pessegada. Apenas.
Grossas gotas de chuva caem do céu sobre a terra, sobre as árvores e sobre os telhados cor de cinza. Solidão.
Maria Jose Leandro Dupre |
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