quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O Bom-Criolo (Adolfo Caminha)

O bom criolo - Adolfo Caminha

Extraído do romance “O Bom Crioulo”, 1895
Adolfo Caminha
 
Nota do blogger : O romance “O Bom-Crioulo” foi lançado em 1895. O personagem central, um negro forte e homossexual, iniciou um romance com Aleixo, grumete em um navio da Marinha, onde ambos cumpriam o serviço militar. Nesta passagem, Bom-Crioulo analisa a sua condição sexual. O romance foi o primeiro que teve a ousadia de tratar do assunto com naturalidade e tolerância. 

Entretanto, Bom-Crioulo começava a sentir uns longes de tristeza n’alma, cousa que raríssimas vezes lhe acontecia. Lembrava-se do mar alto, da primeira vez que vira o Aleixo, da vida nova em que ia entrar, preocupando-o sobre a amizade do grumete, o futuro dessa afeição nascida em viagem e ameaçada agora pelas conveniências do serviço militar. Em menos de vinte e quatro horas Aleixo podia ser transferido para outro navio — ele mesmo, Bom-Crioulo, quem sabe? talvez não continuasse na corveta...
Instintivamente seu olhar procurava o pequeno, acendia-se num desejo sôfrego de vê-lo sempre, sempre, ali perto, vivendo a mesma vida de obediência e de trabalho, crescendo a seu lado como um irmão querido e inseparável.
Por outro lado estava tranqüilo porque a maior prova de amizade Aleixo tinha lhe dado a um simples aceno, a um simples olhar. Onde quer que estivessem haviam de se lembrar daquela noite fria dormida sob o mesmo lençol na proa da corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da primeira coabitação... Ao pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta...
Agora compreendia que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres. Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperadamente. E o mais interessante é que “aquilo” ameaçava ir longe, para mal de seus pecados... Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a “natureza” impunha-lhe esse castigo. Afinal de contas era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: fizera muito em conservar-se virgem té aos trinta anos, passando vergonhas que ninguém acreditava, sendo muitas vezes obrigado a cometer excessos que os médicos proíbem. De qualquer modo estava justificado perante sua consciência, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam cousas medonhas no tocante à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana...
---- F I M -----------------------------------------
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