quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A tapera (Aloisio de Azevedo)

A tapera (1)
(extraído de O Mulato, 1889)
Aluisio Gonçalves de Azevedo

Nota do blogger : Manoel visita o irmão, mas ao chegar à casa, percebe que ela foi abandonada. A descrição da tapera é tão bem feita que ao ler o texto o leitor tem a nítida sensação que está se adentrando nela.

— Ó de casa! gritou Manuel.

Só o eco respondeu.

Adiantaram-se mais e Raimundo gritou por sua vez, com o mesmo resultado.

— Ande, senhor Manuel! Estamos a quixotear... Aqui não há viva alma!...

Mais alguns passos e estavam defronte da tapera.

Eram os restos de uma casa térrea, sem reboque (2) e cujo madeiramento de lei resistira ao seu completo abandono.

Ia anoitecer. O Sol naufragava, soçobrando num oceano de fogo e sangue; o céu reverberava como a cúpula de uma fornalha; o campo parecia incendiado.

Como era preciso aproveitar o dia, os dois viajantes apearam-se logo, cada qual prendeu o seu cavalo, e introduziram-se na varanda da casa por uma brecha que cortava de alto a baixo o primeiro pano de parede. Essa parte estava completamente arruinada e cheia de mato; os camaleões, as osgas e as mucuras fugiam espantados pelos pés de Raimundo, que ia galgando moitas de urtiga e capim-bravo.

Lá dentro a tapera tinha um duro aspecto nauseabundo. Longas teias de aranha pendiam tristemente em todas as direções, como cortina de crepe esfacelado; a água da chuva, tingida de terra vermelha, deixara, pelas paredes, compridas lágrimas sangrentas que serpeavam entre ninhos de cobras e lagartos; a um canto descobria-se no chão ladrilhado um abominável instrumento de suplício, era um tronco de madeira preta, e os seus buracos redondos, que serviam para prender as pernas, os braços ou o pescoço dos escravos, mostravam ainda sinistras manchas arroxeadas.

Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da casa. Ao transporem cada porta fugia na frente deles uma nuvem negra de morcegos e andorinhas. O solo, empastado de excremento de pássaros e répteis era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. De um charco vizinho à casa palpitava, monótono como um relógio, o rouquenho coaxar das rãs. Os anuns passavam de uma para outra árvore, cortando o silêncio da tarde, com os seus gemidos prolongados e agudíssimos; do fundo tenebroso da floresta vinham de espaço a espaço o gargalhar das raposas e os gritos sensuais dos macacos e sagüis. Era já o concerto da noite.

Manuel, um tanto comovido, contemplava demoradamente as ruínas que o cercavam, procurando descobrir naqueles restos mudos e emporcalhados, a antiga residência de seu irmão. Nada lhe trazia à lembrança uma nota ainda viva do passado.

— Vejamos agora por aqui... disse ele, passando, seguido pelo sobrinho, a um quarto, cujas janelas tinham as folhas despregadas e prestes a desabar. Era este o quarto de José...

E pôs-se a meditar.

(1) Tapera – casa muito humilde, cabana.
(2) Reboque : o mesmo que reboco

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