quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A farsa do Michelin

Walcyr Carrasco

Estou na Provença, na França, com minha família. Todos à mesa de um restaurante que, segundo soube, tem duas estrelas no prestigiado Guia Michelin, a bíblia dos gourmets de todo o mundo. O nome, chiquérrimo: Oustau de Baumamière, em Les Beaux de Provence. A comida é servida em um pátio, sob uma árvore gigantesca. Diante do cenário, penso: “Como sou chique!”. É brega a gente pensar que é chique. Mas, naquele momento, me senti no topo do mundo, pronto a desfrutar um dos melhores jantares da Terra. Pedimos o menu degustação, composto de vários pratos que, em conjunto, dariam uma noção da culinária do restaurante a nós, ignorantes turistas em busca da alta gastronomia. Para começar, veio uma espuma de vegetal. Espuma é um item que saiu das banheiras para as mesas elegantes algum tempo atrás. Degustam-se pratos com espumas de todo tipo e, segundo os entendidos, é preciso apreciar a textura, não só o sabor do alimento. Minha sobrinha assumiu um ar sofisticado, eu também. Declaramos que a espuma era maravilhosa, embora não soubéssemos bem do que se tratava. Passou-se meia hora enquanto esperávamos pelo segundo prato. No intervalo, nos fartamos de pãezinhos com manteiga, esses sim muito bons. Falamos sobre o preço do cardápio, altíssimo. Mas tudo era válido pela comida boa. Chegou o segundo prato. Eram três tirinhas de salmão, mais finas que meu dedo mindinho. Degustamos lentamente, qual a alternativa? Durante mais 45 minutos, comemos pão com manteiga. Veio o terceiro prato, frango. Quer dizer, um quadradinho de carne de uns 2 centímetros, no máximo. Senti um sabor familiar. Todos nos olhamos, com a mesma sensação surpresa. Finalmente, o marido de minha sobrinha desabafou:

– É frango de panela! Igualzinho o que vovó fazia.

– Gastamos essa fortuna para comer frango de panela? Ainda mais essa miséria? – perguntou minha prima.

– Pagamos pelas estrelas do Guia Michelin – disse.

O final foi mais triste. Horas depois, a garçonete ofereceu o tradicional carrinho de queijos. Cada um ficou com cara de bobo. Como escolher entre queijos que não se conhece? Depois, fruta em compota. E a conta. A comida era pouca, mas a conta enorme!

Em breve, descobrimos que toda a Provença é uma via láctea de estrelas Michelin. Restaurantes a preços caríssimos, lotados sempre por rebanhos de turistas. O Michelin é a principal referência em gastronomia do mundo. Concede uma, duas ou até três estrelas a restaurantes selecionados no planeta pela qualidade, “personalidade do chef”, ingredientes. É tão respeitado que um chef francês, Bernard Loiseau, se suicidou, em 2003, diante do rumor de que seu restaurante perderia a classificação máxima de três estrelas. Assim, como os outros turistas tontos, continuamos a pagar fábulas por um simples peixe grelhado, com pedacinhos de pimentão em cima. Em Paris, fomos ao Taillevent, duas estrelas, e o chique tornou-se tortura. Pedimos, mais uma vez, o menu degustação. Ficamos mais de três horas sentados, enquanto os pratos, sempre em porções mínimas, demoravam 40 minutos para chegar à mesa. No intervalo, pão com manteiga. E mais pão com manteiga! Tento lembrar, mas não comi nenhum prato inesquecível naquela noite. Só não passei fome graças aos pãezinhos. Saí torto. Qualquer um ficaria com a coluna em pedaços ao permanecer horas sentado, torcendo esperançosamente o pescoço, cada vez que os garçons passavam com suas bandejas. Seriam nossos pratos, finalmente? O serviço só ganhou algum ritmo no final da noite, quando queriam ir embora e correram com sobremesa e café. Saímos estufados de pão e água! Chegamos às 9. Só partimos depois da meia-noite.

Claro que, entre os estrelados do Michelin, existem excelentes restaurantes. Mas a distribuição de estrelas equivale a uma farsa. Não digo que existe má intenção, um plano calculado. Incautos como eu se deixam enganar pelo brilho das tais estrelinhas. Os restaurantes agraciados fazem a festa, com os tais menus degustação, preços altíssimos e garçons de queixo empinado. Sou testemunha: ganhar estrelas Michelin não garante que um restaurante seja excelente. Deixar de tê-las também não o faz pior.

A partir do ano que vem, os restaurantes do eixo Rio-São Paulo também serão classificados pelo Michelin. Muita gente se deslumbrará pela chance de comer num estrelado. Exatamente como eu, antes de começar a viagem.

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