quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Cotiabá–Padre Pedro Luiz Bottari

Cotiabá
Padre Pedro Luiz Bottari
Extraído de “Mármores Brancos”

Nota do blogger : certa vez, vi num post do Facebook a história de um cão que teria devorado um bebê. Lenda urbana, pensei, pois já havia lido essa história antes. Nunca atire pedras antes de analisar e julgar bem os fatos.

Cotiabá era um cão crescido ao pé da mesa
Com mimos que não tem os filhos da pobreza
Belo tipo de cão normando: ereto e atento,
Ossatura ideal, esbelto e corpulento

Formas esculturais num corpo peregrino,
Feita com a paixão de artista florentino
Lanudo e todo branco, era – visto da rua
Um cômoro* de neve, à luz glacial da lua
cômoro – pequeno morro

Em sua cauda havia maciez das rosas,
E em seu olhar, a cor das noites procelosas*,
Fulgindo, nesse olhar, cintilações de brasa
Fulmíneo* para os mais e bom para os de casa
Procelosa - agitada
Fulmíneo – fulminante


Duas carreiras más de dentes, dos dois lados,
Eram como punhais ali marmorizados.
E tinha compreensão do seu mister mais alto
Ousadia no ataque e pujança no salto.

Altivo e inteligente e sempre bom amigo,
Posando sob seu olho, estáveis ao abrigo.
Nas noites sepulcrais de luminosos rastros,
Quando se vê cair do céu limalha de astros
Ou se ouve só a voz do grande mar que guia,
Cotiabá, no portal, ficava de atalaia*
atalaia – sentinela, vigia

Certa manhã de sol, pletórica* de vozes,
Em que estourava o chão de frêmitos* atrozes,
E o gérmen, e a raiz, e o albúmen das sementes
Sonhavam expansões de trópicos ardentes,
Rumavam para o mar a esposa e as crianças,
pletórica – excessiva
frêmito – vibração, tremor

Mais leve do que a luz, joviais como esperanças,
Ficara só o esposo e, em berço pequenino,
Perdendo-se na renda, angélico menino
- Botão de mais de mês, de olhares matinais,
Dois lábios de carmim e faces liriais.

Naquele instante, o pai, sob um carvalho amigo,
Pusera-se a esflorar* precioso livro antigo.
De chofre, alguém o chama : um caso mais que urgente
Reclama seu saber de médico excelente.
Esflorar – folhear um livro, apressadamente

Mas... a criança, então, deixá-la no abandono ?
E se, na sua ausência, a sós, perdesse o sono ?
Também o apunhalava o não ir em auxilio
De uma pessoa que estimava como filho.

De súbito uma ideia aclara-lhe o semblante:
Cotiabá fora sempre um guarda vigilante.
Chamou-o, indigitou-lhe o berço com carinho
E desapareceu na curva do caminho...
indigitar – apontar com o dedo

A terra tinha um feitiço nesse dia,
Pois tudo transformava em cores e harmonia
E o sol mostrava, além no sobrecéu profundo,
Ânsias de despegar todo o ouro sobre o mundo.

A criança dormia. Era um rosal de prendas
O aroma de um amor, extático, nas rendas.
Por sobre o berço havia o eflúvio aveludado
Dos sonhos virginais das almas sem pecado.

Mas... céus ! em dado instante, aponta sobre a porta
Enorme lobo, rindo em sua boca torta,
Os risos de ameaça e o repto da peleja.
O cão que tinha em si audácia sertaneja

E que sentia sobre a compleição possante,
Como outra natureza, atlética e gigante,
Crescer a carne quente e a tempera selvagem
Do brio e do dever, da força e da coragem,

Num salto se atirou ao lobo esguio e forte,
Lavrando-se entre os dois um equação de morte :
De um lado estava a força irracional da fome,
E do outro a do dever, escrita até no nome.

No palco universal o sol, com diques rotos,
Erguia o gosto bom das seivas dos brotos
Surgiu o pai, alem, o cão foi recebe-lo,
Com festas triunfais e saltos de atropêlos.

Porem quando o doutor chegou à porta, ansiado,
Viu sangue no soalho e o berço derribado.
Gelado e glacial, pensou num desatino:
Cotiabá devorava o filho pequenino.

Turvou-se-lhe a razão, urrou na arremetida
E com um tiro alvar, prostrou o cão sem vida.
Correu a procurar, nos transes da amargura,
Um resto... algum sinal de sua criatura,

E achou-a, a lhe sorrir, nas rendas afofadas,
Louçã, como as visões das grandes madrugadas...
E, quando se inclinou para ajunta-la absorto,
Viu debaixo do leito o enorme lobo, morto...
Louçã – fem. de loução – elegante, enfeitado

 

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