Raquel de Queiroz
Extraido de “O quinze”
Encostado a uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos cabras ia pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado. Reses magras, com grandes ossos agudos furando o couro das ancas, devoravam confiadamente os rebentões que a ponta dos terçados espalhava pelo chão. Era raro e alarmante, em março, ainda se tratar de gado. Vicente pensava sombriamente no que seria de tanta rês, se de fato não viesse o inverno. A rama já não dava nem para um mês. Imaginara retirar uma porção de gado para a serra. Mas, sabia lá? Na serra, também, o recurso falta... Também o pasto seca... Também a água dos riachos afina, afina, até se transformar num fio gotejante e transparente. Além disso, a viagem sem pasto, sem bebida certa, havia de ser um horror, morreria tudo.
Uma vaca que se afastava chamou a atenção do rapaz, que deu um grito:
- Eh! menino, olha a Jandaia! Tange para cá! E chamando o vaqueiro:
- Você viu, compadre João, como a Jandaia tem carrapato? Até no focinho!
O João Marreca olhou para o animal que todo se pontilhava de verrugas pretas, encaroçando-lhe o úbere, as pernas, o corpo inteiro:
- Tem umas ainda pior... Carece é carrapaticida muito... E as reses assim fracas...
Vicente lastimou-se:
- Inda por cima do verãozão, diabo de tanto carrapato... Dá vontade é de deixar morrer logo!
- Por falar em deixar morrer... o compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordens pra, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém.
Escandalizado, indignado, Vicente saltou de junto da jurema onde se encostava:
- Pois eu, não! Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no açude, trato do que é meu! Aquela velha é doida! Mal empregado tanto gado bom!
E depois de uma pausa, fitando um farrapo de nuvem que se esbatia no céu longínquo:
- E se a rama faltar, então, se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos...
O vaqueiro bateu o cachimbo num tronco e pigarreou um assentimento.
Vicente continuou:
- Do que tenho pena é do vaqueiro dela... Pobre do Chico Bento, ter de ganhar o mundo num tempo destes, com tanta família!...
- Ele já está fazendo a trouxa. Diz que vai pro Ceará e de lá embora pro Norte...
Vicente se dirigiu ao seu velho pedrês, enquanto o vaqueiro comentava:
- Nem parece que este bicho come milho todo dia... já tão descarnado!...
Vicente montou.
- Vocês fiquem por aqui, até acabar. Eu tenho que fazer lá em casa.
Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu, sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.
Chegando em casa, o pai, que fumava numa rede do alpendre, foi-lhe ao encontro:
- Que tal a rama?
- Boa... o gado vai comendo...
- E o carrapato?
- Ah, o carrapato é que está ruim. Meu pai ainda não viu aquelas reses que pastam lá para a lagoa cercada? Faz pena! Vou até mandar buscar mais carrapaticida em Quixadá.
O Major atalhou:
- Em Quixadá não tem de venda. Pode ser que se encontre um resto é no Logradouro. Domingo, a comadre Inácia banhou o gado dela todo.
O moço foi entrando em casa:
- Então, depois do almoço vou lá.
Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada vermelha e pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os cascos do animal pareciam tirar fogo nos seixos do caminho. Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas do chão que estalavam como papel queimado. O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada. Vicente sentia por toda parte uma impressão ressequida de calor e aspereza. Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapou à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas brancas. E o chão, que em outro tempo a sombra cobria, era uma confusão desolada de galhos secos, cuja agressividade ainda mais se acentuava pelos espinhos.
Quando o rapaz deu de frente com a casa do Logradouro, toda branca, trepada num alto vermelho e nu, viu logo Conceição, no alpendre, resguardando os olhos com a mão em pala e procurando identificar o visitante que chegava na poeira do sol. Ao reconhecer Vicente, enfiou a cabeça pela banda aberta da meia-porta e gritou para a avó, que bilrava lá dentro:
- Mãe Nácia! o Vicente!
A velha chegou, metendo os óculos na caixa. Vicente, apeado, apertava alegremente a mão de Conceição, e dizia:
- Ainda aqui? Eu já fazia você na cidade!
Ela explicava:
- Pedi uma licença de um mês, para ver se a Mãe Nácia, quando se desenganar do inverno, vai comigo.
Vicente voltou-se para Dona Inácia, beijou-lhe a mão:
- E o que resolveu, tia Inácia?
- Não sei... por ora... Valha-me Deus! Mas como vai sua gente?
- Tudo bem. Mandaram lembranças.
As redes brancas, armadas das colunas à parede, com as varandas pendentes, ofereciam o seu conchego macio. já Vicente sentado, Conceição dizia:
- Que sol horrível! Não sei como não cega a gente... já estou preta e descascando, só do mormaço.
- Quanto mais eu, que passo o dia a cavalo...
A velha interveio:
- Mas você não é moreno como Conceição. Branco leva sol, fica corado; preto fica cinzento...
Vicente riu; deu um balanço na rede, e falou no que o trouxera ao Logradouro:
- Eu vim aqui para lhe pedir um favor. Soube que a senhora tinha carrapaticida e queria que me cedesse um bocado; o meu gado anda em tempo de cair.
- Quanto você quer?
- Coisa assim de litro a mais.
Dona inácia saiu, arrastando as chinelas. Vicente virou-se para a prima:
- Domingo atrasado as meninas cansaram de esperar por você!
- Eu até já ia lhe falar nisso. É porque não tive quem fosse comigo. Contava que Mãe Nácia quisesse ir de cadeirinha...
- Pois, no outro domingo, venho buscá-la. Pra você não enganar mais a gente.
Conceição abanou a cabeça:
- Você? Qual! é uma maçada muito grande para quem vive tão ocupado... Só tem tempo de pensar em trabalho... Juro que só veio aqui, hoje, por causa do carrapaticida. Você mesmo não disse, ainda agora?
Ele riu-se, corando:
- E se viesse por causa de alguma pessoa, não perdia meu tempo e minha viagem?
Conceição riu também:
- Muito obrigada! Então vir me ver é perder tempo? Pois deixe estar que no ano que vem eu trago aqui uma porção de moças bonitas para você poder aproveitar as viagens...
Dona Inácia voltava: - já mandei um moleque arrumar um jumento pra levar as garrafas. E agora me diga, meu filho: por que vocês não dão notícias? Parece que estão do outro lado do mar!...
Vicente apontou a prima:
- Por culpa da Conceição, que vive prometendo passar um dia lá em casa e nunca vai. A gente esperando por ela, deixa de vir.
A moça atalhou:
- Deixe de história! Eu só falei em ir lá no domingo passado.
Chegou uma cunhã com o café. E a conversa continuou a correr animada, enquanto a velha, que mandara trazer a almofada para o alpendre, trabalhava, trocando os bilros com ruído.
Quando Vicente se despediu, e montou ligeiro no cavalo que arrancou de galope, Conceição estirou-se na rede e ficou olhando o vulto branco que a poeira ruiva envolvia, até o ver se sumir atrás de um grupo de umarizeiras da várzea.
Todo o dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude. Sempre o conhecera querendo ser vaqueiro como um caboclo desambicioso, apesar do desgosto que com isso sentia a gente dele.
E a moça lembrou-se de certa vez, em casa do Major, no dia em que se inaugurou o gramofone, e as meninas, e ela própria, que também estava lá, puseram-se a dançar. Os pares eram o filho mais velho da casa hoje casado e promotor no Cariri, e dois outros rapazes, colegas dele, que tinham vindo passar as férias no sertão. Mal começou a dança, entrou Vicente, encourado, vermelho, com o guardapeito encarnado desenhando-lhe o busto forte e as longas perneiras ajustadas ao relevo poderoso das pernas. A Conceição, pareceu que uma rajada de saúde e de força invadia subitamente a sala, purificando-a do falsete agudo do gramofone, das reviravoltas estilizadas dos dançarinos.
Mas a mãe dele, que sentada ao sofá apreciava a dança, vendo-o, enxergou apenas o contraste deprimente da rudeza do filho com o pracianísmo dos outros, de cabelo empomadado, calças de vinco elegante e camisa fina por baixo da blusa caseira. Já Vicente enlaçava a prima que, rindo, saiu dançando orgulhosa do cavalheiro, enquanto, na sua ponta de sofá, a. pobre senhora sentiu os olhos cheios de lágrimas, e ficou alI chorando pelo filho tão bonito, tão forte, que não se envergonhava da diferença que fazia do irmão doutor e teimava em não querer “ser gente” ...
Passados porém alguns anos, já agora a velha senhora se conformava em não fazer de Vicente um doutor, e trazia-o ciumentamente preso a si, e o mimava a tal ponto, que fazia as irmãs protestarem:
- Credo! Para mamãe, o Cente é mais mimoso do que mesmo o caçula!...
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