Inácio - Monteiro Lobato
Extraido de “Cidades Mortas”
Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados, está provado -- a contrário sensu. Sem eles, como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo e sem maiores consequencias afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos inoportunos põem termo a duos de sofá em sala momentaneamente deserta?
Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e lá parte o borracho o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá pilha Romeu e Julieta em flagrante contato de epidermes petrificando-os com o clássico: "Que pouca vergonha!...".
Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina.
Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro. Por via disso lhe estragou o casamento com a Sinharinha Lemos, boa menina, a quem cinquenta contos de dote tornavam ótima.
Inácio era o rei dos acanhadões. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de sí e permanecia largo tempo idiotizado.
O progresso do seu namoro veio, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, concertadas tacitamente em conspirar contra o celibato do futuro bacharel. Uma das traças conspirativas foi o convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira , friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento. - e disso proveio a catástrofe...
Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com o papel de galã à força, que lhe atribuíam.
Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e lá parte o borracho o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá pilha Romeu e Julieta em flagrante contato de epidermes petrificando-os com o clássico: "Que pouca vergonha!...".
Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina.
Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro. Por via disso lhe estragou o casamento com a Sinharinha Lemos, boa menina, a quem cinquenta contos de dote tornavam ótima.
Inácio era o rei dos acanhadões. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de sí e permanecia largo tempo idiotizado.
O progresso do seu namoro veio, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, concertadas tacitamente em conspirar contra o celibato do futuro bacharel. Uma das traças conspirativas foi o convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira , friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento. - e disso proveio a catástrofe...
Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com o papel de galã à força, que lhe atribuíam.
Uma das moças, criaturinha requintada de malicia, muito "saída" e "semostradeira", interpelou-o sobre coisas do coração, idéias relativas ao casamento e também sobre a "noivinha" - tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda. Inácio avermelhou, tartamudeando palavras desconchavadas, enquanto o diabrete da menina maliciosamente insistia:
"Quando os doces, Sr. Inácio?".
Respostas mascadas, gaguejadas, inéptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
"Quando os doces, Sr. Inácio?".
Respostas mascadas, gaguejadas, inéptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. O pobre rapaz, por dá cá aquela palha, mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de fígado, sem consulta prévia. Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes. Esquisitice do Inácio: nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse Inácio em contrariá-los, amotinavam-se repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera a exigir com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mal momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalma-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro.
Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera a exigir com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mal momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalma-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro.
Pobre Inácio! A porejar suor gelado na asa do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio, de olhos arregalados, esperou a revolução intestina.
Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplicio daquele mártir, posto a tormentos de uma nova espécie.
- Você já reparou, Miloca, na "ganja" da Sinharinha? - disse uma sirigaita de “beleza” na testa. - está como quem viu o passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.
O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! - lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula. Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo rumores do mundo, seu cérebro entrava a funcionar normalmente, e seus olhos volveram outra vez às visões habituais. Estava nessa beatitude, quando:
- Você já reparou, Miloca, na "ganja" da Sinharinha? - disse uma sirigaita de “beleza” na testa. - está como quem viu o passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.
O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! - lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula. Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo rumores do mundo, seu cérebro entrava a funcionar normalmente, e seus olhos volveram outra vez às visões habituais. Estava nessa beatitude, quando:
- Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse-lhe dona Luísa, vendo-lhe o prato vazio - repita a dose !
O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E fora de si outra vez, tomado de pânico, o pobre moço exclamou :
- Não! Não! Muito obrigado!...
- Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos ?! Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.
- Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as injeitei. Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.
E não houve salvação ! Veio para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose dupla.
Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Maeterlink - ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso da Nora de Ibsen na Casa da Boneca e, disfarçadamente ele aguardou o milagre
E o milagre veio desta vez ! Um criado estouvado tropeçou no tapete e soltou o peru no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Inácio, um lampejo de gênio, agarra o fígado e mete-o no bolso.
Salvo! Nem dona Luiza nem os vizinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à goiabada sem maior incidente.
Antes da dançata, lembrou alguém recitativos e a espevitadissima Miloca veio ter com Inácio.
- A festa é sua, doutor Inácio. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que o doutor recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano, é ela quem o vai acompanhar.... Nem assim ? Mauzinho ! Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A “Douda de Albano?” Conheço sim, é linda, embora um pouco fora de moda. Toque “Dalila”, Sinharinha, bem piano... assim...
Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura consorte preludiava a “Dalila” em surdina. E declamou a “Douda de Albano” .
Pelo meio dessa desgraça em, verso, ali pela quarta o quinta estrofe, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe nas sobrancelhas, comichando qual importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz plaff ! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o lance.
Mas desde este momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...
E Inácio recitava.: "O navio negreiro", "As duas ilhas", "Vozes da Africa", "O Tejo era sereno".
- Não! Não! Muito obrigado!...
- Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos ?! Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.
- Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as injeitei. Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.
E não houve salvação ! Veio para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose dupla.
Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Maeterlink - ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso da Nora de Ibsen na Casa da Boneca e, disfarçadamente ele aguardou o milagre
E o milagre veio desta vez ! Um criado estouvado tropeçou no tapete e soltou o peru no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Inácio, um lampejo de gênio, agarra o fígado e mete-o no bolso.
Salvo! Nem dona Luiza nem os vizinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à goiabada sem maior incidente.
Antes da dançata, lembrou alguém recitativos e a espevitadissima Miloca veio ter com Inácio.
- A festa é sua, doutor Inácio. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que o doutor recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano, é ela quem o vai acompanhar.... Nem assim ? Mauzinho ! Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A “Douda de Albano?” Conheço sim, é linda, embora um pouco fora de moda. Toque “Dalila”, Sinharinha, bem piano... assim...
Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura consorte preludiava a “Dalila” em surdina. E declamou a “Douda de Albano” .
Pelo meio dessa desgraça em, verso, ali pela quarta o quinta estrofe, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe nas sobrancelhas, comichando qual importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz plaff ! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o lance.
Mas desde este momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...
E Inácio recitava.: "O navio negreiro", "As duas ilhas", "Vozes da Africa", "O Tejo era sereno".
Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou "O corvo, de Edgar Poe, traduzido pelo Sr. João Kopke; recitou o "Quisera amar-te", o "Acorda donzela", borbotou poemetos, modinhas e quadras.
Num canto da sala Sinharinha estava, chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?
Inácio firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa), e farto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda Inês", "Do reino às rédeas leve", “O Adamastor” - tudo!...
E esgotado Camões, ia lhe saindo um ponto de filosofia de direito – “A escola de Bentham” - A coisa última que lhe restava na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu de costas, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamíssima víscera de má morte.
O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio mudou de terra. E sabem por que Inácio mudou de terra ? Aquele Major Lemos ! Pois o desalmado não deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas que tinha um grave defeito: quando gostava de um prato, não se contentava em comer e repetir - ainda levava escondido no bolso o que podia ?
---- F I M -----------------------------------------Num canto da sala Sinharinha estava, chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?
Inácio firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa), e farto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda Inês", "Do reino às rédeas leve", “O Adamastor” - tudo!...
E esgotado Camões, ia lhe saindo um ponto de filosofia de direito – “A escola de Bentham” - A coisa última que lhe restava na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu de costas, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamíssima víscera de má morte.
O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio mudou de terra. E sabem por que Inácio mudou de terra ? Aquele Major Lemos ! Pois o desalmado não deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas que tinha um grave defeito: quando gostava de um prato, não se contentava em comer e repetir - ainda levava escondido no bolso o que podia ?
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