Ela é inesquecível - Walcyr Carrasco
Minha mãe era uma mulher simples e alegre. Chamava-se Angela. Filha de emigrantes espanhóis, uma das mais novas entre 12 irmãos, parou de estudar aos 9 anos, quando deixou a escola para colher algodão. Começou a namorar meu pai aos 17, casou-se aos 20. Numa festa tumultuada. Meus dois avós espanhóis divergiram sobre os custos e arrancaram os revólveres. Meu pai era telegrafista da Rede Sorocabana. Mas a guerra entre minha avó e mamãe era feroz. O casal mudou de cidade. O temperamento espanhol não é lenda, garanto! Saímos de Bernardino de Campos e fomos para Marília. Meu pai aposentou-se por problemas nos olhos. Ela abriu um bazar, que vendia de tudo: de fitas a, principalmente, brinquedos. Morávamos atrás dele. Sorridente, minha mãe só tinha um segredo para as freguesas. Era evangélica. Na esquina, um colégio de freiras, gigantesco, com internas. Vendia cadernos, lápis. Tinha medo de que as freiras a hostilizassem. Nunca revelava sua religião. Meu pai era agnóstico. Ela, na igreja, preferia ficar na creche, com as crianças, a ouvir sermões.
Nem se importava com cozinha. Dava fugidinhas do balcão para fazer o almoço, o jantar. Reintegrado, meu pai voltou a trabalhar numa cidade próxima, Assis. Juntou os turnos. Passava três dias por semana fora. Com seu salário e o esforço dela conseguiram comprar uns sobradinhos. Ela adorava ficar no balcão, ouvindo e difundindo todas as notícias do bairro. Fofocas! Também herdei esse talento dela. Mas chamo de faro jornalístico.
Brincava com a gente como criança. Mais tarde, eu me apaixonei pelos livros. Emprestava de uma vizinha, Heloísa. Pegava na biblioteca. Nem papai nem ela recusavam um dinheirinho para os livros que eu adorava. Curiosa, depois de vender o bazar, começou a ler também. Foi uma inversão. Eu, o filho, criei o hábito de leitura na mãe.
Éramos eu e Airton. Aos 40, minha mãe teve o Ney. Tanto ele quanto Airton estudavam música. Eu, do meio, sempre fui mais das letras. Mais tarde, papai entrou em negócios complicados, perdemos muito e viemos para São Paulo. Ela vendia roupas feitas, bordava toalhas e tricotava malhas. Ainda tenho duas, feitas por ela. Só uso de vez em quando, me sinto aquecido por ela! As toalhas estão guardadas, às vezes olho e lembro dela de agulha na mão.
Era mais moderna que as mulheres de seu tempo. Sempre fez questão de trabalhar. Inventava o que fazer. Meu irmão Airton brincou esses dias: hoje deve estar no céu vendendo túnicas a capetinhas intrusos, para se fingirem de anjos. Tenho uma foto que adoro, de suas Bodas de Prata – onde pela primeira e única vez papai e mamãe se beijaram em público.
Meu pai morreu aos 64 anos, só um a mais do que tenho hoje. Ela, cheia de saúde, manteve o apartamento em Santos, onde moravam desde que ele se aposentou. Alugamos outro, em São Paulo, para estarmos mais perto. Um ano depois telefonou:
– Vou voltar para Santos!
Nem se importava com cozinha. Dava fugidinhas do balcão para fazer o almoço, o jantar. Reintegrado, meu pai voltou a trabalhar numa cidade próxima, Assis. Juntou os turnos. Passava três dias por semana fora. Com seu salário e o esforço dela conseguiram comprar uns sobradinhos. Ela adorava ficar no balcão, ouvindo e difundindo todas as notícias do bairro. Fofocas! Também herdei esse talento dela. Mas chamo de faro jornalístico.
Brincava com a gente como criança. Mais tarde, eu me apaixonei pelos livros. Emprestava de uma vizinha, Heloísa. Pegava na biblioteca. Nem papai nem ela recusavam um dinheirinho para os livros que eu adorava. Curiosa, depois de vender o bazar, começou a ler também. Foi uma inversão. Eu, o filho, criei o hábito de leitura na mãe.
Éramos eu e Airton. Aos 40, minha mãe teve o Ney. Tanto ele quanto Airton estudavam música. Eu, do meio, sempre fui mais das letras. Mais tarde, papai entrou em negócios complicados, perdemos muito e viemos para São Paulo. Ela vendia roupas feitas, bordava toalhas e tricotava malhas. Ainda tenho duas, feitas por ela. Só uso de vez em quando, me sinto aquecido por ela! As toalhas estão guardadas, às vezes olho e lembro dela de agulha na mão.
Era mais moderna que as mulheres de seu tempo. Sempre fez questão de trabalhar. Inventava o que fazer. Meu irmão Airton brincou esses dias: hoje deve estar no céu vendendo túnicas a capetinhas intrusos, para se fingirem de anjos. Tenho uma foto que adoro, de suas Bodas de Prata – onde pela primeira e única vez papai e mamãe se beijaram em público.
Meu pai morreu aos 64 anos, só um a mais do que tenho hoje. Ela, cheia de saúde, manteve o apartamento em Santos, onde moravam desde que ele se aposentou. Alugamos outro, em São Paulo, para estarmos mais perto. Um ano depois telefonou:
– Vou voltar para Santos!
Da surpresa voei à suspeita. Qual o motivo?
– Mãe, você arrumou namorado?
– Arrumei.
Tremi. Seria um malandro de praia, de 30 anos?
– É o vizinho de cima, tem a mesma idade que eu.
Perguntei o que nunca imaginei perguntar algum dia:
– Já transaram?
– Já e foi bom.
– Seja feliz, mãe.
Ele não podia casar. Acham que sou novelista à toa? Sua mulher, mãe de duas filhas adultas, era doente mental. O apartamento, com barras de ferro nas janelas. Durante anos ela o ajudou até a escolher roupas para ela. Dez anos depois, mamãe teve dificuldades para respirar. Diagnóstico: água no pulmão. Fui visitar.
– A senhora não precisa de médico, mas de encanador.
Rimos. Já começávamos a fingir. Era metástase de um câncer silencioso, que tomara todos os órgãos. Então eu rezei para que não demorasse muito. Para que não sofresse. Mas sabem, quando a gente reza assim é mentira, ninguém quer perder a mãe. O tempo fica em suspenso, sabemos que algo vai acontecer, mas não hoje, amanhã! E amanhã, amanhã!
Seu Olympio, o namorado, ficou com ela até a morte. Já faz tanto tempo! Nos primeiros tempos, era tanta saudade! Hoje ainda, quando me acontece uma coisa boa, sinto uma enorme necessidade de ligar para contar e ouvir seu riso de felicidade do outro lado da linha. No Dia das Mães, dói tanto! Dá vontade de ver, de telefonar. Às vezes, por um momento me esqueço. Pego o celular. E então lembro que nem sei mais o número. Deve ser de outra pessoa. E que ela não está mais lá. Simplesmente, não está mais lá.
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