O mar
Extraído de “O morto”, c. 1910
Coelho Neto
(Henrique Maximiano Coelho Neto)
O mar, desde os meus anos mais tenros, foi sempre o grande encanto dos meus olhos. Meu pai costumava levar-me ao Passeio e, do terraço, alongando a vista pelas aguas extensas, mostrava-me o caminho por onde havia entrado o paquete que o trouxera do Norte, menino ainda. E falava das "lentas viagens entre aguas e céus, na solidão melancólica do oceano, onde só o espirito de Deus acompanha o viajante. Contava-me a vida monótona de bordo, os receios que assaltam os corações quando um rebojo mais forte da onda livre faz o navio jogar como uma rede balançada com força ; e nas vizinhanças de terra, quando a aragem morna traz um vago perfume de florestas, as jangadas que passam, uma grande vela pojada, o jangadeiro encolhido, o cachimbo nos beiços, sumindo-se, ás vezes, como se naufragasse, por trás de um vagalhão grosso que vem rolando, sem bulha, como a onda que o vento faz numa cortina.
Eu ouvia com uma grande vontade de transpor a barra, de sair para essa vastidão de onde vinham pesados vapores e brigues ligeiros, que, ao cair da tarde, á luz suavíssima e terna do crepúsculo, entravam procurando o calmo abrigo da baía, como o gado, nos campos, chega vagarosamente, mugindo, para as cercanias do curral. E sombras cabiam; o céu acetinado, de um brilho de jaspe cerúleo (1), esbrazeava-se todo para os lados do ocaso como uma coivara (2), e as estrelas que apontavam pareciam fagulhas espirrando do incêndio.
Meu pai, os cotovelos fincados na balaustrada, calava-se; eu calava-me, com os olhos nos montes que enegreciam. Em torno de nós crianças brincavam, mocinhas riam, grupos chalravam(3) numa viva expansão. Na folhagem chiavam cigarras, e sons de musica, em distancia, davam um tom jucundo de quermesse àquele perpassar de gente pelas alamedas, á beira dos lagos onde nadavam cisnes alvos. A lua, de uma inefável brancura, subia no céu, com a lentidão de um brigue que se faz ao largo, e no mar, espelhento e tranquilo, uma esteira de claridade alastrava tremula.
Essa paixão de romântico acentuou-se com a idade. Toda a minha ambição resumia-se num desejo simples e fácil : viajar. Para saciar-me aos poucos, aos domingos vestia-me com apuro, e só, ou com algum companheiro, atravessava a baia no tombadilho das barcas, sorvendo, com avidez, o ar salitrado e fresco que soprava enfunando velas de escaleres, e ia olhando de perto, com uma curiosidade aguda, os formidáveis couraçados, os grandes cruzadores com os seus canhões espichados nas portinholas.
As vezes soavam toques de corneta, muito finos e tristes no silencio e na placidez da tarde meiga, e marinheiros subiam pelos cabos, com destreza, como grandes aranhas negras.
Que de pensamentos me nasciam então ! O que eu sonhava vendo todos esses navios : naufrágios, batalhas ou pacificas travessias pelos mares de além, amanhecendo diante de praias alvas, que subiam para cidades maravilhosas, onde elefantes pesados caminhavam carregados de escravas nuas, por entre palácios de mármore e templos cheios de deuses e de bailadeiras, como nas historias orientais que ouvira em criança.
(1) Jaspe : espécie de pedra preciosa; cerúleo : da cor do céu, de cor azul escuro;
(2) Coivara : pequena fogueira feita de galhos
(3) Chalrar : falar à toa, num grupo de pessoas
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