O engenho do seu Lula - Fogo morto - Jose Lins do Rego
(Fogo morto, 2ª parte, capítulo 4, 1943.)
Nota do bloguista : finda a escravidão, escravos libertos; o engenho Santa Fé viu se sem mão de obra, abandonado. Nos tempos da escravidão seu Lula, dono do engenho era cruel com os negros, o que valeu-lhe a repudia da sociedade. Decretada a Abolição, os negros abandonaram o engenho, deixando seu Lula e sua família completamente sem amparo. Dona Amélia, esposa do seu Lula, entre desgostosa e orgulhosa, descreve o marido e os seus tempos de glória. Procura amenizar a figura malfazeja do marido, pintando o como bom pai e marido, culpando Deodato, o feitor, pelos maus tratos aos agora libertos escravos.
Chegou a abolição e os negros do Santa Fé se foram para os outros engenhos. Ficara somente com seu Lula o boleeiro Macário, que tinha paixão pelo ofício. Até as negras da cozinha ganharam o mundo. E o Santa Fé ficou com os partidos no mato, com o negro Deodato sem gosto para o eito, para a moagem que se aproximava. Só a muito custo apareceram trabalhadores para os serviços do campo. Onde encontrar mestre de açúcar, caldeireiros, purgador? O Santa Rosa acudiu o Santa Fé nas dificuldades, e seu Lula pôde tirar a sua safra pequena. O povo cercava os negros libertos para ouvir histórias de torturas.
Fazia-se romance com os sofrimentos das vítimas de Deodato. Quando o carro do capitão Lula de Holanda passava, corria gente para ver o monstro, todo bem vestido, com a família cheia de luxo, que ia para a missa. Um jornal da Paraíba falara em crimes da escravidão e nomeava o Santa Fé, o Itapuá, como de senhores algozes. D. Amélia leu o artigo e chorou com as palavras impiedosas. Não era assim. Tudo aquilo perturbava a vida do Santa Fé. Ela bem que sentia que o marido vinha mudando de humores. Raras vezes era aquele Lula de outrora, de olhar cismarento, o homem de tanta ternura para com sua mulher. Agora não parecia que a quisesse como antigamente. Via-o no pegadio com a filha que voltara do colégio de Recife, uma moça feita. Neném era a cara do pai. Dela não tenha coisa nenhuma. Achava linda a sua filha. Tinha aqueles cabelos louros, e os olhos azuis, a pele macia, branca como alfenim. E era uma menina doce, tão sem gênio que encantava a todo o mundo. Viera do primeiro ano do colégio das freiras cheia de devoção, com modos de moça. O pai cercava-a de cuidados, de um zelo que ela, como mãe, achava até exagerado. Seria a sua filha a moça mais bem educada da várzea. Iam ao Pilar de carruagem, e reparava como o marido olhava embevecido para a menina, no banco da frente, vestida como gente grande. Sabia que o povo falava mal de seu marido. Via os olhares que sacudiam em cima de todos quando entravam na igreja. No tempo de seu pai tudo era bem diferente. Viam-se cercados dos conhecidos do Pilar, das filhas do juiz, das irmãs do padre, dos amigos do capitão Tomaz. Agora era sair do carro e entrar na igreja: voltar da igreja para o carro. O que haveria contra Lula para aquela hostilidade? Seria que fosse inveja? Lula era homem de sua casa, de certo trato, de orgulho que ela não apoiava. Era o orgulho do marido. Havia nele uma maneira de sentir as coisas que talvez desgostasse a gente do Pilar. Lula falava de sua família de Pernambuco com soberba. Não procurava discussão com o marido por motivos assim, sem importância. Deixava que ele ficasse com seu orgulho de raça. Para que brigar? Família era para Lula coisa sagrada. Fora infeliz com o pai, sofrera o diabo com a mãe viúva, perseguida pela política. Lula tinha razão de falar do seu povo com aquela arrogância toda. Em casa ele só via a filha. Dizia sempre que Neném era a cara da sua mãe. Nunca vira semelhança igual. Tinha tudo da família de Recife, dos velhos Chacon, gente que sabia entrar e sair, gente de trato, sem aquela bruteza dos engenhos. D. Amélia não contrariava o marido mas sentia-se com aquele falar de desprezo com os seus. Por que Lula falava assim contra o povo dos engenhos?
Não era ele parente do povo do seu pai? Até aquele dia não tivera a menor rusga com o seu marido. O que ele queria que fizesse, fazia sem protesto. Neném era como se só fosse filha dele. Lula fazia de pai e de mãe da menina. A princípio achou bonito aquela dedicação do marido. Tudo que fosse para Neném teria que ser feito por ele. Agora via que Lula exagerava. Moça só se entendia bem com a mãe. Seria a mãe quem saberia melhor de sua precisão, de seus desejos. Lula fazia de Neném toda a razão de sua vida. Quando a menina estava no colégio escrevia cartas compridas, longas cartas que ela não sabia o que mandavam dizer. Que assunto teria o seu marido para escrever tanto a uma filha moça de colégio? Não lhe falava daquilo para que ele não desconfiasse. Neném escrevia muito ao pai. Às vezes, Lula lhe lia as cartas da filha, doutras não lhe mostrava nada. Perguntava-lhe:
- Então, Lula, o que Neném mandou dizer?
O marido dava uma desculpa qualquer e mudava de assunto. Neném era uma menina tão cândida, tão doce. Tinha receio que as cavilações do pai estragassem a menina. Por mais que temesse não se meteria a contrariar o marido. Lembrava-se da fúria que se apoderara dele quando o procurou para condenar as ações de Deodato. Sabia que os negros estavam apanhando sem necessidade e procurara Lula para lhe falar daquela miséria. Nunca vira uma pessoa exasperar-se tanto. Era como se ela tivesse se revoltado. Vira o que sua mãe sofrera com a malquerença de Lula. Pobre de sua mãe que se dera como uma escrava aos seus deveres. Fora ingrata com ela. Uma das coisas que mais lhe doíam era pensar na morte dela, depois daquela noite da discussão com Lula. Tudo por causa de Neném. Aquele amor de seu marido, aquele cuidado pela filha, não podia ser boa coisa para a criação da moça. E era todo o pensamento de D. Amélia. Os negros do engenho se foram, até as negras de sua mãe não quiseram ficar na cozinha. Os do Santa Rosa haviam ficado na senzala. Eram amigos do senhor de engenho. Se o seu pai estivesse vivo, tudo seria como no Santa Rosa. Via-se D. Amélia cercada de pensamentos que não desejava que fossem seus. Lula não gostava dos negros. No dia da abolição os pobres foram para a frente do engenho, doidos de alegria. Teve medo. O feitor ganhara a catinga, e Lula trouxera para a sala os clavinotes armados. Os negros cantavam no pátio, com uma fogueira acesa. Ninguém dormiu naquela noite. A negra Germana chorava como menina. A cantoria era de coco, era de reza, era dança, e ao mesmo tempo parecia um bendito de igreja. Lula trancara Neném no quarto, e de clavinote entre as pernas ficara sentado no sofá, à espera de inimigo que lhe viesse ao encontro. A noite se foi, a madrugada apareceu. Na estrada, os negros dos outros engenhos passavam aos gritos. Gritaram na porta da casa-grande. Lula permanecera na porta e eles partiram. Era um cabra do Pilar, com um grupo de negros.
- Capitão, nós estamos atrás de Deodato.
Lula, com a voz trêmula de raiva, não se conteve. Aos gritos respondeu que fossem para o inferno. O cabra não continuou, mas quando o capitão Lula de Holanda cessou a raiva ele foi dizendo:
- Capitão, nós estamos aqui para pegar o seu feitor. É ordem do delegado.
- Ordem de quem? Ordem de quem?
E D. Amélia viu o seu marido pegar do clavinote e apontar para os negros:
- Cambada de cachorros, saiam de minha porta senão mando fogo.
Os negros se foram de cabeça baixa, e ela viu pela primeira vez uma coisa horrível. O seu marido empalidecer, procurar o sofá e cair com o corpo todo se torcendo, como se tudo nele fosse se partir. Aquilo durou uns minutos, mas foram os instantes piores da sua vida. A baba branca que saía da boca de Lula, o bater desesperado dos braços, das pernas, fizeram-lhe medo. Correu para dentro de casa. E não havia uma viva alma lá dentro. Todas as negras tinham se ido. A casa vazia. Só Olívia no quarto falava, falava sem parar. Voltou para a sala e viu que Lula voltava a si, e teve pena de ver o marido no estado em que estava.
- Amélia, Amélia, manda Germana preparar um escalda-pé para mim.
E com aquela impressão terrível voltou para a cozinha. Lá havia um silêncio mortal. A cozinha do Santa Fé, sem uma negra, despovoada de sua gente. Todos se foram, todas as negras ganharam o mundo, até a negra Margarida que criara Neném. Não havia quem quisesse ficar no Santa Fé. O ataque de Lula obrigara-a a pensar na vida com medo. O marido era um homem doente. Vivera com ele até aquele dia e nunca acontecera nada demais. Era um homem de boa saúde. E de repente vira-o naquele estado de penúria. Sofria de ataques. E quando apareceu com a bacia com a água quente, Lula parecia que voltara da morte. Tinha os olhos fundos, a cara de um homem dez anos mais velho. Ficara ele em silêncio absoluto até o dia seguinte. A noite, na casa-grande, Olivia resmungava, falava, com aquela agonia de sempre. Ela estava só, completamente só. Lula deitara-se para dormir. Começou a ter medo. Era capaz de os negros libertos de outros engenhos aparecerem ali para atacá-los. As cantorias do coco enchiam a noite de um baticum que não parava. Agora percebia bem o canto da negrada, lá para as bandas do Pilar. Os negros dançavam de alegria, na festa da liberdade. Os negros de seu engenho, os que foram de seu pai, estavam no coco fazendo o que bem quisessem.
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