O jantar
Antônio Bulhões
- Pai...
O assunto devia ser importante. Rendido, em horário integral, à família e ao trabalho, a semana inteira, tinha Batista por sagrado, para seu exclusivo e bel-prazer, os domingos. O que todo mundo, sem exceções, respeitava. Consumia-o com método. Café na cama, levado pela mulher, leitura meticulosa dos jornais (não fosse acontecer algo importante, por aí, sem que o soubesse), almoço com as comidinhas que mais apreciava, futebol (jogasse quem jogasse), alternativamente um romance (gostava de tudo), televisão ao entardecer em diante (não importava o programa), ceia à base de chá com torradas, geléia e queijo, enfim cama. Merecia essa liberdade. Ninguém dava tão duro, no batente, ninguém se dedicava tanto ao lar, nos outros seis dias. Sem sair fora do sério. Se alguma aventura tivesse tido, não se soubera, rendido, em horário integral, à família e ao trabalho.
- Pai !
Ao imperativo do chamado, mesclava-se doçura de súplica irresistível. Fechou o livro, não sem antes marcar a página, dobrando-a no canto de cima, e aguardou. Vencido o primeiro round, Cláudia sentou-se ao seu lado, toda filha, na cadeira baixa que não servia para nada, e que vivia rolando pela casa, responsável por inúmeros tropeções e dolorosas caneladas. Estava linda, apesar do traje: as pernas esgalgas desenhadas pelas blue jeans desbotadas via de prolongados banhos em soluções de água sanitária, bainhas esgarçadas, sandálias indescritíveis, camiseta de português, cabelos soltos, escorridos, alcançando a cintura. Os bicos dos seios juvenis furavam a tênue malha branca. Batista desistira, desde quando !, de reclamar dessas e outras inconveniências. Limitava-se a canhestra ironia de, quando a via diferentemente vestida, perguntar pelo “uniforme hippie”. Adorava-a.
- Vou me casar.
- Com o Eduardo ? – perguntou, cauteloso, na incerteza do que ia ouvir.
- Com o Eduardo, é claro. Pois se nós estamos numa boa há seis meses ! Com quem ia ser ?
Batista recuperou-se rápido.
- Tem razão. Aliás, saiba que eu gosto dele.
Claudio meio que transigiu :
- Antes assim.
Foi aí que o Batista quase entornou o caldo. Tomando a nuvem por Juno, e interpretando a conversa como uma volta aos dias saudosos em que – isto fora antes dela se enturmar com uma garotada lá de Ipanema – costumavam praticar, descansadamente, sobre mil e umas coisas, inquiriu :
- O Eduardo já arranjou emprego ?
- É claro que não – reagiu Claudia, insultada – Eduardo é um artista ! É quem faz as melhores coisas da feira de artesanato, no General Osório. Você está querendo que sufoque sua vocação, que se reprima, que não assuma toda aquela chama interior ?
- Mas até a chama interior dar dinheiro, vai levar um século ! Ou vocês querem ficar noivos e esperar ?
- Francamente pai ! Ficar noivos – já somos noivos, entre nós, e pronto. Quanto a esperar, não aguento – fez uma pausa, pensando se devia dizer tudo logo, e achou melhor cortar o mal pela raiz :
- Estou grávida, e não topo essa de aborto.
Não restava mais dúvida de que o assunto era importante. Batista, acuado ante a ternura que sentia pela filha, meiga menina de olhos tão bonitos, contraposta à tensa realidade com que se defrontava, ficou inerme (1). Aproximou-se devagar da janela, contemplando a ruazinha triste, sem graça, sem sol e sem mar, as mirradas árvores teimosas, incapaz de pronunciar qualquer palavra, a língua presa, a garganta congestionada pela súbita angustia.
Através da nuvem de lágrimas, que pudicamente escondia, voltando as costas para a sala, adivinhava já a tremula figura do neto em ser, um dia, em longínquo futuro próximo, o filho de Eduardo, à sua imagem e semelhança sob contornos difusos : rabo de cavalo, barba e bigode revoltos, blusa indiana de algodão cru com desenhos bizantinos, solta no corpo feito bata de mulher, calças de veludo de algodão marrom, mosqueadas de indefiníveis manchas amarelas, tênis azuis de sola branca... Tornou a si ante a manifestação do desejo de Claudia :
- Queria que você desse um jantar aqui em casa – Arrematando, bastante sem jeito : - para o Eduardo.
- Ótimo, ótimo. Vou providenciar, milha filha. Na data que for melhor para vocês.
Nas semanas que se seguiram, Batista, o chefe de família exemplar, duro do batente, dedicado ao lar e ao serviço em horário integral, logrou lentamente recompor-se, por dentro, e começou aos poucos a se preparar para o grande evento. À medida que o tempo transcorria, fazia seu efeito. As emoções desencontradas nele desencadeadas iam se ordenando sozinhas, decantadas em amor e vocação de paz. Chegou a comentar :
- Leonor, apesar dos pesares, são todos burgueses. Não passam sem o formalismo. Vai ver que ele vem aqui pedir a mão dela ! Bem, não é que vá proceder como se fazia antigamente, as pessoas tesas nas poltronas, feito personagens, cheia de nós pelas costas, acertando os relógios. A época não está para isso. Mas que o Eduardo, no fundo, precisa de nossa benção, precisa. Não é engraçado ?
Pelo visto, imaginava, iam acabar se casando na igreja, direitinho, Claudia de véu e grinalda... Seria verdadeira a hipótese ou se tratava unicamente (a ideia do jantar) de um gesto que a filha (como a mãe suspeitava), carinhosa de índole, e jamais inteiramente desligada do pai, apesar de mil e uma discussões, não resistira ? Não importa a indagação. Batista, assim pensando, assim sentia, e isto, somente, é que restava. Mandou caprichar no menu.
Quando soou a campainha, enfim, para a chegada do noivo, naquela noite que se tornaria memorável, Claudia ainda no banheiro, terminando de arrumar-se, a mãe na cozinha dndo os últimos retoques nos enfeites na salada de maionese, Batista empertigou-se solene, pronto para a cerimonia votiva. Trajava slack (2) de brim esfarrapado, de cor irreconhecível, a blusa meio desabotoada, o peito recoberto de colares, cruzes, figas, estrelas de cinco pontas e medalhas, no pulso direito duas correntes (uma de couro, outra de prata), cultivara fartas costeletas, caprichara nas botinhas surradas. Abriu a porta, resoluto, e estendeu a mão a Eduardo, que entreparou na soleira por um segundo (apenas por um segundo) imóvel – impecável no jaquetão azul marinho super bem passado, camisa de alvo poliéster, gravata prateada, meias e sapatos pretos rebrilhantes, queixo e faces escanhoadas (3) de executivo moderno, a coifa (4) domesticada a poder de alguma tesoura e muito laquê.
(1) Inerme : inofensivo, desarmado
(2) Slack – conjunto de roupa esportiva, leve, composto de calça e blusa de mesmo tecido.
(3) Escanhoar – barbear com capricho
(4) Coifa – espécie de rede, usada para envolver os cabelos
Nenhum comentário:
Postar um comentário