quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O filho da costureira (Drauzio Varella)

 

O filho da costureira - Drauzio Varella

Extraído do livro “Por um Fio” 
    A chegada da morte nem sempre tem o significado de desgraça. Não há quem discorde quando essa afirmativa é aplicada a pessoas decrépitas, aos que enfrentam graves padecimentos físicos, dores incontroláveis, ou àqueles que perderam o domínio das faculdades mentais. Fora de tais situações, no entanto, associamos esse momento à tragédia, à tristeza profunda e ao desconsolo.
    Pessoalmente, fui marcado pela conotação dramática da morte em minha infância no Brás, habitado por imigrantes oriundos de pequenas aldeias da Itália, Portugal e Espanha, que vinham atrás de trabalho nas fábricas do bairro paulistano. Quando morria alguém da família, estendiam na janela um pedaço de veludo preto com franjas douradas e montavam o velório na própria casa, com o caixão sobre a mesa de jantar, entre quatro castiçais de prata que espalhavam o cheiro forte das velas, para mim definitivamente associado à presença da morte.
    Às crianças, não permitiam entrar na sala em que jazia o corpo Nossa única oportunidade de acesso visual à cerimônia acontecia na saída para o enterro, momento que aguardávamos com ansiedade, na calçada. O sinal de que esse instante se aproximava era dado pela chegada do carro funerário, que estacionava em frente à casa. Pela janela, ouvíamos a oração final do padre, seguida dos lamentos e gritos de desespero das mulheres quando a tampa do caixão era fechada.
    Não demorava para saírem os homens de semblante pesaroso e terno escuro, com uma faixa preta na lapela, carregando o caixão pelas alças. Nessa hora, a intensidade da choradeira atingia o auge; havia mulheres que se agarravam ao caixão para puxá-lo de volta, outras se atiravam contra as janelas do rabecão.
    A tragédia da morte representada por essas imagens teatrais permaneceu congelada em minha imaginação até os primeiros meses de exercício da cancerologia. Tomei consciência e comecei a me livrar dela aos trinta e dois anos, graças a seu Vitorino, um senhor nascido no interior de Minas, no início do século XX, como conseqüência da paixão de uma costureira por um mascate sírio que visitava a cidade a cada três semanas. Para fugir do falatório do lugar, a jovem mãe solteira veio para São Paulo com o menino e se instalou na casa da tia-avó, numa travessa do largo São José do Belém, um fim de mundo naquele tempo.
    Costureira habilidosa e infatigável, em poucos anos ela pôde morar só com o filho e pagar-lhe os estudos no colégio Coração de Jesus, dos padres salesianos, até formá-lo contador.
    Seu Vitorino tinha mulher e duas filhas casadas quando o conheci, com o abdômen distendido, cheio de líquido, por causa de um tumor avançado no fígado. Tratei dele apenas um mês, a segunda metade do qual em visitas diárias a seu leito hospitalar. Nesse período jamais o encontrei sozinho; a esposa e as filhas se revezavam, atenciosas e solidárias. Numa das visitas, deparei com as três a cuidar dele e, em tom de brincadeira, disse-lhe que me sentiria realizado se um dia recebesse de minha mulher e de minhas filhas o amor que as dele lhe dedicavam.
- Não é difícil, é só o senhor ser para elas o marido e o pai que ele tem sido para nós - respondeu a mais velha.
    Minutos antes de seu Vitorino falecer, fui chamado para vê-lo. No quarto, a esposa acariciava-lhe os cabelos; do outro lado, de frente para o pai, as filhas, em pé, abraçadas pelos maridos, guardavam pequena distância do leito. O pôr do-sol deixava o quarto alaranjado.
    Inconsciente, seu Vitorino respirava com grande dificuldade. Acelerei o gotejamento do soro com morfina para impedir que ele sentisse algum mal estar e aguardei ao lado, a observar em silêncio os movimentos respiratórios cada vez mais espaçados e superficiais. Cinco minutos depois, uma pausa demorada antecedeu um último estertor, que produziu a contração dos músculos do pescoço e provocou a emissão de um som rouco, quase inaudível, de curtíssima duração. Nada mais.
    Ninguém chorou. Ficamos na posição em que nos encontrávamos, estáticos, por um tempo longo. Nunca havia imaginado que a morte pudesse trazer tamanha paz. 

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