quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Os cavalinhos de Platiplanto (José J. Veiga)

Extraído de “Os Cavalinhos de Platiplanto”.

escritor José J. Veiga

O meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança. O meu avô Rubem havia me prometido um cavalinho de sua fazenda do Chove-Chuva se eu deixasse lancetarem o meu pé, arruinado com uma estrepada no brinquedo do pique. Por duas vezes o farmacêutico Osmúsio estivera lá em casa com sua caixa de ferrinhos para o serviço, mas eu fiz tamanho escarcéu que ele não chegou a passar da porta do quarto. Da segunda vez meu pai pediu a seu Osmúsio que esperasse na varanda enquanto ele ia ter uma conversa comigo. Eu sabia bem que espécie de conversa seria; e aproveitando a vantagem da doença, mal ele caminhou para a cama eu comecei novamente a chorar e gritar, esperando atrair a simpatia de minha mãe e, se possível, também a de algum vizinho para reforçar.

Por sorte vovô Rubem ia chegando justamente naquela hora. Quando vi a barba dele apontar na porta, compreendi que estava salvo pelo menos por aquela vez; era uma regra assentada lá em casa que ninguém devia contrariar vovô Rubem. Em todo caso chorei um pouco mais para consolidar minha vitória, e só sosseguei quando ele intimou meu pai a sair do quarto.

Vovô sentou-se na beira da cama, pôs o chapéu e a bengala ao meu lado e perguntou por que era que meu pai estava judiando comigo. Para impressioná-lo melhor eu disse que era porque eu não queria deixar seu Osmúsio cortar o meu pé. Cortar fora? Não era exatamente isso o que eu tinha querido dizer, mas achei eficaz confirmar; e por prudência não falei, apenas bati a cabeça.

—Mas que malvados! Então isso se faz? Deixa eu ver.

Vovô tirou os óculos, assentou-os no nariz e começou a fazer um exame demorado de meu pé. Olhou-o por cima, por baixo, de lado, apalpou-o e perguntou se doía. Naturalmente eu não ia dizer que não, e até ainda dei uns gemidos calculados. Ele tirou os óculos, fez uma cara muito séria e disse:

—É exagero deles. Não é preciso cortar. Basta lancetar. Ele deve ter notado o meu desapontamento, porque explicou depressa, fazendo cócega na sola do meu pé:

—Mas nessas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve é o dono da doença. Se você não disser que pode, eu não deixo ninguém mexer, nem orei. Você não é mais desses menininhos de cueiro, que não têm querer. Na festa do Divino você já vai vestir um parelhinho de calça comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar também um cavalinho pra você acompanhar a folia.

—Com arreio mexicano?

—Com arreio mexicano. Já encomendei ao Felipe. Mas tem uma coisa. Se você não ficar bom desse pé, não vai poder montar. Eu acho que o jeito é você mandar lancetar logo.

—E se doer?

—Doer? É capaz de doer um pouco, mas não chega aos pés da dor de cortar. Essa sim, é uma dor mantena. Uma vez no Chove-Chuva tivemos que cortar um dedo —só um dedo— de um vaqueiro que tinha apanhado panariz e ele urinou de dor. E era um homem forçoso, acostumado a derrubar boi pelo rabo.

Meu avô era um homem que sabia explicar tudo com clareza, sem ralhar e sem tirar a razão da gente. Foi ele mesmo que chamou seu Osmúsio, mas deixou que eu desse a ordem. Naturalmente eu chorei um pouco, não de dor, porque antes ele jogou bastante de lança-perfume, mas de conveniência, porque se eu mostrasse que não estava sentindo nada eles podiam rir de mim depois.

Enquanto mamãe fazia os curativos eu só pensava no cavalinho que eu ia ganhar. Todos os dias quando acordava, a primeira coisa que eu fazia era olhar se o pé estava desinchado. Seria uma maçada se vovô chegasse com o cavalinho e eu ainda não pudesse montar. Mamãe dizia que eu não precisava ficar impaciente, a folia ainda estava longe, assim eu podia até atrasar a cura, mas eu queria tudo depressa. Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como agente quer. Por isso é que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que só queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com força, que eu nunca cheguei a tê-lo. Meu avô adoeceu e teve que ser levado para longe para se tratar, quem levou foi tio Amâncio. Outro tio, o Torim, que sempre foi muito antipático, ficou tomando conta do Chove-Chuva. Tio Torim disse que enquanto ele mandasse, de lá não saía cavalo nenhum para mim. Eu quis escrever uma carta a vovô dando conta da ruindade, cheguei a rascunhar uma no caderno, mas mamãe disse que de jeito nenhum eu devia fazer isso; vovô estava muito doente e podia piorar com a notícia; quando ele voltasse bom ele mesmo me daria o cavalo sem precisar eu contar nada.

Quando eu voltava da escola e mamãe não precisava de mim, eu ficava sentado debaixo de uma mangueira no quintal e pensava no cavalinho, nos passeios que eu ia fazer com ele, e era tão bom que parecia que eu já era dono. Só faltava um nome bem assentado, mas era difícil arranjar, eu só lembrava de nomes muito batidos, Rex, Corta-Vento, Penacho. Padre Horácio quis ajudar, mas só vinha com nomes bonitos demais, tirados de livro, um que me lembro foi Pégaso.

Um dia eu fui no Jurupensem com meu pai e vi lá um menino alegrinho, como cabelo caído na testa, direitinho como o de um poldro. Perguntei o nome dele e ele disse que era Zibisco. Estipulei logo que o meu cavalinho ia se chamar Zibisco.

O tempo passava e vovô Rubem nada de voltar. De vez em quando chegava uma carta de tio Amâncio, papai e mamãe ficavam tristes, conversavam coisas de doença que eu não entendia, mamãe suspirava muito o dia inteiro. Um dia tio Torim foi visitar vovô e voltou dizendo que.tinha comprado o Chove-Chuva. Papai ficou indignado, discutiu com ele, disse que era maroteira, vovô Rubem não estava em condições de assinar papel, que ele ia contar o caso ao juiz. Desde esse dia, tio Torim nunca mais foi lá em casa, quando vinha à cidade passava por longe. Depois chegou outra carta, e eu vi mamãe chorando no quarto. Quando entrei lá com desculpa de procurar um brinquedo ela me chamou e disseque eu não ficasse triste, mas vovô não ia mais voltar. Perguntei se ele tinha morrido, ela disse que não, mas era como se tivesse. Perguntei se então a gente não ia poder vê-lo nunca mais, ela disse que podia, mas não convinha.

—Seu avô está muito mudado, meu filho... Nem parece o mesmo homem —e caiu no choro de novo.

Eu não entendia por que uma pessoa como meu avô Rubem podia mudar, mas fiquei com medo de perguntar mais; mas uma coisa eu entendi: o meu cavalinho, nunca mais. Foi a única vez que eu chorei por causa dele, não havia consolo que me distraísse.

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