quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Os rubis de Burma-Gustavo Corção

Os rubis de Burma

Gustavo Corção
Extraído de “Lições de abismo”,1951

Nota do blogger : o talento de Corção e tal que, de uma compra de uma jóia, produz um primoroso texto.

Entrei no joalheiro e fui dizendo que queria ver brincos, os brincos mais bonitos do mundo. O rapaz que me atendeu parece que se assustou, pois foi chamar o gerente, com quem trocou algumas palavras em voz baixa. Mas o meu aspecto é tranquilizador. O gerente fita o rapaz com desprezo, e a mim com sinais de consideração. Houve mesmo um curioso momento em que sua fisionomia tinha dois hemisférios, um de escárnio para o subalterno e outro de reverencia para o freguês bem vestido, com ares de rico, que desejava escolher joias de preço.

Levou-me ao terceiro andar e pôs-me em contato com um outro estrangeiro grosso, vermelho, obsequioso, que manteve durante todo o tempo de nosso entendimento um ângulo de cento e sessenta graus entre o tórax e as pernas.

- Temos brincos magníficos, o doutor poderá ver. Faça o favor...

Passei a uma outra sala pequena, onde havia, debaixo de um lustre complicado e luxuoso, uma mesa com tampo de cristal e um tamborete forrado de veludo carmesim. Sentei-me. O meu homem, que havia desaparecido atrás de um reposteiro, voltava pouco depois, trazendo uma bandeja de joias.

No primeiro instante perdi-me na profusão de pérolas e brilhantes. O conjunto era feio. As formas eram entre si discordantes, num ajuntamento de acaso; e eu hesitava, não sabendo isolar.

-Vejas estes primores. Observe o oriente destas pérolas.

Eram duas pérolas rosadas em montagem de platina, cercadas de pérolas menores. Seriam bonitas; mas o desenho da rosácea pareceu-me presunçoso. Não gostei. Além disso, a pérola verdadeira não se distingue da falsa. Pesa sobre a pérola essa suspeita. Não, não queria pérolas. Os diamantes também não me agradaram. Brancos, diáfanos, gloriosos, não assentavam bem na triste e trigueira Gertrud. Muito menos a safira beata e otimista. Não, o azul também não entrava na história da moça.

Desanimado, voltava às pérolas, reconsiderava os diamantes, chegava até a examinar as ametistas. Já não sentia em mim o ímpeto que me trouxera àquele terceiro andar. Não. Nenhuma daquelas jóias correspondia à força que me arrancara do ônibus. Se o caso fosse de noivado tranquilo, ou de efêmera aventura, não seria muito difícil escolher um daqueles adereços finos que o joalheiro me expunha, com os olhos pregados em mim, num esforço de adivinhar a obscura ideia de seu esquisito e hesitante freguês.

Chegamos a um impasse. Só desejava agora sair dali, de qualquer modo. Recolhi as forças para arranca-me do tamborete carmesim. Ir-me-ia embora, pensasse de mim o que quisesse o judeu apoplético a estourar de obsequiosidade.

- Espere um pouco. Trago-lhe já uma joia de princesa. Com licença.

Levou a bandeja das joias despresadas e tornou a sumir-se atrás do reposteiro azul. Pouco depois voltava com uma caixinha a mão, a sorrir vitorioso.

- Veja !

E eu vi, contra um fundo de v eludo creme, duas grossas gotas de sangue.

- São rubis do Oriente, de Burma ! dizia-me o joalheiro a meia voz, com entonação religiosa.

- De Burma ? perguntei eu também em voz baixa.

Parecia que conspirávamos; ou que entre nós dois havia um segredo romanesco, antigo, que se originara lá nos confins do Indostão, entre os templos brâmanes e os juncais que à noite estalam sob a pata do tigre.

- Ninguém diz o que valem estas pedras. São discretas. Joias para conhecedor. Repare na simplicidade da montagem, o contraste com as carreiras de ônix e malaquita. A pedra grande sobressai. Trabalho muito fino.

Eu olhava os dois brincos, agora nas mãos do judeu. Duas gotas de sangue. Vejam !” é a minha vez, sou eu agora o doador. E dou o que não tenho: o sangue e a alegria.

- Quanto custam ?

- Cento e cinquenta mil, respondeu o joalheiro, extremamente sério, e aumentando um pouco o ângulo entre o busto e as pernas.

- Cento e cinquenta mil ? repeti com voz indiferente. Eu não pensava na cifra. A ideia que me trabalhava era aquela de ser eu agora o doador.

- Cento e cinquenta mil, tornou o homem de negocio, estranhando provavelmente a total ausência da reação que se habituara a ver nas fisionomias ao choque das cifras. Cai então em mim. Cento e cinquenta mil ! O preço de um bom automóvel. O preço da morte espalhada no mundo e terminada num Adriático de sonho. O preço de cento e cinquenta transfusões. Voltei-me um pouco no tamborete e consultei o talão de cheques. Esquecera de anotar os últimos canhotos, mas fazendo um calculo mental, conclui que tinha pouco mais de cento e vinte mil.

- Dou cento e vinte mil.

O homem abriu os braços num gesto de consternação; e, invocando o lustre de cristal, testemunha de sua perplexidade dolorosa, declarou-me que era impossível a redução que eu pedia. Dois rubis daquele tamanho ! Do Oriente, de Burma ! A pedra mais valiosa do mundo !

- Cento e quarenta ! propôs-me afinal.

Estávamos debruçados na mesa, um diante do outro, como dois lutadores que se estudam. Na testa do judeu intumescia-se uma grossa veia azulada; eu mesmo devia estar menos pálido, pois sentia o coração bater com força, no seu ridículo esforço de espalhar pelo corpo uns restos de sangue falsificado.

Ficamos assim um longo e tenso minuto, enquanto as pedras, desdenhosas de nossas questiúnculas, como duas princesas bárbaras que a fortuna das guerras tivesse trazido a um mercado de escravas, continuavam a cintilar, a espargir em torno o rubro esplendor que durante séculos e séculos haviam acumulado nas rochas do Indostão. Por coisa nenhuma desistiria delas. Não sei se meu adversário percebia: por coisa nenhuma !

- O caso é que eu só tenho cento e vinte disponíveis, acabo de verificar.

- Não seja por isso, exclamou o homem aliviado; podemos combinar o modo de pagamento.

- Não. Eu quero liquidar, agora ou nunca.

- Mas é impossível ! Alexandre ! ó Alexandre !

Apareceu o outro, o que me recebeu embaixo, e estiveram a conferenciar no vão da janela. Cochichavam. Gesticulavam. E eu via em cima da mesa, fora da caixa, atirados, os meus dois rubis de Burma.

Afinal aproximaram-se, e o meu homem trazia uma ideia a resplandecer no rosto gordo e oleoso. Alexandra, de pé, um pouco afastado, deteve-se algum tempo a esperar os lances do nosso jogo.

- Vou sugerir-lhe uma solução, não me leva mal, mas é impossível para nós descer abaixo de cento e quarenta mil. Não é Alexandre ?

- Qual é a solução que o senhor então propõe ?

- O senhor me desculpe o atrevimento, mas é uma solução : o senhor tem aí um diamante que dá prá cobrir a diferença...

Era o meu alfinete de gravata que ele falava. Viera do meu pai: creio mesmo que de meu avô. Desprendi o pega-ladrão e atirei na mesa o diamante.

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