quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Dona Carolina (Adolfo Caminha)

Dona Carolina
Adolfo Caminha
Extraido de “O Bom Criolo

Nota do bloguista : este fragmento é descrição da vida da dona Carolina: suas alegrias, tristezas, dissabores, ousadias, amante; tudo soberbamente descrito por Caminha.

D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem” (1), gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos...

Não fazia questão de cor e tampouco se importava com classe ou profissão do sujeito. Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima coisa! O tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.

Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas, independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo.

Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de jóias, de ouro e brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua...

Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pode reerguer-se, chegando, por desgraça, ao ponto de empenhar jóias e tudo, porque ninguém a procurava, ninguém a queria — pobre cadela sem dono... Passou misérias! até quis entrar para um teatro como qualquer cousa, como criada mesmo. Foi nessa época, num dia de carnaval (lembrava-se bem!), que começou a melhorar de sorte. Um clubezinho pagou-lhe alguns mil-réis para ela fazer de Vênus, no alto de um carro triunfal. Foi um escândalo, um “sucesso” (2): atiraram-lhe flores, deram-lhe vivas, muita palma, presentes, — o diabo! Durante quase um ano só se falou na Carola, nas pernas da Carola, na portuguesa da rua do Núncio.

A pobre mulher narrava isso com lágrimas e suspiros de profunda e melancólica saudade, e repetia: Bom Tempo! Bom tempo!

Esteve duas vezes amigada, tornou a cair doente, foi à Portugal, regressou ao Brasil, cheia de corpo e de novas ambições, amigou-se outra vez, e, afinal de contas, depois de muito gozar e de muito sofrer, lá estava na Rua da Misericórdia, fazendo pela vida, meu rico!, explorando a humanidade brejeira, enquanto o seu “macacão” trabalhava por outro lado em negócios de carne verde e fornecimento para os quartéis.

De resto, essa aliança com o açougueiro, uma senhor Brás, homem de grandes barbas e muitos haveres, essa aliança pouco ou nada lhe rendia, a ela, porque o sujeito era casado e só de mês em mês dava o ar de sua graça, deixando-lhe a ninharia de cento e cinqüenta mil-réis para o aluguel do sobradinho, fora a carne que mandava diariamente.

— Tenho quarenta anos de experiência, dizia, quarenta anos e alguns fios de prata na cabeça. Conheço este mundo velho, meu amor; tudo isso pra mim é miséria.

Notas do blogger :
(1) “certa ordem” : ironia, quis o autor dizer “toda espécie de gente, sem distinção ou preconceito”
(2)  “sucesso” aparece no original entre aspas, provavelmente por, na época, se tratar de gíria.

Link-para-mais-textos4
Link para outras antologias[5]
Home[4]

Nenhum comentário: